O espaço da vivência
Sobre A Casa ou Máquina de Habitar, de Catarina Romano, e Pronto, Era Assim, de Joana Nogueira e Patrícia Rodrigues.
O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde –Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do workshop Crítica de Cinema realizado durante o Curtas Vila do Conde –Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
O quarto testemunho, um dos femininos, em A Casa ou Máquina de Habitar (2016) de Catarina Romano, refere “as casas que trazemos connosco”. Ao mesmo tempo, Pronto, Era Assim (2015), de Joana Nogueira e Patrícia Rodrigues, que se ambienta num sótão, mostra-nos objectos arrumados que desvelam estórias depositadas naquele espaço de esquecimento.
Ambos escolheram a animação e o meio do documentário para se focarem na experiência humana e na bagagem que acumulamos ao longo da vida, personificada em caixas, espaços, atitudes ou objectos do quotidiano. Habitamos não apenas casas, mas domiciliamos nos objectos e nos espaços que nos rodeiam a interação efémera e fugaz do nosso dia-a-dia. Estes filmes convidam-nos para as suas casas, para que possamos ouvir o que as “coisas” nos querem dizer.
O filme de Catarina Romano, que abriu a Competição Nacional, apresenta cinco testemunhos sobre uma casa como pano de fundo, abordando a necessidade de mudança, a ausência pessoal, a casa como espaço mais tradicional, a realidade de apropriação de um domícilio e a observação do exterior através do anonimato de uma janela.
Se no primeiro testemunho há uma volumetria das caixas, no segundo a ausência de cor mescla-se com a ausência da voz que afirma: ”Quando estás no limbo estou mais perto que longe“; ao passo que, no terceiro, a tradicionalidade expressa-se pelo bordado em ponto cruz; no quarto depoimento, há uma planta arquitectónica da casa que modela a forma de ocupação que vamos estabelecer.
Da mesma forma, Pronto, Era Assim usa o dispositivo da animação stop-motion conjugada com pequenos apontamentos em 2D na mesma imagem para ilustrar memórias mais vividas que os objectos comunicam. Com outras estratégias, mas com uma preocupação comum ao filme de Catarina Romano, os objectos do quotidiano são utilizados como metonímias das profissões e das relações que existem com o discurso das personagens.
Assim, entre outras estórias, uma balança conta-nos como começou a trabalhar no mercado e, com uma ironia orgulhosa, exalta a relação com o marido, antes do casamento: “Fiz a minha filha de pé, nunca me deitei com ele!”; uma caixa de música, que se divorciou muito nova, descreve as suas viagens; noutra estória, uma cafeteira italiana, com a esposa em cima e o marido em baixo, descreve-nos uma história de amor deliciosa, pontuada com um engano propositado na mercearia, uma confusão entre café e colorau que parte para um amor construído por palavras escritas em cartas, bilhetes, aerogramas, e concretizado na solenidade do texto de um casamento por procuração.
Uma das questões centrais abordadas nestes filmes prende-se com a forma como o documentário não se esgota na narração de experiências pessoais e de mero documento. Este meio é mestre em transmitir sensações universais da vivência do ser humano, em abrir a bagagem que transportamos connosco e fazer-nos sentir o peso emocional dos anos que respiramos entre amanheceres e pores do sol.
A especificidade destes filmes e o seu maior valor – o storytelling – é a actividade mais quintessencial da humanidade à volta de uma fogueira, mas nestes filmes não sentimos o calor da chama, sentimos sobretudo as claridades e as sombras da animação, bem como o peso das texturas na técnica de stop-motion. Principalmente, ouvimos as vozes e entrevemos os rostos de quem nos acompanha – os primeiros, anónimos, os segundos, anciãos de um lar.
Texto editado por Jorge Mourinha