Testemunhos ou equívocos da memória colonial
Qualquer análise histórica – que não se fique pela confusão entre simplicidade e simplismo – tem de saber pôr em causa e criar os instrumentos que permitam colocar em perspectiva testemunhos individuais. O livro póstumo de Almeida Santos merece ser lido com cautela.
No prefácio do último livro de Almeida Santos (AS), Adriano Moreira conta a seguinte história: ao visitar Moçambique em Outubro de 1961, enquanto ministro do Ultramar, deparou-se com o processo instruído às actividades políticas de AS; o processo, que incriminava o então jovem advogado, “por orientar um movimento patriótico e ilegal”, tinha sido ordenado pelo comandante militar, um general não identificado, mas que parece ser o General Nascimento e Silva, que se revelou muito atento à acção educativa e psicossocial do exército, tendo sido substituído, em 1962, pelo General Caeiro Carrasco, conhecido pela dureza e violência das suas posições; o governador-geral e comandante-chefe, Sarmento Rodrigues encontrava-se numa situação de “embaraço”, conforme teria confidenciado ao Ministro do Ultramar, pois não queria prender AS, nem queria desautorizar o seu subordinado, o referido general; foi, então, que o autor da narrativa do pequeno episódio deu despacho ao processo, mandando arquivá-lo, e informando o governador “que dissesse ao general que, não estando de acordo, recorresse para o Vaticano” (p. 13).
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No prefácio do último livro de Almeida Santos (AS), Adriano Moreira conta a seguinte história: ao visitar Moçambique em Outubro de 1961, enquanto ministro do Ultramar, deparou-se com o processo instruído às actividades políticas de AS; o processo, que incriminava o então jovem advogado, “por orientar um movimento patriótico e ilegal”, tinha sido ordenado pelo comandante militar, um general não identificado, mas que parece ser o General Nascimento e Silva, que se revelou muito atento à acção educativa e psicossocial do exército, tendo sido substituído, em 1962, pelo General Caeiro Carrasco, conhecido pela dureza e violência das suas posições; o governador-geral e comandante-chefe, Sarmento Rodrigues encontrava-se numa situação de “embaraço”, conforme teria confidenciado ao Ministro do Ultramar, pois não queria prender AS, nem queria desautorizar o seu subordinado, o referido general; foi, então, que o autor da narrativa do pequeno episódio deu despacho ao processo, mandando arquivá-lo, e informando o governador “que dissesse ao general que, não estando de acordo, recorresse para o Vaticano” (p. 13).
Tenho o maior cepticismo sobre a veracidade desta história. Não por duvidar das palavras do seu autor, Adriano Moreira, pois acredito que se reveja nelas, como em todas as várias memórias que tem escrito a respeito do seu passado enquanto agente das políticas ultramarinas nas décadas de 1950 e 1960. As dúvidas que se me colocam têm origem em algo de mais profundo, pois resultam do dever de ofício de um historiador, preocupado com as provas e com a distinção entre aquilo que é da ordem da realidade histórica e o que faz parte das representações, das narrativas e das memórias.
Quais são, então, as provas que me fazem duvidar da veracidade dessa mesma história, nos termos em que é narrada? Primeiro, Sarmento Rodrigues, que tomara posse em Lisboa enquanto governador-geral de Moçambique em 31 de Maio de 1961, não fora nomeado por Adriano Moreira, como este indica por lapso no “prefácio”. O convite a Sarmento Rodrigues foi feito por Salazar, quem o nomeou foi o Governo e Adriano Moreira limitou-se a transmitir o convite, bem como a estar presente na cerimónia de tomada de posse.
Nas palavras de Sarmento Rodrigues, endereçadas a Adriano Moreira, ministro do Ultramar, no seu discurso de tomada de posse enquanto governador de Moçambique: “É meu dever, que cumpro com a maior satisfação, testemunhar perante Vossa Excelência os agradecimentos ao Governo pela confiança que em mim depositou entregando-me, neste momento, as principais responsabilidades directas na administração de Moçambique. O convite do senhor Presidente do Conselho, que Vossa Excelência me transmitiu e que certamente traduzia também a decisão do Governo, honrou-me ainda mais do que se poderá imaginar”
Segundo, a larga experiência colonial, o prestígio, o ascendente geracional e, acrescente-se, social de Sarmento Rodrigues, sobre Adriano Moreira, seu conterrâneo transmontano, dificilmente se coaduna com uma situação de “embaraço” do primeiro resolvida pelo segundo. Ao retratá-lo nessa atitude de hesitação e de incapacidade para tomar uma decisão, Moreira quase que passa um atestado de menoridade ao então governador de Moçambique. Um retrato, aliás, pouco digno de quem já não se pode defender e que contrasta com a atitude de apreço que o mesmo governador manifestou em relação ao jovem Ministro do Ultramar, na referida tomada de posse – “Não poderei omitir que tem sido com íntima e profunda alegria que tenho acompanhado as consagrações que a sua vida pública tem registado”.
Terceiro, o constante envolvimento do Almirante Sarmento Rodrigues na reforma e na condução de políticas ultramarinas – como governador-geral da Guiné (1945-1949), e como ministro das Colónias e do Ultramar (1950-1955) – faz supor relações de uma enorme seriedade com uma cadeia de comando que, no episódio narrado, envolvia um general de um outro ramo das Forças Armadas. Relações, sublinhe-se, pouco ou nada compatíveis com formas de desconversar, para não dizer mais, que se pudessem traduzir na expressão de mandar o general recorrer para o Vaticano. Aliás, no cenário de tensão que já se vivia, determinado pelos acontecimentos ocorridos em Angola no primeiro trimestre de 1961, e a confirmar-se que se tratava mesmo de Nascimento e Silva, nem como brincadeira de mau gosto se pode admitir o fantasioso recurso para a Cúria romana.
Em quarto lugar, as ideias de autonomia e de democratização de Moçambique de AS, tal como são expostas no livro, em nenhum momento incluem um plano que implicasse “a perda do Sul do Save para a África do Sul”, como chega a ser referido por Adriano Moreira a respeito das actividades ilegais de AS.
Por último, por que razão alude Moreira ao processo de AS, sem nunca se referir ao facto de a sua própria visita a Moçambique, em Outubro de 1961, anteceder as eleições para a Assembleia Nacional de 12 de Novembro do mesmo ano, nas quais o Grupo dos Democratas de Moçambique, de que AS fazia parte, foi proibido de participar? Não será porque a memória selectiva, fundada em testemunhos individuais, privilegia uns factos em detrimento de outros, deturpando o passado ou construindo a seu respeito uma narrativa muito parcial que nada tem que ver com a escrita da história? Ou, numa outra perspectiva, mais do que levar AS à prisão não foi mais eficaz, de um ponto de vista ministerial e da preservação do Estado colonial, vedar o acesso de todo um movimento da oposição à representação política, possível à época?
Qualquer análise histórica – que não se fique pela confusão entre simplicidade e simplismo – tem de saber pôr em causa e criar os instrumentos que permitam colocar em perspectiva testemunhos individuais. E o que vale para o prefácio de Adriano Moreira também se aplica à interpretação dos documentos e das notas explicativas da autoria de Almeida Santos, neste livro póstumo que merece ser lido com cautela.
O livro é composto por uma série de documentos, cuja autoria Almeida Santos reivindica como sendo sua, embora tivessem sido na sua maioria subscritos pelo Grupo dos Democratas de Moçambique. A cronologia desses mesmos documentos corresponde aos diferentes modos de representação política que o final do regime de Salazar e Marcello Caetano pretendeu controlar, excluindo a participação do grupo em que Almeida Santos se acabou por impor. No ano de 1961, entre a guerra de Angola e as eleições para a Assembleia Nacional, circularam quatro documentos. Em 1965, na altura de novas eleições, voltou-se a fazer sentir a voz do Grupo dos Democratas de Moçambique. E o mesmo sucedeu, em 1969, já com Marcello.
Por todos esses documentos, perpassa a ideia de “autonomia progressiva das Províncias Ultramarinas” (p. 114). Uma ideia, conforme lembra Almeida Santos na introdução a um dos documentos, que tinha paralelo com os projectos federalistas lançados por Marcello e Adriano Moreira. Tal como se houvesse um espaço em que um regime autoritário articulado com um Estado colonial, a braços com uma militarização crescente, tivesse criado um espaço onde fosse possível negociar programas alternativos para a questão ultramarina. Mesmo que possa parecer exagerado pensar que esse mesmo espaço assumiu grandes proporções, quanto mais não seja porque foi vedada ao Grupo de Democratas de Moçambique a participação em eleições, são inúmeras as marcas do trabalho feito pela oposição.
Infelizmente, a reivindicação individual da autoria de todos esses documentos, por parte de AS, cria obstáculos a uma percepção mais de conjunto das acções empreendidas pelos opositores de Moçambique. Ora, segundo as investigações do historiador Fernando Tavares Pimenta em curso de publicação, a oposição democrática tinha raízes profundas na sociedade colonial em Moçambique. Ao longo da década de 1940, um grupo de opositores fora liderado por Alexandre Sobral Campos, Raposo Beirão e Sofia Pomba Guerra.
O trabalho desenvolvido por essa mesma oposição teve eco nas instituições metropolitanas. Por exemplo, em 1956, a Câmara Corporativa foi palco de um desagradável diálogo entre Jorge Jardim e Carlos Moreira, Vice-Reitor da Universidade de Coimbra e administrador da Companhia da Zambézia. Congratulou-se aquele com as manifestações de “inolvidável fervor patriótico e arreigado portuguesismo”, suscitadas pelo centenário de Mouzinho. Ao que o seu interlocutor, contrapôs uma série de reservas, expressas com prudência mas com um sentido de suspeição em relação à existência de uma oposição: “Certos elementos dirigentes ou, quando não dirigentes, associados por interesses, e quantas vezes por razões ocultas, deixam aos portugueses que por lá passam a impressão de que bastam alguns para perturbar o sentimento geral dos portugueses de Moçambique [...]. É de admitir-se a existência daqueles indivíduos ou organizações a que me referi, com atitudes menos aconselháveis, com reservados intuitos, prejudicando por essa forma a verdadeira unidade nacional dos portugueses dessa grande província ultramarina” (Assembleia Nacional e Câmara Corporativa, Diário das Sessões, VI Legislatura, Lisboa: Assembleia Nacional, 1958, pp. 462-463: “Diário das sessões n.º 125”, 9 de Fevereiro de 1956).
No final da década de 1950, mais precisamente durante as eleições presidenciais de 1958, emergiu politicamente um outro conjunto de opositores ao regime de Salazar, membros de uma geração mais jovem, onde figuravam nomes como António Almeida Santos, Carlos Adrião Rodrigues, Rui Baltazar e Pereira Leite. Estes oposicionistas foram gradualmente assumindo “posições” de destaque, muito especialmente a partir de finais de 1961. Almeida Santos era considerado pelas autoridades portuguesas como a principal figura de proa desse grupo oposicionista. Tido politicamente como um moderado, Almeida Santos foi consolidando o seu lugar no seio da oposição ao longo da década de 1960, sobretudo durante o governo de Marcello Caetano. Por sua vez, a moderação e o legalismo das posições políticas dessa mesma oposição democrática permitiram a sua sobrevivência ao longo dos anos, vindo a formar um agrupamento mais ou menos estável, ainda que não reconhecido do ponto de vista legal.
Se a preocupação em reivindicar a autoria individual de documentos pode impedir a compreensão do sentido dos movimentos de oposição existentes em Moçambique, o mesmo sucede em relação à abolição do regime do indigenato. AS, em texto proibido pela censura, publicado em 1972 e republicado neste livro, considera ter o mesmo regime “sido abolido pouco depois de um veemente apelo da Oposição Democrática de Mo&cc