O cowork não é o novo Flower Power, mas é uma revolução

A crise económica criou um exército de trabalhadores independentes que fizeram nascer os espaços de cowork. Os coworkers são uma nova geração de trabalhadores livres e nómadas, movidos por valores altruístas, ou um novo Lumpen, sem direitos nem participação activa no mundo produtivo?

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Paulo Pimenta

Todos os dias, Patrícia e Guilherme saem de casa às 7h30 da manhã, numa aldeia da zona de Sintra, para chegar ao emprego, em Lisboa, às 9h. À tarde é pior. Têm de largar o trabalho às 16h30, se querem estar em casa antes das 19h. São mais de quatro horas por dia no metro, comboio e autocarro, para conseguirem cumprir a jornada de sete horas de trabalho, com uma hora de intervalo para almoço (que trazem preparado de casa), cinco dias por semana.

Poder-se-ia pensar que isto é uma forma de escravatura, e quem tivesse a sorte de não ter patrões, nem contas a prestar a ninguém, nem obrigação de cumprir horários, optaria por ficar em casa, com uma vida mais livre.

Acontece que Patrícia e Guilherme não têm patrões, são trabalhadores independentes, fazem o que bem lhes apetece e, ainda assim, levantam-se de madrugada para serem pontuais na suas secretárias do 4º andar do edifício principal da Lx Factory, em Alcântara.

Patrícia Batista, 28 anos, e Guilherme Filipe, 25, são alentejanos e estudaram Design, mas não conseguiram emprego na sua área. Mudaram-se para Leiria, ela fez estágios, ele trabalhou em próteses dentárias. Fartaram-se. Despediram-se das empresas, decidiram criar uma para si. Como não sabiam bem que actividades seriam mais favorecidas pelo mercado, decidiram começar por aquilo que sabiam fazer: design gráfico.

Mudaram-se para Lisboa. Para não pagarem renda, instalaram-se na casa de família que tinham na aldeia. Angariaram alguns clientes, no sector da restauração, trabalhavam em casa. Ganhavam menos, mas compensava.

Apostaram no lado do trabalho, não na remuneração. “Somos apologistas de fazer o que gostamos”, diz Patrícia. O que não significa falta de ambição. O casal quer que a empresa melhore os seus serviços e qualidade, cresça. Tem até um plano, que inclui abrir um escritório e dar emprego a outros designers, em cinco anos.

Mas após algum tempo a trabalharem sozinhos, sentiram que o projecto não avançava. Não conseguiam contactos, funcionavam em circuito fechado. “Em casa há muitas distracções”, diz Guilherme. E Patrícia: “Sair de casa é mais produtivo, em termos de criatividade”. São necessários estímulos. Um ambiente monótono e previsível, ou até demasiado cómodo, entorpece o engenho.

Há três meses vieram para o CoworkLisboa, no Lx Factory, o antigo espaço industrial na zona de Alcântara hoje transformado em centro alternativo de empresas, lojas, restaurantes e bares. Alugaram, na grande sala comum, duas secretárias que transformaram em escritório.

Sentam-se junto de quase uma centena de outros trabalhadores independentes, de vários sectores de actividade, e cumprem um horário, como se alguém lho exigisse. Mas nos seus termos. Quando ficam sem ideias, vão dar um passeio, para inspiração. Ou ver uma exposição. Não apenas ao fim-de-semana, mas dentro do horário útil. Assumem essas tarefas como trabalho. “Ao sair para a rua, vemos trabalhos de outros designers”, diz Guilherme. Gostamos de arte urbana, vamos lá buscar inspiração”. Observam Lisboa, tomam notas.

Trabalhar num regime de cowork permite essa atitude de liberdade conveniente a um freelance das indústrias criativas, mas também evitar os inconvenientes da solidão. Os cowork dispõem as pessoas próximas umas das outras, e têm bares e zonas de convívio, simulando o ambiente numa grande empresa. Mas sem a hierarquia nem as obrigações.

Mal chegaram, Patrícia e Guilherme tiveram um problema com um computador. Comunicaram-no à Rita Lança, designer e responsável pela organização e gestão do centro de cowork,  que logo lhes indicou um informático que ali trabalha. Rita e Fernando Mendes, o fundador e director do centro, funcionam como ponte entre os vários coworkers. Quando algum chega de novo, Rita coloca o seu perfil na página interna de Facebook, com uma mensagem de boas-vindas, uma fotografia e uma descrição das suas actividades.

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Porto i/o, um espaço de cowork na Baixa do Porto. É uma comunidade digital e tecnológica Paulo Pimenta

Na filosofia do CoworkLisboa, criado em 2010 por Fernando Mendes, esta possibilidade de sinergias esteve presente desde o início, quando, em 2008, Fernando começou a preparar a iniciativa que se tornaria pioneira no país. Designer de formação, trabalhou vários anos com Rui Marques (conhecido por ter organizado a Missão Paz em Timor e a viagem do Lusitânia Expresso) na revista Fórum Estudante. Esteve na equipa fundadora da revista CAIS e foi director de design do Terravista, e quando se viu desempregado e na altura certa de lançar um empreendimento próprio, tentou encontrar um tipo de projecto social adequado aos novos tempos.

Isto passa-se no auge da crise financeira, depois do estouro da bolha imobiliária nos EUA e do subprime, e da falência do Lehman Brothers. O mundo nunca mais seria o mesmo, e Fernando percebeu-o. As grandes empresas começaram a despedir trabalhadores em massa, outras fecharam as portas. Jovens qualificados não mais teriam facilidade em encontrar emprego estável e seguro. A precariedade no trabalho passaria a ser a regra. A palavra “empreendedorismo” entrava no léxico corrente do sistema capitalista na sua nova fase, como expediente do desespero, disfarçado de utopia. Ao mesmo tempo, as novas tecnologias permitiam trabalhar sozinho e em qualquer lugar. E ter acesso a informação e comunicar, ou enviar trabalho de qualquer sítio para qualquer sítio. A capacidade e portabilidade dos equipamentos nivelavam-nos a todos nas possibilidades e distinguia-nos nas capacidades específicas.

“Há 20 anos, se entrássemos, por exemplo, na redacção de um jornal, identificávamos, à primeira vista, os jornalistas, os fotógrafos, os designers gráficos, pelos equipamentos que usavam” explica Fernando. “Hoje, todos estão à frente de um computador portátil. São todos iguais”.

Tudo isto fez com que surgissem os primeiros espaços de cowork, em São Francisco, Berlim, Londres e outras cidades ocidentais. O conceito terá sito inventado em 2005 por Brad Neuberg, um engenheiro informático americano que partilhou, naquela cidade, um escritório com dois colegas, e outros trabalhadores independentes que poderiam aparecer quando quisessem, para trabalhar.

Fernando leu artigos sobre o assunto, falou com empreendedores de outros países. Acabou por vir para este “open space” do último andar do edifício principal da Lx Factory. Além do salão com as 150 secretárias, o recinto permite a existência de um bar, um espaço lounge com sofás, uma sala de reuniões, uma zona de pequenos escritórios para micro-empresas.

“Isto não é uma tendência, já é a norma”, diz Fernando Mendes, que está a fazer um doutoramento, no IADE, onde ensina Design, sobre o futuro do cowork.

A nova realidade económica, desde que começou a crise, em 2008, criou um exército de trabalhadores independentes. Cada vez há mais pessoas que não encontram emprego numa empresa, ou já o tiveram e foram dispensadas, e decidem trabalhar por conta própria. Na maior parte dos casos, não terá sido uma opção, mas as pessoas acabam por transformar aquilo que começou por ser uma tragédia, individual e social, numa oportunidade de criar algo novo. Não necessariamente melhor. O facto é que reagem, com graus diferentes de êxito, assumindo-se como freelance, criando micro-empresas, em hordas de força de trabalho disponível, supostamente livre.

Adaptam-se, independentemente dos juízos que se possam fazer sobre a nova ordem económica e social emergente.

O mundo dos centros de cowork é o destes “operários” do novo milénio. Pessoas que foram trabalhar para casa, mas não querem ficar em casa. Preferem estar próximo de outros na mesma situação, ainda que nada nas suas actividades ou sectores os ligue ou relacione, para beneficiarem das sinergias que a situação proporciona. E, claro, para reduzirem custos.

Há várias modalidades contratuais nos espaços de cowork. É possível alugar uma secretária num espaço comum (o que custa, em Portugal, de 100 a 180 euros por mês), com direito a electricidade, serviço de internet sem fios, impressora, telefonista, limpeza, instalações sanitárias, utilização de uma sala de reuniões. O preço de um pequeno escritório para uma micro-empresa de duas a quatro pessoas pode ascender a 350 ou 500 euros por mês.

Mas tudo isto é flexível, pelo menos num centro como o CoworkLisboa. Ninguém é expulso se não conseguir pagar. Fernando perdoa dívidas, adia pagamentos, oferece períodos experimentais de um mês ou dois, se acredita nos projectos profissionais dos candidatos. Ou, mais frequentemente, encontra forma de se fazer remunerar através de serviços que os coworkers possam prestar ao centro, quer sejam trabalhos de design, informática ou comunicação, quer colaboração nas tarefas de gestão ou até de segurança.

Este é o carácter original dos centros de cowork, que começaram por ser organizados espontaneamente por pessoas que precisavam de um local barato para trabalhar, num espírito cooperativo. Mas de movimento ideológico a realidade económica regida pelo pragmatismo foi o passo da própria necessidade. Hoje há, só em Lisboa, mais de 40 espaços de cowork. E estão previstos muitos mais, alguns de dimensão colossal. A empresa britânica Ministry of Startups anunciou a abertura de um espaço de trabalho partilhado na zona da Praça de Espanha, outro em Cacilhas e um terceiro no Porto. A também britânica Second Home está a abrir um espaço de cowork no Mercado da Ribeira, em Lisboa. E o próprio Fernando Mendes é um dos parceiros do NOW (No Office Work), um centro de cowork com 3 mil m2 previsto para a zona de Marvila, entre a estação de Santa Apolónia e o Parque das Nações. Devia ter aberto este Verão, mas os planos atrapalharam-se porque a própria Câmara Municipal decidiu entretanto montar no mesmo local o “maior hub criativo da Europa” (com 30 mil m2), incluindo espaços de cowork, incubadoras de startups, e muitos outros serviços ligados às indústrias digitais, aproveitando a onda da feira tecnológica Websummit, que se realizará em Lisboa em Novembro e se repetirá nos próximos dois anos.

Nem todos são artistas

A ser possível (do que muitos duvidam), o alargamento a esta escala não deixará decerto de adulterar o conceito. Ou pelo menos de o matizar, o que de certa forma já acontece, à medida que se estende a diferentes ramos de actividade.

Nem todos os coworkers são artistas. No LatinoCoelho87, o espírito é muito diferente. O edifício antigo e de traça nobre, recuperado, na zona das Avenidas Novas, em Lisboa, oferece oito pisos de espaços de trabalho. Há salas para micro-empresas, apropriadas para duas a cinco pessoas, alugadas ao mês, ou gabinetes ocupados numa espécie de regime de time-sharing, um dia por semana. Estes são, na maioria dos casos, usados por psicólogos, e por isso estão equipados com uma secretária e uma poltrona para o cliente. À porta de cada um dos gabinetes há uma placa com o nome do profissional que ali está a trabalhar, e que pode ser alterada todos os dias. Uma sala destas custa 50 euros por mês, para usar uma manhã por semana.

O centro existe há 25 anos, mas só recentemente se adaptou à nova realidade, explica a sua proprietária e gestora, Patrícia Raposo. A flexibilidade é também aqui uma noção-chave, embora não com tolerância para quem não paga. O método para lidar com o problema é transferir os profissionais ou as empresas em dificuldades económicas para espaços mais baratos dentro do edifício. Uma empresa que não consegue pagar o escritório pode passar para uma mesa partilhada no 8º andar, onde funciona o cowork. O movimento em sentido contrário também é frequente.

“É possível criar uma empresa com um orçamento muito limitado”, explica Patrícia. Para uma startup de dimensão reduzida, ter uma sala aqui é altamente vantajoso por comparação com alugar um escritório convencional. Porque pode poupar em serviços de que precisa qualquer empresa, pequena ou grande, e que aqui são comuns. Desde usar uma sala de reuniões, até beneficiar do serviço de estafetas e de limpeza, e de uma telefonista. Esta, sentada na portaria e comum a todo o prédio, pode atender uma chamada e dizer “O dr. X está neste momento numa reunião, mas transmitir-lhe-ei a sua mensagem, logo que esteja disponível”.

Os profissionais ou empresas podem também usar a morada do prédio como sede, para receber correspondência e atender clientes nas salas de reuniões comuns. Entre as várias modalidades de contrato há aliás a possibilidade de ter apenas um escritório virtual. Por 35 euros mensais, não se tem direito sequer a uma mesa no edifício, mas a todos os outros serviços, incluindo sala de reuniões e tratamento personalizado por parte da telefonista.

No LatinoCoelho87 há engenheiros civis, advogados, consultores financeiros, fiscais, de marketing, representantes de firmas estrangeiras, associações, uma pequena empresa de robótica, uma editora de revistas, uma produtora de filmes, um contabilista, um político famoso, um vendedor de piscinas.

Ricardo, 48 anos, casado, com três filhos, trabalha em marketing “one-to-one”, como independente, para várias empresas estrangeiras. Aluga uma secretária no espaço de cowork, no 8º andar, onde se senta todas as manhãs. Vem a pé, de casa, onde por vezes fica a trabalhar, da parte da tarde. Representa uma empresa espanhola que vende equipamentos de música ambiente para bares e restaurantes, e uma outra, britânica, que negoceia bases de dados de consumidores - a sociodemografia aplicada ao marketing, explica.

Estabelece contactos, através de uma boa rede no Linkedin, e faz vendas. Funciona sozinho, não precisa de sinergias nem de convívio com outros trabalhadores. No espaço de cowork do LatinoCoelho87 tem o sossego e o ambiente de que necessita. Há pouca gente, silêncio, uma janela com vista para a cidade. A produtividade é elevada. E os resultados também. “Nunca ganhei tanto dinheiro como agora”.

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"Isto não é uma tendência, já é a norma", diz Fernando Mendes, que lançou o cowork na Lx Factory, em Lisboa, e está a fazer o doutoramento sobre o futuro desta actividade Rui Gaudêncio

Iniciou a carreira trabalhando para grandes agências de marketing. Quando elas começaram a dispensar pessoal, saiu e criou a sua própria agência, que a crise obrigaria a fechar, em 2011. Trabalha sozinho desde então. Tentou em casa, depois procurou centros de cowork. Visitou o CoworkLisboa do Lx Factory, mas achou-o muito barulhento. “Preciso de concentração. De um espaço para trabalhar, não para conviver ou conhecer pessoas”. 

Foi-se adaptando ao novo estilo de trabalho e de vida, e já não conseguiria voltar atrás. O próprio equipamento mudou, tornou-se mais portátil e pequeno. Trocou o computador de 17” por um de 13”. “Todo o meu escritório cabe numa mochila”.

Para Patrícia Raposo, a ideia de comunidade, de convívio e de sinergias de trabalho corresponde a um estereótipo do cowork que a realidade nem sempre confirma. A LatinoCoelho87 é uma empresa, não uma associação sem fins lucrativos. Os seus serviços respondem a uma necessidade do mercado, não resultam de uma motivação ideológica. Mesmo assim, é curioso que consigam oferecer preços mais baixos (120 euros por uma mesa) do que os praticados pelos centros de cowork mais comunitários, como o CoworkLisboa ou o Village Underground Lisboa.

Este, também situado na zona de Alcântara, é um complexo formado por contentores de navios e velhos autocarros, montados em sobreposição no terreno do Museu da Carris. Nos autocarros funciona a cafeteria, nos contentores, as secretárias de cowork, cinco em cada um, equipados com ar condicionado e uma janela.

Mariana Duarte Silva, 37 anos, trouxe a ideia de Londres, onde viveu de 2007 a 2009, trabalhando em organização de eventos. O Village Underground de Londres é um espaço de cowork formado com antigas carruagens de metro, que possui uma sala de espectáculos e eventos artísticos. Foi esta actividade que deu notoriedade ao projecto. E rentabilidade, também. Ao contrário do cowork propriamente dito, que tende a ser uma actividade sem fins lucrativos.

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Mariana Duarte Silva, 37 anos, trouxe a ideia do Village Underground de Londres, onde viveu de 2007 a 2009 Rui Gaudêncio

“Eles funcionam com uma organização mista, de uma empresa social, que explora o cowork, sem fins lucrativos, e uma empresa convencional, para as outras actividades”, explica Mariana. “Cá isso não é possível”. Por isso, quando fez a sociedade com Tom Foxcroft, o fundador do Village Underground londrino, para abrir um centro idêntico em Lisboa, criou uma única empresa. Mas não deixa de separar as duas actividades: “O aluguer de espaços de cowork não é uma actividade lucrativa, porque as rendas têm de ser baixas. Mas faz parte de um todo. É à organização de espectáculos e eventos que se vai buscar dinheiro”.

Tem havido concertos, sessões de cinema ao ar livre, torneios de skate na pista construída ao lado dos contentores, filmagens para telenovelas e anúncios publicitários usando o inconvencional cenário de cidade fantástica pós-apocalíptica. Um grande pavilhão está a ser ultimado, para concertos e festas.

É o conjunto do projecto que lhe confere uma personalidade, uma marca. E também um halo que atrai certo tipo de pessoas, afastando outras. Uma espécie de comunidade hippie dos tempos pós-yuppies, de que faz parte o espírito cooperativo, onde a ideia de negócio lucrativo com o aluguer de mesas num contentor pareceria um pouco fora de contexto.

Não são só os mais novos

Num centro de cowork como o Village Underground Lisboa não encontramos qualquer tipo de pessoa. Predomina o sector típico da população “pós-yuppie” do coworking. “Não são os mais novos, na casa dos 20 anos. Esses ainda ficam em casa dos pais, a procurar trabalho”, diz Mariana. “São pessoas com idades entre os 30 e os 40, que já trabalharam, e agora são independentes, ou criaram a sua própria empresa”.

É esse o perfil dos modernos coworkers. Pessoas já com alguma experiência, que, em muitos casos, já trabalharam para grandes empresas, na época pré-crise. São séniores, conhecem o mercado onde se movem, possuem capacidades e especialidades que lhes permitem vender o seu trabalho em condições competitivas.

Paulo Cruz, 43 anos, designer, já fez parte do quadro de uma grande agência. Agora senta-se num contentor do Village, à frente do seu “Macbook” e do póster dos Led Zeppeling com que personalizou o seu posto de trabalho.

Há aqui vários designers, mas também produtores de vídeo, grupos de teatro, músicos, ilustradores, tradutores, organizadores de festivais artísticos. Esta é a segunda característica da comunidade do Village Underground: “São pessoas ligadas às indústrias criativas”, explica Mariana.  “Têm os seus próprios projectos, que nem sempre são rentáveis, mas que já não trocavam por nada. É uma geração que não vai voltar a trabalhar para empresas. Já ninguém voltará a trabalhar para ninguém”.

O facto de todos trabalharem nas indústrias criativas permite a entreajuda e as sinergias. Mariana desempenha o papel de “hub manager”. Uma vez por mês, promove uma reunião para apresentar os novos membros e os novos projectos de cada residente. E as iniciativas conjuntas têm-se multiplicado.

Para que este perfil de comunidade seja mantido, Mariana faz uma selecção dos candidatos a residentes. Quem não se enquadra, não é aceite, ainda que as vagas não estejam todas preenchidas.

Mas a selecção é quase sempre feita de forma natural. Quem se aproxima de um determinado centro de cowork fá-lo porque se sente próximo daquela comunidade. É o que acontece no Porto i/o, um espaço de cowork em plena Baixa do Porto. Tem 32 mesas de cowork (totalmente ocupadas, com 40 % de estrangeiros), sala de reuniões, espaço lounge, cozinha. É também uma comunidade, não artística, mas digital e tecnológica. A selecção é feita através de uma entrevista inicial, em que se decide se a pessoa encaixa ou não no carácter da “família”. Há pouco tempo, por exemplo, um arquitecto foi rejeitado, com a sugestão de um outro centro mais adequado ao seu perfil.

O fundador, Nuno Veloso, é um programador informático de 31 anos que cresceu em Bruxelas e viveu em França e na Dinamarca, em Londres, Nápoles, Barcelona. Foi aí que se tornou freelance e trabalhou num centro de cowork, que decidiu reproduzir no Porto. Fez-se sócio de um antigo patrão, britânico, que adquiriu o edifício onde agora funciona o Porto i/o, iniciais de in e out, que representam o intercâmbio de contributos que a empresa quer proporcionar.

Também aqui, a actividade não é vista como negócio lucrativo. Para isso, Nuno conta com a sua outra empresa, a Marzee Labs, da área tecnológica. O centro de cowork, este pólo e o que abriu recentemente na zona da Ribeira, terá um papel de fazer nascer iniciativas, lançar projectos e empresas.

Além dos contactos produtivos que vão acontecendo entre os coworkers, facilitados por uma gestora de comunicação e comunidade, Liliana Castro, o centro promove regularmente conferências e cursos, os chamados “meet-ups”, com oradores convidados, nas áreas tecnológica e inspiracional, os chamados “start-up coffees”, em que os fundadores de empresas start-up vão apresentar os seus projectos.

A experiência em Braga

Numa cidade relativamente pequena, onde o preço do espaço não é tão condicionante como em Lisboa, um centro de cowork dificilmente justifica a sua existência com o simples aluguer de secretárias. E o argumento do convívio e das sinergias também não é tão convincente num meio onde as pessoas ainda se encontram naturalmente nas ruas e nos locais públicos.

Isto é ainda mais evidente em Braga, onde não seria este factor, nem o preço das rendas, a levar alguém a procurar uma secretária numa sala partilhada. Tiago Gomes Sequeira é o fundador do Factory, um espaço de coworking e salas para micro-empresas. Estudou Informática de Gestão, e preparava-se para iniciar uma carreira no estrangeiro, quando rebentou a crise. Veio para Braga, ajudar na empresa de imobiliário da família. Estes pavilhões, construídos para serem arrendados, foram deixados vazios pela conjuntura económica. Havia que fazer algo com eles, e Tiago decidiu apostar no coworking. “Pensei que este sistema era o futuro”, diz ele. “Mas foi um erro. Porque o preço dos imóveis desceu ainda mais. O plano de negócio que fizemos valeu zero. Tivemos de baixar os preços. E investir noutras áreas, como na formação em marketing digital, que hoje já representa 40% do negócio”.

Fizeram acordos com empresas, que dão formação no centro de cowork, e em troca ganham uma base para recrutar pessoal. “Um espaço de cowork é uma forma de reunir pessoas. Vamos aprofundar este sector de recursos humanos. Manteremos uma rede, de todos os que passaram por aqui, para ajudarmos as empresas a recrutar”.

As lógicas económicas variam segundo as realidades de cada local, mas o sentido do coworking, esse é comum e global. A atitude de liberdade, independência e nomadismo. O próprio Tiago prepara-se para partir numa viagem pela Indonésia. Quando esteve num santuário de elefantes no Norte da Tailândia, precisou de trabalhar e procurou um espaço de cowork.

Ana Mendes Lopes, 41 anos, é tradutora literária há 12, e trabalha no cowork do Factory desde há duas semanas. “Em casa, estava dar em doida”, diz ela. “Há demasiado conforto. Agora trabalho menos horas, mas rende mais”.

Tem como clientes quatro editoras, com sedes em Lisboa ou no Porto. “Enviei currículos, contrataram-me, é tudo tratado por email, por pdf. Não conheço ninguém”.

Ana não se sente prejudicada por viver longe dos grandes centros. Pode trabalhar em qualquer lugar. E gostaria de mudar de geografia, trabalhar por uns tempos noutro país. Não pode porque comprou casa, e o marido tem um emprego em Braga.

Umas mesas à frente trabalha Teresa Ferreira, 30 anos, também tradutora, mas de textos técnicos. Viveu cinco anos em Espanha, ao serviço de uma empresa, mas fartou-se da pressão, sentiu que tinha a carreira estagnada. Queria ser freelance. Veio para Portugal, trabalhar em casa, depois para o Factory. O aumento de produtividade é perfeitamente mensurável: em casa traduzia 2500 palavras por dia, aqui, 3000.

Há cinco empresas para quem trabalha regularmente, todas estrangeiras. “Trato tudo por email e skype. O sítio onde estou é irrelevante”. Já foi passar uns dias a Itália, planeia uma “road trip” nos EUA. Sem parar de trabalhar. “Eu trabalho para viajar. Para ser nómada”.

Ruba Nemeh, 23 anos, é uma russo-jordana que trabalha em marketing digital no Porto i/o. “Estar aqui é ter outra família”, diz, ainda que para ela, que sempre viajou, o conceito se refira mais a afecto do que a segurança, pessoal e profissional. “A segurança é um mito. Nunca existe. Não tenho medo da insegurança. Já trabalhei na Finlândia, na Índia, pelas experiências. O trabalho não é o mais importante na vida. O dinheiro não é o destino final”.

Rita Pimenta, 25 anos, é de Vila da Aves, viveu no Porto, estudou Comunicação Social em Viseu, e dedica-se ao vídeo. Está há três anos e meio em Lisboa. Trabalha no CoworkLisboa. Fundou, com três amigos,  uma produtora de audiovisual, a Origamind, trabalhou na TVI. Agora quer ser nómada. Viveu em Londres, e na Bulgária a organizar um festival de cinema. Quer voltar para Londres. “Não quero trabalhar em nenhuma empresa. Dou valor à minha liberdade. Gosto do incerto. Não me assusta, porque ainda ando à procura. O que me assusta é passar a vida no mesmo sítio. Mudar é importante. Tenho ambição, mas não passa pelo dinheiro. Tudo o que é material não tem valor. O que quero é fazer algo útil, que tenha impacto em alguém. O ser humano não foi feito para trabalhar, mas para criar”.

Um retrocesso de direitos e garantias

É sabido que ninguém sonhou com isto. Sob quase todos os aspectos, a condição destes novos trabalhadores desenraizados representa um retrocesso, em termos de direitos e garantias. Toda a utopia de liberdade, independência e nomadismo não é mais do que a face quimérica de uma catástrofe social. Mas a quem, senão às suas vítimas, pediríamos, sobre as ruínas, a reinvenção da dignidade humana?

Fernando Mendes, o mais visionário dos coworkers, não deixa de ver a sombra que engoliu o futuro. “Isto não é o novo Flower Power”, reconhece ele. “Estas pessoas têm 30 anos e não compram carro, não compram  casa, não querem família. Não têm raízes. Vagueiam pelo mundo, mas não querem saber de política, não lhes interessa o seu país”.

São milhões de pessoas, e o número continua a crescer. Nada têm, excepto a força do seu trabalho criativo, que vendem por um valor injusto. São uma espécie de novo Lumpen à deriva, ligado ao mundo produtivo por poderosas plataformas virtuais.

“Ninguém pode prever o que vai acontecer”, diz Fernando. Não param de surgir novas formas de cowork. O co-living, em que grupos de pessoas se juntam num qualquer lugar paradisíaco, para viverem e trabalharem durante um período. O co-home, em que pessoas alugam pequenos espaços nas suas casas, para trabalhar durante o dia. Ou o free-co-working, em que os trabalhadores pagam o posto de trabalho com comida que trazem de casa.

Ou o cowork-escola, que Fernando Mendes tenciona pôr em prática aqui o seu espaço do Lx Factory. Será levar mais longe a tese de que isto é um lugar de aprendizagem. Os profissionais independentes mais experientes e talentosos, com um nome consagrado, serão convidados a vir para cá trabalhar, dispensados de renda. Só os mais inexperientes pagarão, para vir trabalhar juntos com os melhores em cada área, aprendendo informalmente com eles.

Uma alternativa ao tradicional relacionamento de mestres e aprendizes, que, até há pouco tempo, ainda existia nas empresas.

Para compensar outras desvantagens do trabalho independente e solitário, mais alternativas vão nascendo. Por exemplo a que foi imaginada por Alexandra Quadros, 51 anos, e Pedro Garcia Marques, 49. Ela foi directora criativa em agências de publicidade, e mudou-se para o CoworkLisboa há dois anos, ele é designer de equipamento, e está cá desde o início. Trabalham como freelancers, são ambos seniores, não têm dificuldades em encontrar trabalhos, em grande parte graças às sinergias do cowork. Mas sentiam uma dificuldade: por serem sozinhos, não podiam aceitar grandes trabalhos, que exigiam a escala de uma grande empresa.

Resolveram o problema criando uma instituição original: um naipe informal de profissionais seniores, de várias áreas, que pode formar grupos multidisciplinares, para responder a determinadas encomendas. Serão equipas flexíveis ou uma “war room”, para reuniões de aconselhamento e brainstormig. Terminado o trabalho, o grupo dissolve-se automaticamente, sem que persista qualquer vínculo contratual. A isto chamaram Colaboratório.

Por mais forte que seja o seu sentido de liberdade e independência, há entre a multidão dos coworkers a noção de que a sua maior fraqueza é o isolamento. É normal que sejam, pela sua própria natureza, relutantes a todas as formas de associação. Mas isso mantém-nos vulneráveis à exploração e ao abuso.

O problema preocupa Patrícia e Guilherme, o casal de designers que gasta quatro horas diárias em transportes públicos na esperança de beneficiar das sinergias do CoworkLisboa.

Sentem-se sós e desprotegidos, mas quando se lhes fala na possibilidade de se inscreverem nalgum sindicato, ou de criarem um que defenda os seus interesses, entreolham-se perplexos, como quem diz “Será uma brincadeira? De que mundo saiu este repórter?” E riem.