A fotografia está na rua

Por estes dias de canícula em Arles, Sul de França, o difícil é escolher. Entre as 40 exposições disponíveis dos Encontros da Fotografia, há um género que se destaca – a fotografia de rua. Nos últimos anos, Ethan Levitas e Eamonn Doyle tudo fizeram para o resgatar do entorpecimento.

Fotogaleria

Basta percorrer meia dúzia de ruas do centro de Arles para se perceber como, por estes meses em que duram os Encontros (até 25 de Setembro), a fotografia se apropria de maneira feroz do espaço público. As paredes dos prédios são galerias a céu aberto, algumas galerias são uma continuação da rua, numa demonstração de um poder fundamental que consiste em dizer ou mostrar alguma coisa num lugar à vista de quem quer que seja. Esta exposição pública, que agora também usa o chão como suporte, mostra uma dinâmica intensa, na qual quem chega por último ganha vantagem - se um dia vemos um salto para a água, no outro já se esconde o azul intenso e o voo do saltador, sobrepostos por uma dama de corpete num retrato a preto e branco (bem-vindos à lógica do cartaz de rua segundo a qual “quem ri por último ri melhor”). Claro que há de tudo, desde os que querem fazer simples anúncios aos que só querem mostrar o seu trabalho fotográfico e que encontraram na rua um espaço privilegiado. Em ambos, a rua é vista como o “suporte” mais democrático (e o mais imediato) para a fotografia.

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Basta percorrer meia dúzia de ruas do centro de Arles para se perceber como, por estes meses em que duram os Encontros (até 25 de Setembro), a fotografia se apropria de maneira feroz do espaço público. As paredes dos prédios são galerias a céu aberto, algumas galerias são uma continuação da rua, numa demonstração de um poder fundamental que consiste em dizer ou mostrar alguma coisa num lugar à vista de quem quer que seja. Esta exposição pública, que agora também usa o chão como suporte, mostra uma dinâmica intensa, na qual quem chega por último ganha vantagem - se um dia vemos um salto para a água, no outro já se esconde o azul intenso e o voo do saltador, sobrepostos por uma dama de corpete num retrato a preto e branco (bem-vindos à lógica do cartaz de rua segundo a qual “quem ri por último ri melhor”). Claro que há de tudo, desde os que querem fazer simples anúncios aos que só querem mostrar o seu trabalho fotográfico e que encontraram na rua um espaço privilegiado. Em ambos, a rua é vista como o “suporte” mais democrático (e o mais imediato) para a fotografia.

Em paralelo com esta apropriação imprevisível, caótica e natural do espaço público urbano, surge outra, mais exclusiva e planeada, que olha para a rua como o berço e (ainda) o principal fornecedor de matéria-prima para a prática fotográfica. Consciente desse legado, a secção oficial dos Encontros de Fotografia de Arles propõe um regresso ao frenesi da urbe através de várias exposições que dão forma a um dos principais vectores da programação deste ano – a rua como campo de confronto, de coabitação, de ritual, de tensão, de mistério, de exuberância e de alheamento. São cinco as mostras que fazem parte deste núcleo-duro e através delas é possível traçar parte da história de um género nem sempre fácil de balizar.

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Ethan Levitas, Frame 21, Photographs in 3 Acts, 2012 Ethan Levitas/Cortesia do artista e da galleria Jean-Kenta Gauthier, Paris

Com a ambição de trilhar caminhos menos conhecidos (que é como quem diz mostrar aquilo que raramente foi mostrado) o director artístico Sam Stourdzé trouxe a Arles uma retrospectiva de Sid Grossman, naquela que é a primeira exposição na Europa de um dos fundadores da New York Photo League, em 1936, e um dos nomes mais influentes da fotografia americana moderna. Ao longo da sua curta mas intensa carreira (morreu aos 42 anos), Grossman evoluiu de um registo sócio-documental académico para uma visão mais pessoal, visceral e intuitiva, com fotografias desfocadas, carregadas de grão e propositadamente escuras. Considerado um radical e um inovador, as suas séries mais marcantes mostram o pulsar da juventude em Coney Island, a procissão do Cristo negro no Panamá, onde esteve em serviço militar em meados da década de 1940, e as ruas dos bairros populares nova-iorquinos de Chelsea e Harlem. Em 1949, o FBI considerou-o um “comunista subversivo” e seu nome foi parar à “lista negra”. Nas décadas seguintes, a sua obra foi ostracizada e votada ao ocaso. Apesar de uma carreira pública destruída, Grossman continuou o seu trabalho como professor em casa. A influência que exerceu em muitos nomes da fotografia americana de meados de século passado foi enorme. Para além da mais completa visão do seu trabalho, esta exposição de Arles mostra fotografias dos alunos que ouviram os ensinamentos de Sid Grossman, entre os quais se destacam Arthur Leipzig, Harold Feinstein e Leon Levinstein.

Na senda da fotografia de rua de tradição norte-americana, Ethan Levistas/Garry Winogrand - Radical Relation mostra o quanto a relação entre o trabalho de dois criadores se pode alimentar de continuidades, desafios, aproximações e afastamentos. Levitas (Nova Iorque, 1971) é um profundo admirador da obra de Winogrand (Nova Iorque, 1928), não num sentido de endeusamento, mas numa atitude de questionamento que lhe permite encontrar novos campos criativos e até continuar aquilo que terá sido o último acto da fotografia e Winogrand – a consciência de que, por mais discreta, a simples presença do fotógrafo muda a imagem e altera/contamina o registo do real (cria outro real). A junção das imagens dos dois fotógrafos (que até estão distantes do ponto de vista formal) é uma das boas decisões do festival e resulta numa simbiose perfeita, na qual é possível perceber melhor a obra de Winogrand (alvo frequente de interpretações erradas) e situar a prática fotográfica contemporânea que reivindica a rua como a sua principal matéria-prima, como o faz Levitas.

Este discípulo de Winogrand tem vindo a desenvolver um trabalho que reorienta a noção de fotografia de rua para uma relação complexa entre diferentes partes do processo criativo, fugindo da visão fechada e unidireccional (do fotógrafo para sujeito) com que habitualmente foi sendo tratada. Nesta soma das partes, Levitas revela “uma dissonância entre visível e a aparência”, colocando o fotógrafo num campo muito mais subjectivo do que era comum fazer-se, ao mesmo tempo que lhe dá um maior protagonismo em relação aos sujeitos e objectos fotografados. Para Levitas, o “acto fotográfico enquanto intervenção” e “a fotografia enquanto acontecimento capaz de redefinir as noções de lugar, objectivo e significado” são os pontos fundamentais para deixar no ar perguntas como: O que significa olhar? O simples acto de olhar pode criar sentido? O que significa ver e ser visto?

As três séries que Levitas apresenta em Arles sugerem de maneiras diferentes algumas respostas. Ten-Year Study (2011), retratos a longa distância dez anos depois do 11 de Setembro, tenta apanhar o passado nos rostos do presente e com ele a atribuição de um sentido ao seu próprio olhar. Photographs in 3 acts (2011-2015), sobre as condições de existência da fotografia e das possibilidades de extensão do seu território, reconfigura o visível no espaço público cruzando e apropriando-se do território habitual da imagem anónima criada pelas câmaras de videovigilância. In Advance of a Broken Arm (2009-2010), sobre os constrangimentos na acção dos fotógrafos no espaço público e o poder da fotografia não só como gesto criativo mas como expressão de liberdade, refere-se ao acto fotográfico per si e ao vulcão de consequências que a sua prática pode espoletar.

Para Joshua Chuang, comissário de Radical Relation, nos últimos anos Levitas não só foi capaz de interrogar a fotografia de rua dentro do seu território conceptual (como se de uma autocrítica se tratasse) como contribuiu para “restituir” este género “ao interior do vasto campo da prática contemporânea”.

Nas paredes do Grande Halle (no Parc des Ateliers, instalações fabris situadas no mesmo terreno onde já floresce a megalítica obra de Frank Gehry para uma futura casa da fotografia patrocinada pela Fundação Luma, de Maja Hoffmann), as folhas de contacto dos filmes de Gary Winogrand revelam como ao seu tempo os sujeitos vão perdendo alguma da inocência dos primórdios, rumo a uma postura mais defensiva e a uma consciência mais assertiva do poder da imagem fotográfica e de quem a captava. O mestre americano notou esta transformação, mas não viveu o suficiente para a problematizar em imagens.

Marcianos à vista!

Num registo conceptual muito diferente (e impregnado de provocação) Arles propõe a reposição integral da exposição A New Refutation of the Viking 4 Space Mission (York, 1979), do fotógrafo inglês Peter Mitchell (Manchester, 1943), um alien para o comum dos visitantes da semana de abertura dos Encontros, mas cuja obra tem sido resgatada do esquecimento nos últimos anos, sobretudo depois de Martin Parr ter apadrinhado exposições e edições de fotolivros, como Strangely Familiar (2013).

Apesar de o seu trabalho no tecido urbano e industrial de Leeds (norte de Inglaterra) durante os anos 70 e 80 ter sido omitido durante décadas das histórias da fotografia canónicas, a obra de Mitchell é hoje olhada como uma das pedras basilares da moderna fotografia inglesa. A New Refutation… foi tão só a primeira exposição de fotografia a cores em Inglaterra de um fotógrafo britânico e Parr refere-se a ela assim: “Era tão à frente do seu tempo que, para além de um sentimento de perplexidade, ninguém sabia exactamente o que dizer ou como reagir”. As imagens de Mitchell mostram uma cidade e os seus habitantes no momento crucial de abandono de um paradigma social e comercial baseado nos antigos modelos industriais rumo a novos esquemas económicos, que começavam a ser aplicados pela política da era thatcheriana.

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A uma abordagem documental (com retratos frontais, captadas à distância de uma rua em cima de um escadote portátil), Peter Mitchell juntou uma marca mais conceptual: rodeou todas as imagens com réguas e medidas da topografia espacial; e misturou as suas fotografias com paisagens de Marte captadas pelas sondas missão Viking. A ideia era dar a impressão de como é que a cidade seria vista pelos olhos de um marciano que nela aterrasse pela primeira vez. As provas fotográficas de paisagens extraterrestres que a NASA deu a Mitchell representavam à época o triunfo da robótica e de um mundo tecnologicamente avançado sobre um mundo manual, que vivia nos escombros da revolução industrial, como Leeds vivia. Ao usar o paradigma da vitória do mundo digital e da eficácia do controlo à distância, Mitchell baralha as convenções da topografia fotográfica e projecta alguns dos lugares comuns da cultura cyber-punk que floresceria na década de 80.

Ainda que com alguns resquícios da melhor tradição da fotografia de rua americana (sobretudo a das figuras solitárias de Ray K. Metzker, mas também Lee Friedlander e Winogrand), a exposição End., do irlandês Eamonn Doyle, representa um passo à frente no que este género tem oferecido nos últimos anos. A imponente instalação montada numa das salas do espaço Van Gogh foi pensada para causar impressão. E para não deixar sair ninguém indiferente. Impressionam as colagens gigantes com figuras enormes alheadas na selva urbana, impressionam os painéis de múltiplas imagens e as molduras que nada mostram a não ser quem está do outro lado, impressiona a maneira como as imagens que aparentemente apanharam a pior perspectiva ou o sujeito errado nos convencem, afinal, que estão do lado certo e que mostram o sujeito mais pungente.

Uma das principais forças do conjunto reside na mestria de apanhar o pormenor (uma linha numa saia roxa) e o singular, no meio de tudo e de todos, de chamar pelo ínfimo no meio do caótico. Talvez pela sua capacidade em domesticar o quotidiano sem que este perca um lado indomável (insondável/invisível), End. foi uma das exposições mais badaladas da semana de abertura. Às imagens de Doyle (que esteve 20 anos alheado da fotografia, a sua formação de base) juntam-se as ilustrações de Niall Sweeney e a música de David Donohoe, suportes que dão ao conjunto a dose certa de subjectividade e abstracção que tendem a faltar à imagem fotográfica.

Numa das noites de conversa na Place du Forum em frente à esplanada do café amarelo eternizado por Vincent van Gogh, alguém dizia que a exposição de Eamonn Doyle significava “o encontro da fotografia de rua com a arte contemporânea”. E, de facto, a maneira furtiva como o fotógrafo irlandês consegue captar fragmentos do quotidiano de Dublin, a sua cidade-natal, e a maneira como ultrapassa os limites do convencional colocam-no na vanguarda do olhar sobre o espaço público e a cidade. End., investida de um forte carácter cénico, foi construída a partir das séries i (silhuetas misteriosas absortas no seus pensamentos), ON (figuras gigantes sob uma luz inclemente que parecem sair fora da imagem que as aprisiona) e End. (sobre a energia que flui entre os lugares da cidade e os seus habitantes, sobre o ballet do quotidiano como criador de identidade), último tomo de uma trilogia que encontra nesta exposição o seu pináculo e uma continuação natural dos três fotolivros que vêm sendo publicados desde 2014. Para Martin Parr, o papa do género, i “é o melhor livro de fotografia de rua publicado no último decénio”.

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Eamonn Doyle. Sem título, da série End Eamonn Doyle/Cortesia de Michael Hoppen Gallery

Muito mais próximo do campo da arte contemporânea (mas não menos fotográfico por isso), a instalação de Christian Marclay mostra-nos como pequenos objectos abandonados nas ruas de Londres se podem transformar em “poesia sonora e visual”. Marclay fotografa e filma obsessivamente enquanto caminha. Nos seis vídeos de Pub Crawl descobriu como o barulho de garrafas e latas vazias a rolar no chão se podia transformar numa banda sonora que caracteriza a cidade e o seu uso. Em paralelo, seis vídeos silenciosos mostram, em ritmo acelerado, amontoados de fotografias de outras tantas categorias de objectos abandonados no chão: pastilhas elásticas, beatas de cigarros, tampas de garrafas de plástico, cotonetes… Em cada um, o jogo de formas e de cores ganha uma dimensão plástica e a sucessão de imagens desconcertada faz lembrar os primórdios do cinema, que muito devem à fotografia.

Sem ser abundante nem exaustiva, esta área da programação oficial oferece uma visão suficientemente ampla para se poder traçar uma pequeníssima história da fotografia de rua do século XX. E só isso, já não é coisa pouca.

Sabendo que um festival de fotografia com a dimensão do de Arles está longe de se alimentar com apenas um eixo central (para além da fotografia de rua, há outros nove grandes temas), o director artístico, Sam Stourdzé, espalhou pela cidade (e arredores) mais de 40 exposições que são toda uma prova de ecletismo, visão ampla, experimentação e descoberta. Passo a passo, o novo director vai impondo a sua marca. No segundo ano à frente do maior festival de fotografia da Europa, Stourdzé tenta deixar para trás o pesado (e bom) legado de François Hébel, que esteve 13 anos na liderança dos Encontros. Para isso, tenta usar as suas principais áreas de interesse na imagem, mais próximas do cinema, dos contextos de produção, difusão e recepção, bem como da noção de “activação” e da história alternativa da fotografia, que pode ser contada através da apropriação, do erro, do acidente e do vernacular. É dessa inclinação pela “outra fotografia” que surgem propostas como a de Il y a de l’autre, que reúne uma série de colecções privadas que se dedicam a despertar imagens esquecidas, perdidas ou escondidas. Como a de Mauvais genre, exposição feita a partir da vasta colecção que o realizador Sébastian Lifshitz construiu ao longo de 30 anos sobre o universo travesti. Ou o olhar sobre os arquivos fotográficos e gráficos da revista bête et méchant (estúpida e ordinária) Hara Kiri (antecessora do satírico Charlie Hebdo). Ou ainda Western stories, que recupera toda a imagética cowboy ligada ao cinema e à música na região da Camarga (os primeiros filmes de aventura inspirados na conquista do Oeste americano foram aqui rodados).

Seja uma programação mais clássica ou mais arrojada (como a deste ano consegue ser), o objectivo passa sempre por fazer algo que se assemelhe a uma quadratura do círculo, na qual se consiga surpreender os mais exigentes na semana de abertura e se consiga manter os níveis de interesse elevados de todos os outros durante todo o Verão. Desafio nada fácil.