E Porto Covo soou à miscigenação musical dos Graveola

A abertura do Festival Músicas do Mundo fez-se em Porto Covo com o Brasil todo-o-terreno dos Graveola, a pop selvática de Juana Molina e as variações de São João das Segue-me à Capela

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Juana Molina tocou na Ponta do Sol, Madeira, na quarta-feira. Terá depois permanecido na ilha por um dia mais e, talvez pela agitação (e comoção apensa) do anúncio da futura passagem pela pia baptismal do aeroporto do Funchal para passar a ostentar o nome do filho pródigo da terra, o futebolista Cristiano Ronaldo, talvez por isso o voo de sexta-feira para o continente tenha sido cancelado. E eis que logo no dia do arranque, o Festival Músicas do Mundo (FMM), ainda de arraiais assentados em Porto Covo, tinha o seu primeiro sobressalto. A cantora e instrumentista comprou de imediato novas passagens para não esperar o voo de substituição (que atrasaria a chegada ao festival para lá do recomendável) e, afinal, ficou presa no aeroporto de Lisboa, durante horas, à espera que o backline (amplificadores e maquinaria de som, de tal forma específicos da sua música que seria impensável tocar com material de recurso), perdido algures no caminho, acabasse por dar à costa.

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Juana Molina tocou na Ponta do Sol, Madeira, na quarta-feira. Terá depois permanecido na ilha por um dia mais e, talvez pela agitação (e comoção apensa) do anúncio da futura passagem pela pia baptismal do aeroporto do Funchal para passar a ostentar o nome do filho pródigo da terra, o futebolista Cristiano Ronaldo, talvez por isso o voo de sexta-feira para o continente tenha sido cancelado. E eis que logo no dia do arranque, o Festival Músicas do Mundo (FMM), ainda de arraiais assentados em Porto Covo, tinha o seu primeiro sobressalto. A cantora e instrumentista comprou de imediato novas passagens para não esperar o voo de substituição (que atrasaria a chegada ao festival para lá do recomendável) e, afinal, ficou presa no aeroporto de Lisboa, durante horas, à espera que o backline (amplificadores e maquinaria de som, de tal forma específicos da sua música que seria impensável tocar com material de recurso), perdido algures no caminho, acabasse por dar à costa.

Foi tudo explicado pela própria Juana Molina em palco, enquanto se estendiam cabos e se testavam ligações e afinavam instrumentos, numa correria para minorar os atrasos. Por sorte, quem já estava em Porto Covo e pronto a avançar no lugar da argentina (que, assim, fechou a noite, em vez de assegurar o pós-jantar) foi o colectivo brasileiro Graveola e o Lixo Polifônico. E se muitos desconheciam a música dos mineiros, um rock com aquela facilidade de carregar no corpo todas as sonoridades populares brasileiras, no final já o Largo Marquês de Pombal – o centro de Porto Covo, com o palco postado diante da igreja – se juntava num voluntarioso coro às palavras de Babulina’s trip ou Desdenha, temas do anterior Eu Preciso de Um Liquidificador. Tanto assim que, quando nos últimos segundos em palco, Luiz Gabriel Lopes se despediu bradando “Fora Temer” (duas das palavras mais ouvidas no Brasil actual, eco do descontentamento com o Presidente da República Michel Temer, que assumiu o cargo após a destituição de Dilma Roussef), o público ainda tomou a vaia como sua e repetiu “Fora Temer” como se fosse um refrão.

Não é novo o activismo político dos Graveola, associando-se como banda ou individualmente a ocupações ou manifestações que pugnem pela igualdade de direitos entre os cidadãos. São disso exemplo Índio Maracanã, um dos temas do novo Borboleta Camaleão, álbum em destaque no concerto do FMM, em defesa do direito de propriedade e de memória dos povos indígenas brasileiros, ou Tempero segredo, apregoando a legalização da maconha. “Decidi plantar meus pés, acho que isso é maturidade”, canta José Luís Braga, misturando drogas leves e canção de amor, cruzando MPB, rock psicadélico e cancioneiro dos Beatles. Na verdade, a maturidade dos Graveola é também essa, a do cruzamento livre (mas consequente) de sonoridades cujo parentesco nem sempre é de primeiro grau.  É como diz Desdenha, falando de “um samba que nem era samba”, que tem tanto de Os Mutantes quanto de Caetano Veloso ou Cartola, mas se faz sobretudo de uma miscigenação que o grupo promove como natureza.

Costi, Sem sentido, Maquinário ou Lembrete afirmaram o essencial: o quanto uma banda de guitarras pode ainda soar vital nos dias de hoje, tragando todo o passado do Brasil musical para o seu presente. Uma delícia.

Hipnoses e ovelhas

Depois (e não antes) dos Graveola, Juana Molina lá chegou a horas de mostrar o quão singular é a sua música. Há qualquer coisa de selvático nas suas canções, assentes em loops que se acrescentam e subtraem, e de uma crueza que, na guitarra, lembra a PJ Harvey de Rid of Me. Só que a guitarra é um pormenor e passando sobretudo por temas do mais recente Wed 21, como Eras ou Lo decidi yo, Molina constrói momentos vários de uma alucinação sonora que faz pensar num trip-hop imaginado a partir da vizinha Amazónia, numa Björk crescida não entre vulcões e geisers mas no meio de um tribalismo tecnológico e de uma vegetação luxuriante.

Se havia o perigo claro de, no final da noite, o público de Porto Covo (em concertos de entrada livre e que, por essa mesma razão, atraem muitos curiosos menos disponíveis para música que exija mais do que um fácil apelo à dança) se mostrar mais desconfiado perante a proposta da argentina, a verdade é que muitos por ali ficaram, agarrados à hipnose rítmica a que Molina junta eficazes e simples ganchos melódicos. Um óptimo concerto talhado para auditório a conseguir sobreviver, e conquistar, numa praça surpreendente que, há dois anos, por exemplo, quase se silenciou perante o belíssimo e delicado concerto instrumental de Kayhan Kalhor & Erdal Erzincan.

Os primeiros sons do FMM couberam, no entanto, ao guineense Braima Galissá, que percorreu as ruas da aldeia tocando o seu kora (uma espécie de harpa africana de 22 cordas) e depois o levou até ao palco, defendendo a Guiné Bissau como local de nascimento do instrumento – foi o que o seu avô, que viveu até aos 110 anos, lhe garantiu. Com o final da tarde, chegaria o grupo vocal feminino (acompanhado de um percussionista) Segue-me à Capela, que desfiou temas arranjados a partir das recolhas de Michel Giacometti, José Alberto Sardinha e Ernesto Veiga de Oliveira, numa visita ao património musical português – tudo se canta, desde as ovelhas no prado (composição, neste caso, de Amélia Muge) às melodias que as mulheres entoavam na altura de recolher o gado ou a temas de rituais de casamento sefarditas.

Em apresentação de Sanjoanices, Paganices e Outras Coisas de Mulher, em que adaptam para as suas sete vozes à capela (mas também acompanhadas por adufe ou por uma percussão que nunca contesta o elemento central da sua música) e tomam recolhas de temas populares habitados por São João (“São João era bom homem / se não fora tão velhaco”, canta-se em Macelada) como mote para este álbum e para o concerto de abertura oficial do FMM. Com a tradição bastante presente, das portuguesas aos brasileiros, tudo bons exemplos de como o presente nunca foi invenção de si próprio.