E afinal onde fica Korpilombolo?

Não lhes conhecemos nome ou rosto e não sabemos quanta verdade há na sua história. Transe de rock cósmico, balanço afrobeat e magia voodoo. O anonimato em contraponto ao egocentrismo. O mundo misturado como vitória sobre o medroso nacionalismo. Chamam-se Goat e vão estar no Milhões de Festa.

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Os Goat nascidos em Korpilombolo, escondem o rosto atrás de máscaras e cocares de penas de pavão, vestem túnicas que podem ser africanas, latino-americanas ou de uma tribo ancestral perdida nos Alpes e intocada pela civilização moderna

Era daquelas histórias boas demais para corrermos o risco de ser desapontados pela verdade. A sua investigação podia deixar-nos desiludidos e isso, definitivamente, não nos interessava. A história conta que existe um pequeno lugarejo perdido no extremo norte da Suécia, entre rios límpidos e bosques frondosos, onde perdura há centenas de anos uma comunidade que, apesar da chegada do cristianismo, continuou a viver em relativo isolamento de acordo com as suas tradições. A aparição algures no tempo de um feiticeiro voodoo acrescentou uma nova tradição à vida dos cerca de de 500 irredutíveis suecos de Korpilombolo (assim se chama a cidade onde nasceu a banda) e os seus efeitos da sua chegada continuam a sentir-se.

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Era daquelas histórias boas demais para corrermos o risco de ser desapontados pela verdade. A sua investigação podia deixar-nos desiludidos e isso, definitivamente, não nos interessava. A história conta que existe um pequeno lugarejo perdido no extremo norte da Suécia, entre rios límpidos e bosques frondosos, onde perdura há centenas de anos uma comunidade que, apesar da chegada do cristianismo, continuou a viver em relativo isolamento de acordo com as suas tradições. A aparição algures no tempo de um feiticeiro voodoo acrescentou uma nova tradição à vida dos cerca de de 500 irredutíveis suecos de Korpilombolo (assim se chama a cidade onde nasceu a banda) e os seus efeitos da sua chegada continuam a sentir-se.

Os Goat nascem desse contexto. São um dos grandes destaques desta edição do Milhões de Festa, em Barcelos. Esta sexta-feira, surgem como cabeça de cartaz de um festival que não se preocupa em definir tais hierarquias - fruamos, reencontremos heróis das minorias melómanas, viajemos de palco em palco em busca da descoberta. Os Goat são, como escrevemos, a continuação de uma história de séculos. Assim o explicavam a quem os quisesse ouvir em 2012, ano em que editaram World Music - e muitos queriam mesmo ouvi-los, assim o ditava a música e a história. Em 2016, já editaram novo disco, o magnífico Commune (2014), e, em Barcelos, quando subirem ao Palco Milhões às 1h20, irão oferecer-nos em primeira mão o que estão a preparar para o terceiro álbum – em Maio foi editado um novo single, I sing in silence. Nenhum concerto é igual ao anterior, mas já sabemos o que nos espera.

O novo single, I sing in silence

Ouvimos os discos e vimo-los em Paredes de Coura há dois anos. O space-rock e o rock de wah-wah soluçante ou fuzz faiscante a expandir-se em transe afrobeat, a fundir-se com o minimalismo rítmico da motorika, a sugerir cítaras de Bollywood e a navegar pelas areias malianas do “blues do deserto”. Tudo isto ao mesmo tempo. Eles lá em cima (as vocalistas, os guitarristas, o baixista, baterista e percussionista) e o público cá em baixo a unirem-se naquele pan-tudo criado por pessoal de quem não conhecemos nome ou rosto. É por isso que caem tão bem no festival nascido no Porto em 2006 e instalado em Barcelos desde 2010.

No Milhões, tal como na ética criativa dos The Goat, toma-se o pulso à criatividade musical contemporânea sem negligenciar o passado e sem preocupações com fronteiras geográficas ou de género musical. Até domingo, entre muitos outros, veremos em Barcelos o britânico The Bug, autor de um concerto incendiário o ano passado, regressar acompanhado da israelita Miss Red com uma revisão do dancehall jamaicano; veremos o hip hop a acontecer neste preciso momento, cortesia da crew da Goth Money Records; veremos o psicadelismo como bordão interminável (e não queremos que termine) dos ingleses The Heads; o tropicalismo afro-beat dos brasileiros Bixiga 70; a intensidade da desconstrução rock de Riding Pânico e Quelle Dead Gazelle; a luminosidade electrónica de El Guincho; o noise rock dos Part Chimp e o encantatório planar digital de Sun Araw.

Hide from the sun, do álbum Commune (2014), versão ao vivo
A banda a explicar o significado de Commune, título do segundo álbum

Os Goat nascidos em Korpilombolo, hoje sedeados em Gotemburgo ,escondem o rosto atrás de máscaras e cocares de penas de pavão, vestem túnicas que podem ser africanas, latino-americanas ou de uma tribo ancestral perdida nos Alpes e intocada pela civilização moderna. O álbum de estreia não se chama World Music por acaso.

Eles acham que só bandas armadas ao pingarelho podem afirmar que não fazem world music porque, afinal, enquanto Sun Ra não trouxer de Saturno uns génios musicais alienígenas para a aguardada nova versão de Space is the place, toda a música criada neste planeta será, por definição, música do mundo. “Não separamos a música entre diferentes culturas. De facto, nem olhamos para a cultura como uma realidade dividida entre si. Vemos a humanidade como um todo. As diferenças entre músicas e culturas não são tão grandes quanto as semelhanças. A música existe, a cultura existe. Existem para todos as poderem viver, apreciar e utilizar”. Quem o diz é um dos Goat. Qual deles? Não sabemos.

“Nos Goat, nenhum de nós tem um nome. Posso ser o membro da banda que quiseres”. Assim se apresenta o homem que fala com o Ípsilon. A sua banda chama-se Goat [Bode] por esse ser um animal sacrificial em várias culturas. “Significa que sacrificamos a nossa identidade individual pelo bem do colectivo. Trabalhamos juntos e, nesse processo, pomos de parte o ego”. A banda defende que esse desejo de anonimato está relacionada com a velha tradição comunal de Korpilombolo, mas não é difícil ver nele um comentário à praga egocêntrica actual, à obsessão com o “eu” manifestada em todo o lado, do dia-a-dia nas redes sociais à quantidade de vezes que tanta gente, de músicos e outros artistas a concorrentes em reality shows e outros concursos televisivos, esses espaços onde se repete “tenho que ser igual a mim próprio” como oração de uma triste nova religião.

O que sabemos sobre quem ouvimos do outro lado da linha telefónica? Sabemos que estará em palco esta sexta-feira, que é sueco e que tem dois filhos. Esta última parte foi por nós deduzida com perspicácia, passe a imodéstia. “Peço desculpa por interromper a resposta, mas a minha filha está a oferecer-me um bocado de pudim”, disse a meio da entrevista. “Não posso acreditar! Acabei de entrar no meu quarto do meu filho” – voilá! – “e isto é muito curioso tendo em conta a nossa conversa”, exclamou enquanto gargalhava. “Ele está a desenhar uma bandeira sueca” – quando se deparou com tal cenário, o membro dos Goat que estamos em condições de afirmar ter pelo menos dois filhos, falava sobre a extrema-direita do seu país, sempre a erguer símbolos nacionais em manifestações xenófobas defensoras de um nacionalismo assente numa pureza que nunca existiu.

Tínhamos-lhe lido a descrição que um outro membro dos Goat – ou seria o mesmo – fizera há alguns anos sobre a sua banda. “Somos um culto voodoo do norte da Suécia que idolatra tudo, desde Shiva a Odin. E tocamos música com máscaras”. O senhor Goat, nosso interlocutor, aceita-a como descrição adequada. “Essa é uma das formas de nos descrever. Mas há muitas mais. Pode descrever-nos também como uma banda rock’n’roll. Banda rock’n’roll ou culto voodoo parece-me adequado”. Não interessa se a história do culto voodoo existente há centenas de anos em Korpilombolo é verdadeira ou não. Como todas as lendas, terá fundo de verdade.

Run to your mamma, do primeiro álbum, World Music

Juntos contra o medo

Korpilombolo foi fundada por “viajantes e aventureiros que regressavam trazendo com eles outras pessoas com outras experiências”, explica o senhor Goat. “A localidade em si é muito aborrecida. Não há muito para fazer. Mas nos seus arredores existe uma comuna como as que foram criadas nos anos 1970, mas esta é muito mais antiga” - ele diz isto e, naturalmente, pomo-nos a pensar nos Amon Düül e na comuna de radicais das artes e da política, em Munique, da qual emanou a banda alemã na década de 1960; imagimo-la porém povoada de jograis, artesãos e saltimbancos . Continua a porta-voz dos Goat: “Vive-se ali uma vida mais comunitária, em maior harmonia com a realidade espiritual. É sob diversas formas uma localidade moderna, mas as velhas tradições mantêm-se”, defende.

Não interessa tanto, repetimos, a percentagem de verdade do que nos conta. Interessa a natureza da música dos Goat, aquilo que a motiva, aquilo que querem projectar com ela e o efeito que tem em nós, que os vemos e ouvimos com os sentidos demasiado ocupados para nos preocuparmos com a realidade da lenda.

A música e, principalmente, um concerto dos Goat é realmente uma experiência congregadora. Em World Music, o frenesim rítmico do afrobeat e o delírios percutivos de rituais voodoo eram a matriz que se definia sob a torrente eléctrica. “Commune”,  por sua vez, é atravessado pelo serpentear da música maliana e tuaregue. Num e noutro, a vontade de nos chamar até si, de fazer do universo que criaram um espaço partilhado. Ao vivo, torna-se impossível resistir ao convite. Juntamo-nos. Fazendo-o, estaremos a contribuir para o objectivo dos Goat. “Penso que as pessoas se estão a juntar cada vez mais, mas da forma errada. Juntam-se nos seus pequenos grupos privados. 'Estamos juntos aqui deste lado e não gostamos daqueles outros juntos daquele lado'. É isso que toda a gente parece estar a fazer, em vez de se reunirem realmente, eliminando essas fronteiras”. O fenómeno, de resto, não é novo. “O Homem tem funcionado assim ao longo dos tempos, sendo que, na verdade, a maior parte das pessoas querem viver bem e manter a mente aberta ao relação ao outro. Os problemas são sempre criados por uma minoria que gosta de destruir esse bem-estar. E o problema nos tempos mais recentes”, acrescenta, “é que essas pessoas estão a receber mais atenção e, consequentemente, fazem mais ruído que anteriormente”. Ainda assim, este homem Goat é optimista. Ou melhor, “realista”, corrige.

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Na Suécia, a extrema direita representado pelos Democratas Suecos, nacionalistas e xenófobos, foi a terceira força partidária mais votada nas últimas eleições. Pretendem representar os verdadeiros suecos, os suecos puros, ou seja, brancos escandinavos católicos. São uma manifestação mais da intolerância da direita radical que cresce na Escandinávia, no Reino Unido, no centro e leste europeu. Apesar dos sinais inquietantes, o nosso interlocutor vê-os como derrotados à partida. “Todos eles querem que as suas culturas se mantenham de acordo com um ideal que construíram na sua cabeça. Dançariamos as mesmas danças e cantaríamos as mesmas canções para sempre, mas isso é impossível. Todos esses partidos procuram um beco sem saída. Porque não é assim que o mundo funciona. As pessoas viajam, encontram-se, misturam-se. Para quê tanto energia empregue a retardar o que é inevitável?”, questiona para, acto contínuo, responder. “Têm medo. Têm medo da mudança e do que é diferente. O que fazem agora terá um efeito nocivo. Se tivermos azar, viveremos um período realmente mau. Podemos atravessar um momento muito, muito feio, podemos ter que passar pela morte e pela guerra mas eles nunca atingirão o que ambicionam, porque a maioria das pessoas não quer viver dessa forma, porque nós, seres humanos, não conseguiremos sobreviver dessa forma”.

O senhor Goat e seus comparsas, suecos puros lá do norte, descendentes de viajantes que trouxeram consigo outras gentes e outros mundos, tocam rock psicadélico com centenas de anos – às malvas a verdade -, são experiência comunal globalizada decorada com túnicas e máscaras de proveniência tão diversa quanto os afluentes que desaguam no fluxo contínuo que é a sua música. Chamam-se Goat, vêm da localidade de Korpilombolo e fazem música do mundo. Melhor, fazem música com o mundo. Apesar de tudo, bendita humanidade.