Líder turco insiste na urgência de repor pena de morte após golpe falhado

Mortos sobem para 290, detenções de alegados golpistas ou simpatizantes são já 6000, incluindo muitos militares, juízes e procuradores. Em Ancara, Governo repete insinuações de um envolvimento dos Estados Unidos na tentativa de o derrubar.

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Milhares de turcos juntaram-se na última homenagem às vitímas de Istambul Aris Messinis/AFP

Recep Tayyip Erdogan pode não ter orquestrado o golpe de Estado militar fracassado para o derrubar (uma teoria que muitos repetem, num país muito dado a teorias da conspiração e medo de fantasmas), mas aceita-o como “um presente de Deus” para “limpar” as instituições dos opositores – o “vírus”, o tal que “como o cancro, se propaga a todo o Estado”, nas palavras do Presidente turco.

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Recep Tayyip Erdogan pode não ter orquestrado o golpe de Estado militar fracassado para o derrubar (uma teoria que muitos repetem, num país muito dado a teorias da conspiração e medo de fantasmas), mas aceita-o como “um presente de Deus” para “limpar” as instituições dos opositores – o “vírus”, o tal que “como o cancro, se propaga a todo o Estado”, nas palavras do Presidente turco.

Uma das armas de que Erdogan não dispõe para fazer avançar esta “limpeza” chama-se pena de morte, que a Turquia aboliu definitivamente quando ele já era primeiro-ministro, em 2004, para assim cumprir os critérios de adesão à União Europeia (na prática, há 20 anos já ninguém era executado no país).

Mas bastaram poucas horas depois do primeiro golpe de Estado falhado da história da Turquia, e o primeiro tentado desde 1997, para que alguns dos turcos que têm celebrado o fracasso da conspiração clamassem nas ruas pelo regresso da pena capital. Outro “presente dos céus” para Erdogan: “Não podemos ignorar a exigência da pena de morte”, dizia durante a tarde a uma multidão reunida, primeiro junto à sua casa, em Istambul, depois no funeral de algumas das vítimas dos confrontos que se seguiram ao golpe, na mesquita Fatih da gigantesca metrópole.

A possível reposição da pena de morte, para executar, precisamente, os alegados golpistas, foi referida pelo primeiro-ministro, Binali Yildirim, ainda no sábado, quando o Parlamento se reuniu para condenar, em uníssono, a tentativa realizada por uma parte dos militares (sem o apoio das principais chefias). Mas Erdogan tem sempre encontrado forma de regressar ao tema, de cada vez (e são muitas) que se dirige à multidão. Aliás, ainda o golpe de 12 horas ia a meio e já o actual chefe de Estado prometia que os envolvidos iriam “pagar um preço alto”.

Depois de ter pedido aos turcos que saíssem à rua para salvar o seu poder e do seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), Erdogan roga-lhes agora que “fiquem na rua até sexta-feira”, caso a ameaça esteja por controlar.

Ao longo do dia, houve pelo menos duas situações de trocas de disparos: uma no segundo aeroporto de Istambul, o Sabiha Gökçen, onde pessoas que terão estado envolvidas no golpe acabaram por se render à polícia; outra na base área de Konya, no centro do país, onde foram detidos sete militares.

O pedido aos turcos para “ficarem na rua” foi feito enquanto Erdogan participava nas cerimónias fúnebres de algumas das vítimas dos confrontos que opuseram polícia e civis aos soldados que se posicionaram em lugares estratégicos das duas principais cidades turcas (Istambul e a capital, Ancara) perto da meia-noite de sexta-feira. O Ministério dos Negócios Estrangeiros fez subir o balanço de mortos para 290 (destes, 104 serão revoltosos), havendo ainda 1400 pessoas feridas.

Foi durante a homenagem às vítimas que o político que nos últimos anos entrou numa deriva autoritária, reprimindo opositores e democratas com mão pesada, pediu aos turcos que permaneçam alerta e se afirmou determinado a eliminar “o vírus”. “Vamos continuar a eliminar o vírus de todas as instituições do Estado […]. Infelizmente, este vírus, como um cancro, propagou-se a todo o Estado.” A insurreição, assumiu, “é um presente de Deus para nós porque será o pretexto para limpar o nosso exército”.

“A grande limpeza”

As detenções já se aproximavam durante a tarde das 6000 – entre 2839 soldados e 426 juízes e procuradores acusados de envolvimento no golpe ou de apoio ao imã Fettulah Gülen, exilado nos Estados Unidos e acusado de ser o instigador, mais quase 3000 pessoas que o Governo não diz quem são. A estes números é preciso somar os perto de 2800 juízes e procuradores afastados dos seus cargos entre sábado e domingo, e ainda cinco sites censurados por “posições contrárias” ao Presidente.

O golpe de Estado fracassado não é “um cheque em branco” ao Presidente Erdogan para fazer “purgas”, notou o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Marc Ayrault, ecoando uma preocupação manifestada por vários dirigentes.

“A grande limpeza continua”, assegurava, por seu turno, o ministro da Justiça turco, Bekir Bozgad, avisando que o número de detidos deveria aumentar nas horas seguintes.

Um dos oficias detido é o comandante da base área de Incirlik, no Sul da Turquia, a mesma que os Estados Unidos e os seus aliados usam para bombardear alvos do Daesh na Síria e no Iraque. As ofensivas a partir da base, a 110 quilómetros da fronteira síria, estiveram suspensas ao longo de todo o sábado, e pensa-se que isso se devia apenas ao encerramento do espaço aéreo para aviões militares depois da tentativa de golpe. Afinal, era algo mais, mas as operações já foram entretanto restabelecidas.

Incirlik, onde estão em permanência 1500 norte-americanos, já funcionava ao final do dia de domingo, ainda que a corrente eléctrica permanecesse cortada.

“Totalmente falso”

Interrogado por jornalistas, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, sugeriu que as dificuldades sentidas pelos EUA em Incirlik poderiam resultar do facto de a base ter sido usada para reabastecer pelos aviões que apoiaram o golpe. Kerry, que no sábado já tinha dito que só analisaria o pedido de extradição do suposto golpista, Gulën, depois de Ancara lhe mostrar “provas concretas” do seu envolvimento, viu-se obrigado a desmentir que Washington soubesse do golpe antes de este se desenrolar e até a negar o envolvimento dos americanos.

É “totalmente falso”, disse Kerry, afirmando ainda que estas insinuações “prejudicam as relações bilaterais”. Para além das sugestões de participação – Erdogan, nos seus discursos, quando se dirige ao Presidente Barack Obama para pedir que Gülen seja extraditado refere-se sempre a “organizadores da conspiração”. O ministro do Trabalho do AKP, Suleyman Soylu, foi mais longe e disse mesmo acreditar que Washington está por trás do golpe, em declarações à emissora Haberturk.

Gülen, que desmente qualquer envolvimento, vive na Pensilvânia desde 1999. Na altura, era aliado de Erdogan, e ainda viria a ajudá-lo, depois da chegada do AKP ao poder (em 2002) a dobrar os militares, habituados até então a manobrar os políticos, a polícia e os magistrados. Na Turquia, é procurado por terrorismo. O pregador que inspirou um movimento político fundou uma vasta rede de escolas espalhada pelo mundo – agora, Ancara quer que os membros desta rede sejam todos extraditados para a Turquia e exige ver essas escolas encerradas.

Se Erdogan já se julgava dono e senhor da Turquia antes deste fim-de-semana, e queria eternizar-se no poder, agora estará mais galvanizado do que nunca. Que vai usar tudo isto para se reforçar internamente é certo. Resta saber até que ponto está disposto a pôr em risco as relações com os aliados externos.