Casa no campo

E no canto, o miúdo que fui a rir-se e o velho que hei-de ser a fazer-se. A minha casa no campo é entre as minhas orelhas, logo atrás dos olhos

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Nick Tiemeyer/Unsplash

À entrada, sobrevivência: comer, beber, foder, um banho de vez em quando, manter a criança viva e a sorrir, o tabaquito, um copito (senão ninguém segura esse rojão), saber passar um recibo verde electronicamente, a habilidade de morder a língua quando a legítima me mói, envelopes recortáveis das Finanças, telefonar à avó e vestir a t-shirt melhorzinha quando sei que vou ver a minha mãe.

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À entrada, sobrevivência: comer, beber, foder, um banho de vez em quando, manter a criança viva e a sorrir, o tabaquito, um copito (senão ninguém segura esse rojão), saber passar um recibo verde electronicamente, a habilidade de morder a língua quando a legítima me mói, envelopes recortáveis das Finanças, telefonar à avó e vestir a t-shirt melhorzinha quando sei que vou ver a minha mãe.

Primeira porta à direita, trabalho: uma confusão pegada, bibliografia a crescer pelas paredes, esquemas esquisitos desenhados nas paredes, fotografias, gravações, folhas pelo chão, ficheiros de computador maus de encontrar, citações avulsas (já não sei donde), uma ou outra ideia ainda a ganhar corpo e cor e cara, aulas manuscritas a letra grande, pautas fotográficas de estudantes de que não me lembro (alguns com adesivo na boca a ver se os macumbo, dianhos do capeta), o cenho carregado da primeira aula, algum faro, um pouco de jeito, dois ou três truques velhos, uma ou outra habilidade de quem faz o mesmo há montes de tempo.

Porta em frente, à esquerda (do lado do coração), a vontade de viver: janelas para o jardim (e o mar depois), muito riso sem regras, imensa pintura e fotografia a cobrir as paredes, ondas e ondas de música a encher o salão, um canto almofadado e soalheiro só para a poesia (com uma brisa gélida e uma manta de abafar o fumo azul do cigarro), o projector sempre preparado para a projeção, copos com canetas, tintas e pincéis, tesoura e montes de jornais, fita-gomada, banda-desenhada, a sensação de magia do teatro numa frágil caixa de vidro, uma ou outra série televisiva, um grande quadro ao Borges e outro ao Zeca e dois ou três barros da Rosa Ramalho (o nosso Picasso). Pelo meio o inútil do gordo do meu gato alapado à salamandra a encher os livros de pelo negro.

Corredor em frente, um grande armário em pau-brasil mesmo ao fundo, chapeado nas portas “Ipsa qvidem pretivm virtvs sibi”. Lá dentro só um livrinho do Kropotkin, um livrão do Marx, o “1984” do Orwell e por cima “A Comunidade” do Luiz Pacheco (para o sal do amor), dois hinos e muita, muita vontade.

Porta ao fundo à direita, “Aos amores” diz o letreiro em porcelana: vinte beliches se tanto, única fechadura a sério do edifício (com uma chave muito má de conseguir, mas é preciso cuspir na avó para a perder.. já aconteceu). Mãe, pai, irmãos e amigos, tios, padrinhos, primos, dolências de avós, piadas esotéricas, ex-namoradas promovidas, todos os filhos deles por mera associação, algum fumo, fotografias velhas, música de dançar, um piquenique de vez em quando, um sofá onde toda a gente já fez amor, os gatos e cães todos (mesmo os da Xana, os maus e tudo); só amor o que claro mete tias chatas e beijos cheios de batom, muito barulho, uma ou outra bulha, muito riso e silêncios confortáveis.

Última porta finalmente, a dispensa: a timidez obrigada à janela a sorrir de boca fechada (mas a falar muito, como sempre), a ambição e a inveja em dois vasos canopos (cabeças de chacal e babuíno) muito aferrolhados, alguns mortos, a vontade de navegar, a faca da ira num saco de plástico com dois nós bem dados (thanatos). O sexto vodka tónico e as mortalhas toalha-de-mesa na gaveta trancada; o medo da morte, um acerto de contas e as dúvidas teológicas na gaveta fechada; uma ou outra perversão sexual na entreaberta. A limpar o pó do chão a Vontade de Dançar de mãos dadas com a Louca da Casa e na grande cristaleira meia-dúzia de preciosidades: os óculos, tudo o que é beijos entre velhos, o ronronar dos gatos, o gargalhar da minha irmã e da garota, meia dúzia de manifestações mais cheias, os joelhos esfolados da perda de virgindade, a maneira como a sombra nocturna do sentido proibido da minha rua se divide equidistantemente na esquina, a minha cunhada no palco, a embriaguez “tout juste”, o puto da minha prima a disparar pelo relvado todo contente por já saber correr, todos os anões, qualquer pombo coxo, a sensação de acertar na palavra, duas pinturas (muito feias) das minhas, alguns olhares matinais da Mulher, os irmãos a entrar cá em casa comigo sem o banho tomado.

E no canto, o miúdo que fui a rir-se e o velho que hei-de ser a fazer-se. A minha casa no campo é entre as minhas orelhas, logo atrás dos olhos.