As pessoas são estranhas, mesmo nas curtas
Sobre Severed Garden, de Gonçalo Almeida.
O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
“Do you know how pale and wanton thrillful/ Comes death on a strange hour/ unannounced, unplanned for/ like a scaring over-friendly guest/ You’ve brought to bed”. Estes versos entoados por Jim Morrison, em 1978, incluídos no álbum An American Prayer, ecoam sem nunca serem tocados nesta curta de final de curso de Gonçalo Almeida. Severed Garden, título homónimo da canção do vocalista dos Doors, aventura-se pelo tema da maternidade e da impossibilidade de proteger a nossa prole desde o seu nascimento. Um mundo no qual, como na letra, a morte surge na hora estranha, sem se anunciar ou planear.
Desde o primeiro plano, numa incubadora de ovos de aviário, iguais àqueles com que lidamos todos os dias, mas dos quais eclodem baratas, como se nascessem naquele momento, este filme prepara-nos para um ambiente onírico e atormentado. Estamos perante uma futura mãe, Sophie, que não consegue lidar com a maternidade, já que através de diversos sonhos terríveis, vai confundindo a realidade da sua profissão como investigadora criminal – especificamente, um caso de um homem que assassinou uma criança, com sonhos acordados profundamente fóbicos.
Um dos pontos de maior interesse reside no argumento e na forma brilhante como se desenvolve, sem grandes dispositivos ou ilusionismos do olhar, simplesmente com uma premissa bem definida, potente e capaz de ressoar em qualquer um de nós. Mas há ainda um conjunto de elementos no filme que se tornam fulcrais para valorizar a excelente arquitectura de uma atmosfera que envolve o filme e que nos lança para os grandes hiperónimos antitéticos de Protecção e Receio.
O primeiro está profundamente associado ao útero, remetendo para o motivo da água, os ovos, o bebé, as ecografias, uma substância líquida viscosa que é atirada contra a janela do quarto onde se encontra, bem como as referências ao cordão umbilical e à placenta. Por outro lado, há todo um campo visual relacionado com o medo infantil da mitologia de contos, com lobos maus, insectos repelentes e sepulturas escavadas em jardins onde crianças se deitam em posição fetal. A presença destes elementos na curta não é meramente decorativa, pelo contrário, são parte integrante de uma construção de uma atmosfera narrativa com a qual Sophie age e reage (numa excelente interpretação da actriz francesa Elisa Lasowski).
Quanto ao argumento, este assenta num conceito onírico e na forma como a personagem Sophie vai entrando em sonhos e pesadelos sucessivos, enquanto está numa cama da maternidade à espera de entrar em trabalho de parto. A solenidade do momento torna-se numa angústia existencial sobre que controlo irá ter sobre a proteção de um novo ser. A narrativa desenvolve-se num interessante mise-en-abyme em que Sophie vai descendo, como na obra de Dante, confrontando cada vez mais os seus demónios, incluindo os da vida real, aqueles com que lida na sua profissão. É um argumento que propõe uma imersão nessa descida ao inconsciente, sem necessitar constantemente de nos chamar a atenção para o sonho que vem aí. Gonçalo Almeida confia no espectador, na sua paciência para observar a cena e na inteligência para construir mentalmente os trilhos sobrepostos que conduzem a protagonista à raiz dos seus receios.
O filme termina como começa, mas com um recém-nascido nos braços de Sophie e o seu olhar perturbado e longe de descansado, perante a fragilidade de ambos. Desejo repetir-lhe o conselho que o seu parceiro da polícia lhe diz: ”Listen: there are things beyond your control. You have to accept that…”. Talvez lhe pudesse proporcionar algum conforto, mas não é essa a ideia de Gonçalo Almeida, que numa entrevista afirma estar interessado naquilo que não compreende e que lhe é desconhecido. Sophie terá de aceitar a incerteza do desconhecido.
Texto editado por Jorge Mourinha