“Neste chão chorei, neste chão dancei, neste chão ri”

Na nova casa, Faustina Cruz adormece com a falta de barulho. Não estava habituada. Depois das demolições no bairro restou-lhe o chão da antiga casa. Em cima dos ladrilhos da sala reconstrói de memória.

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Não chegámos a tempo. A casa já não está lá. Ainda esteve alguns dias de pé, sozinha, só com os dois guarda-fatos vazios. Era torturante imaginá-la lá, sem eles dentro dela, por isso fechou muito bem a porta à chave, como se estivesse lá gente e pudesse voltar a qualquer momento.

Faustina Cruz pediu aos vizinhos que teimam em continuar no bairro — ela bem lhes diz que vão todos ter de sair para serem realojados — para a avisarem quando a sua casa fosse abaixo. “Não queria vê-la de pé." Chegou o dia em que lhe mandaram um SMS com a fotografia, paredes esboroadas por terra. “Só consegui voltar quando a casa não existia, para não a ver abandonada. Encontrei o chão.” Custa-lhe vê-lo. “Evito passar por aqui. Este chão, para mim, é tudo.”

Das demolições feitas pela Câmara Municipal da Amadora restou da casa apenas aquele chão quadripartido que agora todos podem pisar como se fosse rua, embora há tão pouco o rectângulo de ladrilhos azuis e brancos fosse a sua sala. Pés em cima dos mosaicos, retira os óculos de hastes douradas antecipando as lágrimas que se seguem. “Neste chão chorei, neste chão dancei, neste chão ri.”

Faz de conta que a casa ainda está de pé e que estamos a entrar pela porta principal: já não é preciso limpar os pés no tapete, como todos tinham de fazer, mas é preciso ter cuidado para não tropeçar. Tarde demais, quem não conhece a casa não sabe que o degrau para a rua foi alteado, como se fossem dois, para não deixar entrar a chuva que um dia destruiu tudo. “Fiquei sem nada. Comecei muitas vezes do zero nesta casa.”

De seguida, estamos já num corredor que era interior e que agora é só cimento pintado mas que, quando conseguiu dinheiro, forrou a oleado, porque não tinha de pagar a ninguém, podia colocá-lo ela e os miúdos: “É um a esticar e o outro a colar.”

Depois entramos para a sala de estar que era ampla mas que teve de ser dividida em quarto para os três filhos, ultimamente apenas o neto Jeovani lá vivia. “Criei aqui três filhos. Foi neste chão que aprenderam a arrastar-se, a gatinhar, a andar, a falar.”

Ao lado, ficava a casa de banho. A torneira da banheira avariou, teve de ser ela a repará-la. “Ai não sais”, lembra a conversa com a torneira, “parti a parede, o buraco ficou”. O remendo tem ainda um pedaço de azulejo de padrão diferente. Faustina media o chão que precisava de cobrir com um cordel e depois ia à loja. “Comprava sempre à conta. Quando arranjava dinheiro para ir comprar o resto dos azulejos já não havia igual.” Deu em mistura.

A metade da Rosa

A casa, paredes do piso térreo e tecto, já cá estavam quando Faustina Cruz chegou — “quando eu entrei aqui não era ninguém, 20 anos, uma miúda” —, em 1977. Três anos antes tinha saído de Carvoeiros, na ilha de São Nicolau, em Cabo Verde, onde só se vivia das hortas.

A sua casa tinha pertencido a um casal de cabo-verdianos desavindos. Quando o casamento acabou, dividiram-na ao meio com uma parede interior. Faustina comprou a metade da mulher, a Rosa, 80 contos. Chão de reboco.

Quem olha de fora chama-lhes bairros de barracas, Faustina chama-lhe bairros de casas — barraca era a de madeira de divisão única que teve antes desta.

Aqui, as casas funcionam como peças de lego que se juntam e separam à medida das vidas das pessoas, não são as pessoas que se adaptam às casas. São casas para sempre inacabadas, porque a qualquer altura do tecto se pode ter de fazer chão. Como aconteceu com a casa de Faustina.

Teve duas meninas e um menino, era importante separá-los por sexo, mas não havia espaço. Também lhe custava não ter onde receber quem vinha de Cabo Verde, quando ela lá conseguia ir tinha sempre onde ficar, e recebiam-na tão bem.

Então tiraram-se as telhas à casa para que do tecto se fizesse a placa onde assentaria um segundo andar. Para que aguentasse, Faustina teve de montar nove pilares no piso térreo. “Com a maceta, que é aquilo com que a gente bate, e com o ponteiro, que é o que a gente finca, abri as paredes para fincar os ferros, é muito fundo. E enchi de cascalho.” Tinha aprendido com o ex-marido trolha como é que se fazia, ele que era mais amigo de mandar fazer do que fazer ele mesmo, uma das razões para se ter tornado seu “ex”.

Bem sabe que o 6 de Maio — baptizado com a data da primeira reunião de moradores (em 1976) — era um bairro ilegal, mas Faustina fez questão de ir à Câmara Municipal da Amadora pedir autorização para “puxar as paredes para cima”, quis que fosse a preceito. Disseram-lhe que podia ir aos dois metros e meio. Assim foi.

“Esta casa começou de uma barraquinha e foi subindo, subindo.” No segundo andar, num dos quartos “cabiam três camas de casal alinhadas”, e ainda havia um sítio para arrumos de roupas de Inverno e cantinho para a costura.

Naquele segundo andar que Faustina reconstrói de memória pôs a dormir as duas filhas e pôde acomodar durante seis meses o primo João Cruz, que veio de Cabo Verde para ser operado ao coração. “Era um palacete no meio das barracas.”

Muito do contar de Faustina é interrompido para cumprimentar ou falar a quem passa no meio das ruínas, e que é quase sempre conhecido, como agora: “Bom dia, meninas.”

“Sei o que é construir uma casa. O trabalho é nosso, o chão não é nosso.” Até o número foi escrito por si. Quando para ali foi morar tinha ao lado o 205 e o 206 e Faustina pensou, “eu sou o 207”. A morada era igual para todo o bairro, “Rua das Fontainhas”, porque ali as vias não tinham nome. Era como se todo o bairro fosse uma enorme rua encaracolada sobre si, em forma de becos e ruelas. “Ciao, Rosa”, acena agora.

Hoje o 6 de Maio é um bairro de ex-casas, quase só chãos de paredes invisíveis que só podem ser vistas por ex-moradores. “Aquilo ali era uma taberna”, aponta. Na rua está um grupo de mulheres sentadas em cadeiras de plástico que parecem fora do contexto, no meio de um vazio de edifícios escalavrados onde um dia devia ficar um pátio interior. "Ainda não se convenceram que isto vai abaixo", diz.

Há tanto tempo que se falava na demolição. “O [bairro] Estrela de África foi todo abaixo. Por que é que o 6 de Maio não havia de ir abaixo? Não era mais uma ameaça.” Faustina percebeu.

Não esperou pela carta para sair. “Se tenho de sair amanhã, porque não hoje?” Assim dito, parece coisa que não custou, o sair dali, foram 38 anos.

Quem não é das redondezas, na zona da Amadora (arredores de Lisboa), talvez conheça o nome de o ver aparecer nas notícias, em jargão jornalístico chamam-lhe “bairro problemático”. Exemplos de títulos de jornais: “Jovem baleado nas pernas no bairro 6 de Maio na Amadora”, “PSP cercou 6 de Maio para identificar agressores de dois agentes”. Mas, para Faustina, “este bairro foi a minha pátria. Este bairro vou amar até morrer”

Faustina viveu num bairro que funcionava como se fosse uma enorme divisão. Tudo se ouvia dentro de casa, meninos a jogarem à bola todo o dia contra as paredes, garrafas a partirem, “incêndios, nunca estávamos sossegados”, eram ligações eléctricas de improviso que corriam mal, e balas. Faustina lembra bem-disposta o dia em que teve de deixar o pudim a arrefecer à janela: “Eu com o pudim na mão e veio uma bala. Baixámo-nos, que levassem o pudim.”

Viver no 6 de Maio era viver em sobressalto, conta, e volta a interromper-se: “Olha o Fábio, dá cá um beijinho”, e despede-se com um “estuda!”, seguido de um “força!”.

Sempre quis que os filhos dali saíssem educados, que dali saíssem “gente”. Num beco do bairro que ainda se mantém túnel vêem-se passar corpos emagrecidos por aquilo que ali vêm comprar e consumir, vestem roupa suja que lhes sobra. “Rapazes e raparigas destruídos”, “famílias que desistem dos filhos”. “Sinto-me feliz, orgulhosa, porque os meus filhos não estragaram aqui a vida.” “Vocês vão sair deste bairro, gente.” Sempre lhes disse.

Para que isso acontecesse, ao mais velho, o Matias, teve de o mandar embora para Inglaterra. Quando viu que a empresa onde trabalhava ia à falência pensou que não havia alternativa. “Baza daqui!” Só lá se salvaria e chora pensando no filho a queixar-se à mãe que aquilo era frio, que não falava a língua, e ela a dizer-lhe que tinha de ser. Foi há sete anos, a filha foi a seguir.

Agora saem do bairro eles os três, Faustina, a filha mais nova, de 31 anos, a Elizabete, e o neto, Jeovani, de dez anos, que chegou a ter a sua pequena mochila da escola revistada pela polícia em dia de rusga.

“Pensam que dentro do bairro são todos iguais. Aqui há de tudo, bom e mau, como em todo o lado” e, quando assim diz, há uma jovem conhecida que se abeira de Faustina e que a convida a sentir-lhe a pele da face: “Passa aqui”, e Faustina percorre-lhe o “T” que vai da linha do nariz até à testa. A rapariga trabalha num salão de beleza e a patroa ofereceu-lhe uma limpeza de pele “com máscara e esfoliante”, está habilitada a oferecer umas quantas a amigas. Não quer Faustina passar por lá para ficar tão sedosa como ela? Faustina aceita.

Faustina já não mora no bairro. Está reformada por invalidez do trabalho na cozinha, mas ajuda como voluntária no Centro Social 6 de Maio. Vem de camioneta da sua nova casa — um terceiro andar onde tem a luz e o silêncio que lhe faltavam na casa anterior.

“Aqui no alto”

“Agora estou aqui no alto.” Faustina Cruz teve sorte, repete-se, mostrando-nos a casa para onde foi realojada pela câmara. “As pessoas não sabem dar valor”, fala dos moradores do bairro que se queixam das novas casas, dos que não querem sair. Faustina está num terceiro andar sem elevador, preferiu, assim não se habitua ao elevador, como se quisesse estar sempre preparada para a perda.

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A mobília parece desambientada, demasiado à larga. “Lá estava tudo muito encaixadinho.” Às vezes espanta-se como cabia lá tudo.

Nesta casa, Faustina Cruz teve de comprar cortinados e tem de os ter corridos por ser tanta a luz, a barraca era escuridão. “Só a claridade... Aqui não gasto luz. Lá tinha de ter as luzes ligadas do amanhecer ao anoitecer.” E “de manhã é fresquíssimo”.

O neto Jeovani olha para a rua do alto com ar cobiçoso, um grupo de crianças brinca na rua. Está implícito que só pode ver, que a avó Faustina não o pode deixar à solta lá em baixo, é preciso estar sempre vigilante.

“Os filhos” — o que também se aplica aos netos — “são para ser educados assim”, e faz um gesto como se segurasse com força uma carteira com valor debaixo do braço, que não se pode perder de vista sob pena de ser levada por um malfeitor. Como se o mundo lá fora fosse todo hostil. Se ela conseguiu proteger os filhos no 6 de Maio, não será na nova urbanização que ainda conhece mal que vai correr riscos com o neto. “O nosso lugar é da porta para dentro. Se ele quer jogar à bola, eu vou com ele.”

Faustina repete muito “isto aqui é uma maravilha”, ou “isto é uma casa de sonho, é um paraíso”, mas não parece completamente convencida. “Pago renda, estou aqui sossegadinha. É um silêncio maravilhoso, até dá sono. Lá, levámos com o barulho.” Não se ouvem bolas, vozes, tiros. “Não há bagunça.”

“Quando me levanto abro a janela, olho para um lado e há estores fechados, olho para o outro lado e não está ninguém. Só passarinhos.” E surge, muito timidamente, um comentário que não chega a queixume: “A pessoa acaba por estar só. Faz-me falta falar com as pessoas, a conversa. Aqui, se eu quiser falar com as pessoas, tenho de lhes bater à porta.”

Sobram-lhe ainda as ruínas do 6 de Maio. “Se precisar de ver alguém, apanho uma camioneta para lá. Só deixo de lá ir quando deixar de haver bairro.”

Na casa feita de silêncio e luz, Faustina guardará para sempre a chave da porta da casa que já não se vai abrir a mais ninguém. O 207 permanecerá, “na lembrança”.

No próximo domingo, o último dos cinco artigos da Série Casas Portuguesas