O carimbo estigmatizante
É louvável a decisão de eliminar a imposição brutal e acintosa de um carimbo que mancha a dignidade dos desempregados.
O Parlamento vai esta semana aprovar uma lei que se apresenta como uma das medidas mais importantes da sessão legislativa pelo que significa de reconhecimento e reconquista de dignidade humana. Trata-se da anulação da obrigatoriedade dos desempregados se apresentarem de quinze em quinze dias, perante as autoridades, para que estas lhes coloquem um carimbo num documento, como forma de fiscalizar e de comprovar a sua situação de desempregados. Anuncia-se assim o fim de um carimbo que em si mesmo e na sua brutalidade burocrática simboliza uma estigmatização absurda de cidadãos pelo Estado numa sociedade democrática.
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O Parlamento vai esta semana aprovar uma lei que se apresenta como uma das medidas mais importantes da sessão legislativa pelo que significa de reconhecimento e reconquista de dignidade humana. Trata-se da anulação da obrigatoriedade dos desempregados se apresentarem de quinze em quinze dias, perante as autoridades, para que estas lhes coloquem um carimbo num documento, como forma de fiscalizar e de comprovar a sua situação de desempregados. Anuncia-se assim o fim de um carimbo que em si mesmo e na sua brutalidade burocrática simboliza uma estigmatização absurda de cidadãos pelo Estado numa sociedade democrática.
A importância da medida foi já elogiada pelo Provedor de Justiça, José de Faria da Costa (PÚBLICO 14/07/2016), que embora reconhecendo que “não compete ao provedor de Justiça fazer valorações sobre as opções legislativas”, fez questão de frisar que, “quando as opções vão no sentido da defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, é óbvio que isso significa um reforço do conteúdo material de todo o sistema democrático”.
E é disso mesmo que se trata, do reforço da democracia real a chegar à vida dos cidadãos através do reconhecimento da sua dignidade, ou seja, dos seus direitos. E era absurdamente estigmatizante a obrigatoriedade das pessoas que estão desempregadas para fazerem prova da sua situação terem de se apresentar com uma periodicidade quinzenal – ou outra qualquer que fosse – às autoridades para provar a sua condição. Como se se tratasse de alguém numa condição de falta. Como se os desempregados fossem criminosos que têm de fazer prova de que estão de acordo com as exigências da lei.
Tal é exactamente o entendimento que o Provedor de Justiça têm do problema, ao afirmar, no mesmo texto de opinião, que “a efectivação dos mecanismos de controlo da procura activa de emprego por meio de apresentação quinzenal – apresentação que, às vezes, é feita junto de entidades externas não especificamente vocacionadas para o tratamento das questões relativas ao processo de desemprego – não se revelou adequada às finalidades gizadas, podendo, para além disso, potenciar riscos acrescidos de estigmatização.”
Tratava-se de facto de uma situação absurdamente estigmatizante, repito, independentemente do facto de a forma como decorre a sua aplicação acabar por ser ainda mais penalizante. De acordo com a notícia do PÚBLICO, “mais de 22% das anulações de desempregados das listas do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), registadas no primeiro semestre, estavam relacionadas com faltas aos controlos quinzenais”. O facto de este procedimento prejudicar uma parcela significativa de desempregados e ser razão para mais de um quinto das suspensões de pagamento de subsídio seria, só por si, motivo de anulação da medida.
Mas a questão é bem mais profunda do que um mero problema de funcionamento e de organização do processamento dos subsídios de desemprego em Portugal. O que está em causa neste procedimento mexe com o que de mais profundo existe hoje em dia na organização das sociedades ocidentais - e não só destas. Isto porque, as sociedades hoje estão organizadas em função do trabalho e da produção para um consumo de massas.
O conceito de trabalho é o modo de inserção social por excelência. Todo o processo de aprendizagem de vivência social, que a escola representa, é feita com o objectivo do adquirir de competências para a vida profissional. Ou seja, está organizada para as pessoas terem uma profissão, uma especialização de trabalho. E o sucesso e insucesso social estão intimamente ligados e dependentes do sucesso profissional.
Daí que, só por si, a situação de desempregado é já estigmatizante. Quem fica desempregado vive sempre uma situação de menoridade social. É alguém que deixa de se sentir enquadrado socialmente e, mais do que isso, deixa de se sentir útil socialmente. Não é por acaso que há tantas pessoas que entram em depressão quando caem no desemprego.
É verdade que é obrigação dos Estados garantirem, através de meios diversos, que as pessoas não se sintam estigmatizadas por estarem desempregadas. Uma dessas formas é a viabilização de prestações sociais, as quais permitem que a vida material das pessoas desempregadas não sofra uma quebra de nível que ponha em causa a sua própria sobrevivência material e, quando os haja, dos seus familiares.
Mas a realidade mostra a quem olha para o problema, a quem conhece quem esteja na terrível situação que é estar desempregado, que o desemprego não é apenas uma questão de subsistência material. Há uma dimensão humana que tem a ver com a dignidade de cada pessoa se sentir inserida e útil na sua sociedade e essa dignidade está associada à vida profissional e ao emprego. É por isso que se louva a decisão de eliminar a imposição brutal e acintosa de um carimbo que mancha a dignidade dos desempregados.