Deus, Tayyip e Atatürk, a nova e estranha santíssima trindade turca

Milhares de pessoas e de bandeiras, assim é a festa do derrube do pelo povo do AKP, o partido do Presidente. Todas as noites se celebra como se não houvesse amanhã. Na Taksim, o rosto do fundador da Turquia laica coabita com palavras de ordem religiosas.

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O povo do AKP, Partido da Justiça e Desenvolvimento, ocupou as ruas de Istambul em defesa do Presidente AFP/OZAN KOSE

Adem vem todos os dias, fica até tarde todas as noites e assim fará até ser preciso, “se Deus quiser”. Quem decide se é preciso é “Tayyip, claro”, que raio de pergunta. Adem, 22 anos, sem emprego, vive longe do centro de Istambul, em Fatih, mas garante que mesmo que os transportes não fossem gratuitos e não houvesse comida vinha na mesma, “a pé” se preciso fosse.

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Adem vem todos os dias, fica até tarde todas as noites e assim fará até ser preciso, “se Deus quiser”. Quem decide se é preciso é “Tayyip, claro”, que raio de pergunta. Adem, 22 anos, sem emprego, vive longe do centro de Istambul, em Fatih, mas garante que mesmo que os transportes não fossem gratuitos e não houvesse comida vinha na mesma, “a pé” se preciso fosse.

A praça Taksim, epicentro da metrópole de 15 milhões, está transformada numa espécie de parque de diversões onde se vai homenagear mortos numa mistura de festival de Verão com feira popular. Há música, vários palcos e ecrãs gigantes, animadores de serviço, camiões de caixa aberta com casas-de-banho portáteis, ambulâncias, muitos vendedores de T-shirts, bandeiras da Turquia (5 liras turcas as mais pequenas), bonés e chapéus de feltro otomanos, fitas para atar na testa (3 liras, menos de um euro), bandeiras com o rosto de Mustafa Kemal Atatürk, cachecóis com a cara do actual Presidente…

Os pontos de interesse são vários, mas nenhum rivaliza na dimensão das filas com as bem organizadas tendas de distribuição de comida. Famílias inteiras, grupos de amigos de todas as idades, avós com os netos, ninguém recusa a espera em troca de cachorros grelhados ali mesmo e uma garrafa de água (o menu do dia em duas das tendas, cortesia da câmara municipal de Istambul) ou de uma sanduiche e um sumo de pacote.

Adem chegou cedo e está alimentado, diante do palco principal. A cada dia junta mais um acessório ao equipamento: sábado já veste camisola com o crescente e a estrela da bandeira, tem uma bandeira tamanho médio atada num pulso, uma fita onde se lê “Turquia” no outro, mais uma na testa com o nome do Presidente, Recep Tayyip Erdogan, um boné a completar.

Impressionante é o tamanho da bandeira que Adem e outros jovens seguram e agitam em uníssono, aos gritos de “Allahu Akbar” (Deus Grande) nos intervalos da letra da música que sai das colunas, uma canção nacionalista. Adem não vê contradições entre o seu slogan e o refrão da canção. Como também não estranha a frase na faixa que cobre a fachada do maior edifício da praça, o Centro Cultural Atatürk: “A soberania pertence à nação” (Hakimiyet Milletindir), título de uma marcha cunhado por Atatürk (fundador da República) contra o poder do sultão, em defesa do laicismo.

Adem não é o único para quem tudo isto faz sentido. Encostados ao palco estão dois jovens um pouco mais velhos, um com o fez otomano (criado pelo sultão para substituir o turbante e visto, na altura, como sinal de modernidade ao ser usado por todos os funcionários do império, muçulmanos ou não, acabou banido por Atatürk), outro com um turbante branco.

Os livros de condolências

Em teoria, a festa de símbolos serve para homenagear as vítimas da tentativa de golpe de Estado fracassada da noite de 15 de Julho. Aqui mesmo, na Taksim, como noutros pontos de Istambul e da capital, Ancara, milhares de turcos responderam ao apelo de Erdogan e enfrentaram tanques conduzidos por soldados jovens e desorientados. Houve 265 mortos, 24 eram revoltosos. Num dos extremos da praça, nasceu um mural com os nomes das vítimas.

Há um estrado encostado ao mural e no centro um púlpito com dois livros de condolências. Às vezes são poucas as pessoas à espera, à medida que a noite se aproxima a fila cresce; no chão, um tapete de cravos vermelhos e brancos, não traz de casa tem um molho onde se servir, não falta nada.

A família Çam subiu a rua Istiklal no eléctrico vermelho que desemboca na Taksim, atravessou a praça e dirigiu-se directamente ao memorial. Miúdos e graúdos, todos sabem ao que vêm. As duas filhas mais velhas, adolescentes de túnica e lenço a cobrir os cabelos aproximam-se dos livros de condolências, a terceira desenrola a bandeira da Turquia e coloca-se de um dos lados, hirta, o miúdo mais pequeno, o irrequieto Hursit, lá obedece às indicações e segura a bandeira verde, a cor do islão.

O pai dirige os filhos, “Hursit, mais para a esquerda”, a mãe tira todas as fotografias que pode. Às tantas, já há mais gente a fotografar a prole Çam. “Parabéns, que família bonita”, dizem à mãe que sorri a mãe, orgulhosa.

A “democracia” e o “nosso Presidente”

“Viemos pela Turquia. Festejar a vitória da democracia”, explica o pai. “E pelo nosso Presidente também, que sobreviveu ao golpe.”

“Até nova ordem, não deixem as praças vazias”, pediu de novo Erdogan, ainda na sexta-feira à noite. O povo obedece, está visto. Muito povo AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), de Erdogan, no poder desde 2012. “Se não houvesse necessidade ele não diria isto. Eu confio no meu Presidente, ele deve ter informações sobre novos perigos”, diz Emre Akkas, jovem licenciado em Direito a fazer um doutoramento e líder da Iniciativa Jovem pela Paz, uma associação pró-AKP.

Emre também tem vindo quase todos os dias. Acredita que o Governo está a fazer os possíveis para voltar a controlar as instituições do Estado, mas pensa que isso ainda pode demorar.

O estado de emergência, que muitos turcos temem possa ser usado para aumentar ainda mais o poder de Erdogan, o Presidente que se lançou, nos últimos anos, numa deriva autoritária, foi declarado há três dias. O primeiro decreto de lei decidido ao abrigo do estado de emergência, no sábado, aumenta a duração legal da detenção sem acusação de dois para 30 dias e determina o encerramento de 35 hospitais, 1043 escolas privadas, 15 universidades privadas e fundações, mais 19 sindicatos acusados de ligações a Fethullah Gülen, o imã a viver nos Estados Unidos que o Governo considera responsável pelo golpe.

“O estado de emergência justifica-se”, defende Emre. “Depois desta tentativa de esmagar a democracia, não me parece que as [milhares de] detenções sejam demasiadas. Os conspiradores são poderosos. Não quer dizer que estas pessoas todas sejam culpadas. Vai haver interrogatórios e quem foi inocente sairá em liberdade”, diz o jovem crente.

A conversa é interrompida por gritos de “Deus é grande” de mais um grupo que acaba de chegar. Um dos animadores de serviço, que antes se entretivera a juntar pessoas num estrado para serem fotografadas a dizer adeus, ao mesmo tempo que se viam num dos ecrãs, grita agora do seu megafone palavras de apoio a “Tayyip”. Volta a música, ainda mais alta. Já é noite e as luzes vermelhas e azuis das ambulâncias ajudam a dar ambiente. Adem e a bandeira gigante já nem se vêem, há um mar de gente e bandeiras e é só. A festa continua.