Dentistas e Angola atrasaram arranque da CPLP

É multilateral, paritária, nada tem a ver com a Commonwealth e obrigou a francofonia a mudar. É o sinal de que os traumas de três guerras coloniais simultâneas foram ultrapassados. Apesar da heterogeneidade dos seus membros, ajudou à criação de um novo país: Timor.

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Foi mais de uma década antes do seu nascimento e baptismo que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi lançada como ideia para a mesa pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama numa reunião, em Cabo Verde, dos cinco membros dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa].

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Foi mais de uma década antes do seu nascimento e baptismo que a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi lançada como ideia para a mesa pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama numa reunião, em Cabo Verde, dos cinco membros dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa].

A proposta foi amadurecendo mas os timings tardaram, marcados por escolhos no início dos anos 90 do século passado. A polémica da regularização dos dentistas brasileiros teve de ser negociada antes com Brasília para que o gigante do América de Sul de língua portuguesa estivesse de acordo. E Luanda só desbloqueou a sua posição depois de Mário Soares ter terminado os seus dois mandatos como Presidente da República. Hoje, a CPLP faz 20 anos.

“Em Junho de 1995, decorre em Lisboa uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros na sequência de um encontro idêntico realizado em Fevereiro do ano anterior, em Brasília, que estrutura a comunidade”, recorda Jaime Gama, chefe da diplomacia portuguesa de 1983 a 85 e entre 1995 e 2002. “Contudo, havia dois bloqueios políticos, o Brasil não pretendia que fosse o Governo de Cavaco Silva a avançar com a CPLP por causa dos problemas das equivalências dos dentistas e Angola não queria que a constituição da comunidade ocorresse com Soares como Presidente da República de Portugal”, revela.

Foi em 1983, durante uma visita a Cabo Verde, que Gama propôs uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa. O mundo vivia tempos de Guerra Fria e o Brasil estava no processo de transição democrática. Passo ilustrativo da potencialidade operativa de uma tal organização fora a inclusão, naquela altura, da redacção em português da Convenção do Direito do Mar nas Nações Unidas.

“A CPLP representa a comunidade de uma das línguas mais faladas da comunidade internacional, é uma organização multilateral onde os membros têm uma representação paritária, não tem os constrangimentos hierárquicos da Commonwealth [a chefe é a Rainha de Inglaterra], e obrigou a uma profunda reforma do espaço da francofonia que passou a ter uma estrutura decalcada da Comunidade de Países de Língua Portuguesa”, destaca Jaime Gama.

“O importante na CPLP foi Portugal ter avançado com um modelo multilateral e inter-regional que, ao alargar-se a Timor, passou a pluricontinental, com o denominador comum da língua, da história e da cultura”, assinala Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais. “Contra a linha dominante na altura assente nos PALOP, Portugal institucionalizou uma relação tricontinental que tem também a ver com o processo de democratização do Brasil”, anota: “Com o fim da Guerra Fria, este sistema multilateral é confirmado.” A diplomacia portuguesa vivia momentos desempoeirados e de grande actividade na sequência da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE.

Não foi um passo pequeno. “Sendo uma comunidade que tem atrás de si uma história de três guerras coloniais simultâneas, é natural que as coisas demorassem a amadurecer”, constata Francisco Seixas da Costa, antigo embaixador de Portugal em Brasília e ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus: “A CPLP tem países de grande heterogeneidade ideológica e de dimensão, pelo que não é de espantar que tenha sido difícil encontrar um denominador comum.”

“A CPLP é a organização internacional possível de países com vários níveis tecnológicos, é uma estrutura de cooperação para o desenvolvimento”, considera. “A articulação entre nós não é problema, a questão é saber o valor acrescentado da ligação para cada um dos países-membros, não há concorrência interna na CPLP, o potencial concreto de cada um favorece todos”, afirma o diplomata.

“Este tipo de organizações tem vantagens pelo passado, a história, a língua e a relação pós-colonial, mas há óbices e obstáculos como a assimetria dos seus membros”, analisa António Martins da Cruz, ministro dos Negócios Estrangeiros entre 2002 e 2003. “Os países tendem a organizar as suas políticas externas na base das suas prioridades, Portugal na União Europeia, Angola na SADC [Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral], Moçambique também está na Commonwealth, Guiné-Bissau e a Guiné Equatorial, na francofonia”, observa. E conclui: “Assim, na CPLP há estratégias mais fragmentadas do que comuns.”

Por isso, Martins da Cruz não deixa de enfatizar “que as mais-valias da CPLP são assimétricas, Portugal tem a mais-valia de juntar os países de língua portuguesa, onde o ‘pai’ é o Brasil, pela sua dimensão”.

Nas valências da diplomacia portuguesa, a CPLP representou um salto face aos PALOP — Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe — e da retórica de acusação ao colonialismo português. Passou-se ao terreno da cooperação multilateral e à ajuda ao desenvolvimento em detrimento das sempre inquinadas referências bilaterais.

Aposta ainda não está ganha

É no terreno, para o ex-chefe da diplomacia de Durão Barroso, que se vêem os frutos do labor da comunidade. Na modernização das máquinas administrativas dos diversos membros, na ajuda à estruturação das políticas sectoriais em Estados recentes e à monitorização por Portugal e Brasil desses projectos. Seixas da Costa comparte este prisma. “Em vários sectores técnicos, cerca de 70, temos trabalhado de forma positiva, como a educação, transportes ou formação profissional. Neste campo, as coisas funcionam bem, o que para países com menos recursos é extremamente positivo”, destaca.

Jaime Gama coloca a CPLP no radar internacional, por um facto pouco comum. “A comunidade foi decisiva para a emergência de um novo país no mundo, Timor”, recorda.

Contudo, a aposta não está antecipadamente ganha. A fragmentação das estratégias, a heterogeneidade dos níveis de desenvolvimento e as consequências da globalização levam alguns membros a ter naturais interesses estratégicos próprios. Brasil, Angola e Moçambique são disso exemplo. Como de tal facto é prova a crise económica que varreu Portugal. Casos que levaram a agendas autónomas e, no caso de Lisboa, a uma fragilização internacional das suas posições por via das dificuldades orçamentais.

A adesão da Guiné Equatorial, em 2014, à organização é um processo que condensa esta realidade movediça. Malabo teve patrocinadores fortes como Angola, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau por o país de Teodoro Obiang lhes ser vital para o controlo do sistema de transportes e comunicações no sensível Golfo da Guiné. E Luanda, a partir da Guiné Equatorial, passa a dispor de uma “varanda” sobre a Nigéria, país com o qual tem uma rivalidade geopolítica.

Finalmente, o Brasil, outro dos mentores da adesão do regime de Obiang, jogou a carta dos interesses. Lula da Silva visitou Malabo como Presidente e voltou, em 2011, como representante de uma missão oficial em plena ofensiva do seu país na África subsariana, nomeadamente das construtoras atentas às oportunidades das obras de infra-estruturas. “Negócios são negócios”, sintetizou então Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores com Lula.

“Fui sempre defensor da entrada da Guiné Equatorial porque, se faz parte da francofonia, pode estar na CPLP. Ou Portugal é mais respeitador dos direitos humanos que a França?”, pergunta Martins da Cruz. “Convém não esquecer que havia pressão dos países africanos, sobretudo de Angola. É melhor uma Guiné Equatorial integrada numa plataforma geopolítica do que estar isolada. Foi melhor terem aceitado os princípios da CPLP a ritmos diferentes dos outros”, refere.

Esta opinião não é unânime. “A entrada da Guiné Equatorial contra a vontade de Portugal mostra que os valores determinantes são os de uma real política de interesses, a Guiné Equatorial desmobilizou a CPLP, a identidade ética foi muito afectada pois a Carta Constitutiva da Comunidade defende o tendencial respeito dos princípios democráticos”, lamenta Seixas da Costa.

“O problema não é a Guine Equatorial falar ou não português, é ser um país extremamente corrupto, foi uma péssima escolha e um sinal negativo, a dimensão de defesa do Estado de direito da CPLP foi prejudicada”, acusa Carlos Gaspar. “A evolução da Guiné Equatorial deve ser avaliada e a luta contra a corrupção deve levar a iniciativas autónomas de Portugal e do Brasil”, propõe.

“A adesão da Guiné Equatorial teve origem num momento em que a CPLP pensou que ia ser uma OPEP linguística e Angola quis converter o grupo dos cinco [países africanos] em seis”, diz, incisivamente, Jaime Gama. Foram cálculos com o preço do petróleo em alta, baseados em que 50% dos recursos petrolíferos descobertos na última década estão em Estados-membros da CPLP. E a Guiné Equatorial tem a terceira maior produção petrolífera a sul do Sara após a Nigéria e Angola, o que o converte no país mais rico da África subsariana, com 35 mil dólares (31,5 mil euros) de rendimento per capita, embora 78% dos seus habitantes vivam abaixo do limiar da pobreza.

“Portugal foi demasiado complacente nas exigências ao nível dos direitos humanos, o que abriu as portas ao Brasil e Angola para a adesão da Guiné Equatorial, que internacionalmente retirou credibilidade à CPLP. Foi o pragmatismo bacoco de quem navega à vista”, recorda um diplomata jubilado, que esteve na génese da Comunidade.

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