O encolhimento do espaço público
Se o espaço público é influenciado para se encolher, cabe aos Estados e aos cidadãos não desistirem dele.
Não está na moda classificar algo de bom como público. Com alguma razão ou sem razão nenhuma, o adjetivo “público” ganhou conotações desprestigiantes. Os exemplos estão aí: quando se fala de uma cegueira burocrática, logo se acrescenta “mesmo típico de funcionário público…”, quando se fala de um espaço devassado e malcuidado, logo se acrescenta “parece um espaço público” e os exemplos podiam multiplicar-se.
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Não está na moda classificar algo de bom como público. Com alguma razão ou sem razão nenhuma, o adjetivo “público” ganhou conotações desprestigiantes. Os exemplos estão aí: quando se fala de uma cegueira burocrática, logo se acrescenta “mesmo típico de funcionário público…”, quando se fala de um espaço devassado e malcuidado, logo se acrescenta “parece um espaço público” e os exemplos podiam multiplicar-se.
Assistimos à elevação do privado como critério de racionalidade, de qualidade, de contas certas, de eficiência. Em abono da verdade, não podemos negar que em muitas situações a iniciativa privada encontra, em áreas bem específicas dos serviços ao cidadão, uma qualidade de serviço que os serviços sobre a alçada pública não conseguiram igualar. Também aqui existem múltiplos exemplos, mas basta lembrar o atendimento de clínicas privadas em análises clínicas para estabelecer comparações em que a iniciativa privada fica a claramente a ganhar. E, a partir destas boas experiências, surgiu uma ilação que parece lógica: se estes serviços conseguiram boas práticas em termos de atendimento, então o melhor que os serviços fossem organizados como os que são providenciados pela iniciativa privada. Parece uma boa ideia mas… a questão é que esta transposição que parece simples, não o é. Não é por três razões: porque o serviço não é universal, porque não é independente e porque não pode ser alargado a todas as necessidades da população. Vamos ver: antes de mais o serviço não é universal. Não é universal porque se restringe a pessoas que obtêm a sua credenciação não por serem cidadãos, mas sim por terem meios para pagar o serviço ou filiações que lhes assegurem o benefício. E um serviço que seja bem financiado e circunscrito implica melhorias óbvias de produtividade e de atenção ao cliente. Por outro lado, muitos dos serviços privados não são independentes porque, no fundo vivem em grande parte, como prestadores de serviços aos serviços públicos. A recente polémica sobre os colégios privados chamou eloquentemente a atenção para este assunto: os colégios empertigaram-se pelo facto de uma parte significativa das suas receitas poderem deixar de ser pagas pelo Estado. Estes serviços privados não podem, enfim, ser alargados a todas as respostas que as necessidades dos cidadãos implicam. A iniciativa privada busca “nichos de mercado” mas os seus modelos têm dificuldade em responder a necessidades cuja resposta é muito dispendiosa ou necessita de uma rede alargada de serviços que se devem coordenar.
Apesar destas dificuldades, prevalece a ideia que todos os serviços (e mesmo os países) se deviam organizar com empresas privadas, olhando o “deve e o haver”, olhando “o mercado” e a rentabilidade. As virtualidades dos serviços públicos, como por exemplo o serem universais, o serem “republicanos” (no sentido de serem isentos e equidistantes de todas as ideologias), o facto de serem os verdadeiros serviços que providenciam as condições para o exercício dos Direitos Humanos, continua a ser consistentemente esquecido e menosprezado. Assistimos a um verdadeiro encolhimento do espaço público. Espaço em termos reais e em termos figurados. Em termos reais porque os espaços são cada vez mais habitados, confinados, privados e vigiados; em sentido figurado porque os espaços em que se asseguram os serviços para todos os cidadãos, e que são, na verdade, os garantes da equidade e da justiça social, estão desvalorizados e desapoderados. Assim se entende melhor o que quer realmente dizer “Estado mínimo”: um Estado que deixe os seus cidadãos entregues à falácia da liberdade de escolha.
Por tudo isto é importante continuar a apostar na acessibilidade, na proximidade, na disponibilidade dos serviços públicos. Esta aposta implica que sejam muito bem considerados os prejuízos que em termos de cidadania tem um serviço inacessível, um serviço burocratizado ou complexo. A procura de melhores soluções não passa definitivamente pela extinção ou o estrangulamento dos serviços privados: eles têm o seu lugar não só em matéria de diversidade, mas também do exercício de outros valores organizacionais que são essenciais à pluralidade da nossa sociedade. Por fim, precisamos de continuar a criar uma nascente atitude de serviço público em todos os servidores públicos. São eles que estão na linha da frente dos Direitos Humanos, são eles as pessoas que quotidianamente lutam por serviços disponíveis, atentos, rápidos e eficientes para todos os cidadãos, quer seja na Educação, na Saúde, nas Finanças, na Segurança, enfim em todo as áreas nevrálgicas da sociedade.
Se o espaço público é influenciado para se encolher, cabe aos Estados e aos cidadãos não desistirem dele, não se conformarem com a sua desvalorização e cabe também aos servidores públicos (que nobre designação…) usarem todo o seu brio profissional para que a sua profissão seja valorizada e respeitada. O alargamento do espaço público é também com todos nós.
Presidente da Pró-Inclusão /Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, Conselheiro Nacional de Educação