A Europa desintegrada?
A derrota dos golpistas será um momento de verdade para o projecto de uma Turquia democrática. Para a União Europeia é igualmente um momento de verdade, pois terá que demonstrar que respeita a legitimidade democrática, mesmo que um qualquer acto eleitoral dê a vitória a um partido islamista.
Em menos de um mês, uma sequência de acontecimentos, certamente diferentes mas igualmente preocupantes – a tentativa de golpe de Estado na Turquia, o hediondo crime de Nice e o "Brexit" – sublinha a pesada tendência para a desintegração que atinge fortemente o Médio Oriente e a Europa.
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Em menos de um mês, uma sequência de acontecimentos, certamente diferentes mas igualmente preocupantes – a tentativa de golpe de Estado na Turquia, o hediondo crime de Nice e o "Brexit" – sublinha a pesada tendência para a desintegração que atinge fortemente o Médio Oriente e a Europa.
Neste cenário, a Turquia está no olho do furacão. É um país europeu e médio-oriental e por isso vítima directa da desintegração nas duas regiões. Na sua fronteira desenrola-se uma terrível guerra, que já provocou 300 mil mortos e que a atinge directamente, seja pelos graves atentados terroristas de que foi alvo, seja pelo agravamento da questão curda. Se já somos todos testemunhas do enorme impacto da situação no Médio Oriente, imaginemos o que sucederia se Portugal ou a França fizessem fronteira com a Síria…
As consequências de um golpe militar na Turquia seriam trágicas – basta recordar o que sucedeu no Egipto, com a deposição de um governo democraticamente eleito. Muitos dos que votaram no Partido Justiça e Desenvolvimento, o AKP, e muito particularmente milhares dos seus militantes, vieram para a rua e travaram o golpe enfrentado os tanques. Para o golpe triunfar, os militares golpistas teriam que ter assassinado milhares de civis.
Os que fora da Turquia se entusiasmaram com o provável sucesso do golpe militar, como o fez a BBC, cometem um erro gravíssimo. A tentação de legitimar um golpe militar num país democrático é autodestrutiva, especialmente num momento em que as forças antidemocráticas e nacionalistas crescem na União Europeia, pondo em risco o seu futuro.
Internacionalmente, o impacto da vitória de um golpe militar na Turquia seria devastador. Num país europeu, membro da NATO e do Conselho da Europa, candidato a membro da União, com quem foi assinado um controverso acordo para gerir o fluxo de refugiados, esse cenário seria um terrível precedente.
O impacto do golpe militar no Médio Oriente, já desintegrado e em guerra, seria particularmente grave. O sucesso do golpe seria recebido com alegria por todos os ditadores na região, antes de tudo por Assad, que encontraria num novo poder turco um aliado para destruir a oposição democrática, a única que o põe em perigo. O General Sisi encontraria um aliado para continuar a sua política de repressão de todos os críticos do seu regime. Experiências democráticas como a da Tunísia estariam fortemente em risco. A vitória dos golpistas seria uma péssima notícia para os três milhões de refugiados sírios que a Turquia recebeu, ainda para mais quando Erdogan havia anunciado recentemente um plano para oferecer a nacionalidade turca a centenas de milhares de refugiados.
A Turquia está profundamente polarizada e a vitória de um golpe militar mergulharia o país numa situação de caos e, eventualmente, de guerra civil. A derrota do golpe poderá, no entanto, agravar a polarização e criar uma situação perigosa, sobretudo no que se refere à preservação dos direitos e liberdades.
Nos últimos anos, o Presidente Erdogan tem tomado medidas de concentração do poder e muitos na Europa vêem nessas medidas uma tendência de criação de uma teocracia – o AKP é um partido islamista –, que poria em causa a herança autoritária laica de Atatürk. O paradoxo da Turquia é que foi um partido islamista que democratizou o país. Aceite formalmente como candidata à adesão em 1999, por corresponder aos critérios democráticos de Copenhaga, as negociações formais começaram em 2005, já com o AKP no poder. O que muitos europeus têm dificuldade em compreender é que foram islamistas que saíram à rua em defesa da legalidade democrática.
A União não foi capaz de levar a bom porto a adesão da Turquia, em grande medida com base em argumentos culturalistas – uma União definida por alguns como um clube cristão que não podia aceitar um país muçulmano, como afirmou o então candidato à Presidência de França, Nicolas Sarkozy. A influência da integração no processo de consolidação da democracia em Portugal, por exemplo, acabou assim por não funcionar na Turquia.
A derrota dos golpistas será um momento de verdade para o projecto de uma Turquia democrática. O Presidente Erdogan tem que vencer a tentação de utilizar esta vitória sobre os golpistas para concentrar ainda mais poder, e sobretudo deve garantir um processo jurídico justo aos golpistas e evitar uma caça às bruxas. Para que a Turquia volte a ser um elemento de esperança no Médio Oriente, Erdogan deve unir o país e retomar o processo de consolidação democrática.
Para a União Europeia é igualmente um momento de verdade, pois terá que demonstrar que respeita a legitimidade democrática, mesmo que um qualquer acto eleitoral dê a vitória a um partido islamista. A União deveria não só condenar energicamente a tentativa de golpe como assumir, de uma vez por todas, que a Turquia é um país europeu. Não pode persistir qualquer dúvida em relação à posição europeia: nenhum golpe, fracassado ou bem-sucedido, encontrará compreensão ou a prossecução de uma "política realista" por parte da União, nenhum Governo militar ou que saia de um golpe poderá ser reconhecido. Este compromisso da União Europeia poderia ser afirmado com uma alteração da política conciliatória face à ditadura militar instalada no Cairo, mostrando que a luta contra o Daesh não justifica alianças com regimes que violam gravemente os direitos humanos.
A União não pode sucumbir à tentação de assumir uma política dita realista, um caminho que as imposições e ameaças a Estados membros, como Portugal ou a Grécia, ou o cínico tratamento dado dos refugiados, prenuncia. Este tipo de política põe directamente em causa a razão de ser da integração europeia. A defesa dos direitos fundamentais, na ordem interna e internacional, é condição necessária para a unidade da União e logo para a sua sobrevivência.