Bairro Padre Cruz quer ser a “maior galeria de arte pública da Europa”
Estima-se que até ao final de Julho o Bairro Padre Cruz, em Lisboa, tenha cerca de 90 murais. Um terço dessas pinturas está a ser realizado durante este mês. A intenção é levar a arte aos moradores e criar roteiros turísticos.
Desde 24 de Junho que os olhares dos moradores do Bairro Padre Cruz, em Carnide, Lisboa, se têm fixado nas paredes dos prédios. O amarelo pálido das fachadas está a ser invadido por “pinturinhas”, como diz Maria do Céu Nunes. A viver há 55 anos no bairro, faz questão de referir que gosta "muito" de morar no lote 2.
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Desde 24 de Junho que os olhares dos moradores do Bairro Padre Cruz, em Carnide, Lisboa, se têm fixado nas paredes dos prédios. O amarelo pálido das fachadas está a ser invadido por “pinturinhas”, como diz Maria do Céu Nunes. A viver há 55 anos no bairro, faz questão de referir que gosta "muito" de morar no lote 2.
Quando começou a ver que o seu prédio não seria um dos incluídos no projecto Criar mudança através da arte urbana, porque é um lote comprado e ter-se-ia de pedir autorização ao administrador, fez uma sondagem aos vizinhos e apercebeu-se de que a maioria concordava com a pintura. “Somos 12 inquilinos e nove apareceram na reunião de sábado. Na terça-feira seguinte, começou logo a intervenção”, diz, revelando a forte envolvência dos moradores no projecto.
Maria do Céu Nunes nunca tinha assistido à elaboração de um mural, apenas na televisão. Mas nunca teve dúvidas: “Quando vi a primeira de todas, do Utopia, achei que aquilo era bonito. Há aqui fachadas degradadas e isto é uma solução”. É a olhar para a expressão do bebé já pintado na parede e para os sapatos do rato Mickey sobre o azul-escuro que cresce o sentido bairrista: “A nossa rua vai ser a mais bonita”, acredita.
Esta moradora sempre se sentiu bem no bairro, e destaca a sua “cultura de rua”. As brincadeiras da sua infância aconteceram ali: “Estivesse a chover ou a fazer sol, eram sempre na rua”. Já reformada, acompanha agora o crescimento do neto, e até já tem falado com ele sobre o mural. “Ainda ontem, quando o fui buscar ao infantário, ele disse-me logo: ‘Avó, são os sapatos do Mickey?’ E eu: ‘Não, são os do Francisco’.”
O Francisco é o filho de Smile, o artista que está em cima de uma plataforma de seis metros a pintar a empena do prédio. O seu trabalho foca-se no fotorrealismo e, desta vez, usou uma foto mais pessoal. O artista que já passou por projectos na Quinta da Fonte e na Quinta do Mocho, e que pintou a sua primeira fachada num bairro social, em Olhão, em 2010, soube desta iniciativa através do Facebook, há três meses. Depois, foi feita uma reunião, onde foi explicada a envolvência com os moradores, e tinha tudo a ver com o seu trabalho: “Faço workshops com jovens e crianças e achei que esta era uma boa oportunidade”.
A fachada do lote 2 não era a sua tela inicial e teve de adaptar o projecto. “Foi um pouco às escuras, não sabia bem o que havia de fazer”. Lá começou e, passados três dias, já está quase a terminar, só falta a frase que faz parte da mensagem que quer passar: “Wanna be an artist” ("Quero ser um artista").
Smile faz parte da terceira escola de graffiti em Portugal. “Já vi muita gente a chegar e a partir”, conta. Agora tem visto mais gente a entrar. “Há um pico muito grande, desde designers a pintores de telas. Toda a gente está a vir para a rua, porque viu que é uma forma muito fácil de ganhar fama e dinheiro”. Mas alerta: “Não vai haver bairros sociais para pintar a toda a hora”.
A pré-história dos graffiti em Portugal
“O bairro já teve uma pré-história dos murais quando ninguém falava disso. Aqui é que descobriram os graffiti mais antigos da cidade de Lisboa”, revela Paulo Quaresma, da Boutique da Cultura. O concurso que motivou estes “graffiti em madeira” foi realizado por uma associação juvenil local. Há um ano, a Boutique da Cultura e a Crescer a Cores – Associação de Solidariedade Social candidatavam-se para o programa BIP/ZIP da Câmara Municipal de Lisboa. O projecto arrancou a 15 de Outubro com a formação de jovens do bairro e com a procura de artistas. A fase “visível” começou no dia 24 de Junho e, até 31 de Julho, vão ser 30 as intervenções, a juntar às 60 já existentes.
“Este bairro é um exemplo para muitos outros sobre o que é a vida em comunidade e o movimento associativo”, diz Paulo Quaresma, destacando que esta não é uma intervenção para combater a insegurança, de que muitas vezes se fala. O Padre Cruz tem cerca de 8000 habitantes e é considerado o maior conjunto habitacional municipal da Península Ibérica. Paulo Quaresma refere que o grande objectivo é “embelezar" o bairro, e não fechar a arte nos museus. “Este bairro é um ponto na ponta da cidade, porque atrás daqueles caniços já é Odivelas”, salienta, referindo que a ideia é mostrar que o espaço pode ser visitado como outra zona central da cidade. Para isso, destaca também o hostel para jovens na antiga escola e o Centro Cultural de Carnide. “Foram colocados aqui estrategicamente para que as pessoas da freguesia fossem trazidas para dentro do bairro”, afirma.
O projecto termina no dia 15 de Outubro e, no final de Setembro, irá ser lançado um livro para que o visitante pegue e crie um roteiro. Enquanto isso não acontece, os moradores vão fazendo pedidos a Paulo Quaresma sempre que o vêem na rua: “Queremos aqui um desenho bonito”. “É muito interessante, porque no primeiro dia de intervenção ninguém gosta. Começam a dizer com muito receio: ‘O outro está mais bonito, este vai ficar feio. Mas ele não vai pintar o resto?’ Depois, quando vêem no final, já dizem que é mais bonito do que o do vizinho.”
Paulo Quaresma diz que basta ir ao Facebook para se notar o sentimento de pertença. “As pessoas das próprias janelas tiram fotografias e dizem: ‘Visitem o meu bairro'”, diz com satisfação, salientando que esta será a "maior galeria de arte pública da Europa".
Envolver as várias gerações
Mariana Quadros já esteve a ajudar a pintar uma das fachadas. “Gostava de seguir isto”, diz, convicta, a moradora. Terminou o 9.º ano e quer seguir Artes no secundário. É uma das voluntárias do programa de formação de jovens. “Ajudo os artistas a deslocarem-se no bairro, que eles não conhecem, porque o bairro ainda é grande”. O artista que Mariana ajuda é Francisco Camilo, que assume nunca tinha visitado o Padre Cruz. “Desde que cá cheguei, achei-o muito acolhedor”, afirma. Desde a Mariana, que o ajuda, às senhoras que da janela observam a sua pintura na parede cor-de-rosa, Francisco não podia estar a sentir o contacto com os moradores de forma mais autêntica. “Hoje deixei as minhas latas de tinta com as senhoras da janela para ir almoçar. São umas parceiras aqui na vigilância”, brinca.
Por isso, apesar de o tema ser completamente livre, Francisco decidiu fazer algo relacionado com a envolvente. Uma rapariga do grupo de voluntários da Boutique da Cultura deu-lhe uma fotografia de uma amiga e o artista apenas fez algumas alterações. “A ideia era desenhar a cara como se estivesse a sair da água. Houve a intenção de me ligar com o bairro e com as pessoas”, confessa.
Perto de Francisco Camilo, está Marta Mateus. Aliás, Marta tem de estar sempre por perto quando os artistas precisam de algo; é ela a coordenadora do plano de logística do projecto. Nesse papel vem notando que um dos benefícios do projecto tem sido a comunicação entre artistas e moradores ao longo do processo da pintura. “Já tivemos um morador que nos deu água, nos guardou as tintas e até nos ofereceu legumes. Eles próprios têm esse cuidado. Isto não é só nosso, é de todos e é um trabalho para todos”, esclarece.
Além da dinâmica interna, o projecto também serve para criar competências e estabelecer uma ligação com o exterior. “Tive uma senhora que acompanhou uns turistas desde o Campo Grande até aqui. A senhora só sabia dizer thank you e conseguiu trazê-los”, diz com orgulho. Conhecedora dos vários cantos do bairro, Marta revela que uma das pinturas que mais a entusiasma é a do lote 117, na Rua de Barcelona. “Há pessoas que já me disseram que nunca vão para aquela parte do bairro, mas que o desenho do SKRAN vai chamar gente para aquela parte”, aponta, dizendo que esta é considerada a zona mais conflituosa, onde há casas que nem têm portas ou campainhas.
SKRAN começou a manejar os rolos e o pincel com o entusiasmo que sempre coloca nos seus projectos. “Caí aqui de paraquedas, nem conhecia as fachadas”, diz. Contudo, quis que o seu desenho estivesse relacionado com o bairro. Ainda procurou uma fotografia do Padre Cruz, mas não eram muito nítidas. É a mostrar o desenho ainda numa folha A4 que explica: “Pensei juntar as várias gerações. Comecei com a cara de um velho, que passa para um adolescente e depois termina com uma criança. A ligação é quase como se fosse um respeito pelos velhotes e pensarmos no futuro com os mais novos”, explica.
Para estar no bairro a pintar, SKRAN recebeu ajudas de custos para deslocação e alimentação, no valor de 120 euros, mas revela que esta é uma forma de divulgar o seu trabalho, tal como acontecerá no festival de street art em que vai participar em Outubro, em São Paulo, no Brasil. “Esses festivais acabam por ser também uma publicidade para as empresas e galerias. As galerias andam sempre a par desses festivais para poderem contratar novos artistas”.
Enquanto SKRAN pinta, Marta continua a dar assistência debaixo de um sol que já assinala o meio-dia. Já colocou combustível na grua e vai buscar água a casa de uma moradora. Entretanto, numa breve paragem, diz que o diálogo tem sido essencial para que se compreenda a importância da arte urbana no bairro. “Ainda no outro dia uma senhora me dizia que não gostava destes desenhos, mas eu disse-lhe: ‘Olhe que isto pode dar emprego aos jovens com as visitas turísticas’. E ela: ‘Ah, então assim já gosto’”. Ainda faltam intervenções, mas já tem uma certeza: “O bairro vai ficar lindo!”
Texto editado por Abel Coentrão