Itália tenta salvar os bancos, regras europeias dificultam
É o novo grande risco que enfrenta a economia europeia: a banca italiana precisa urgentemente de capital, mas as regras europeias impõem perdas para os credores que o Governo de Renzi se recusa a provocar. A resolução do problema poderá servir de exemplo para Portugal.
Passados 544 anos de existência, com vários donos, muitos sucessos, mas também diversas intervenções públicas para o salvar, o banco mais antigo do mundo em actividade está outra vez em risco de vida. E desta vez, em conjunto com a sobrevivência do banco, jogam-se também a credibilidade das novas regras bancárias europeias, a capacidade de resistência do sector financeiro europeu e, alertam alguns, o próprio futuro do projecto da zona euro.
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Passados 544 anos de existência, com vários donos, muitos sucessos, mas também diversas intervenções públicas para o salvar, o banco mais antigo do mundo em actividade está outra vez em risco de vida. E desta vez, em conjunto com a sobrevivência do banco, jogam-se também a credibilidade das novas regras bancárias europeias, a capacidade de resistência do sector financeiro europeu e, alertam alguns, o próprio futuro do projecto da zona euro.
O Banco Monte dei Paschi di Siena, fundado em 1472 quando se davam os primeiros passos no actual conceito do que é um banco, é hoje o principal símbolo da crise que atravessa o sector em Itália. É a terceira maior instituição financeira do país e, apesar de já ter sido alvo de várias injecções de capital nos últimos anos, continua a mostrar uma enorme fragilidade.
Todas as apostas apontam para que, no próximo dia 29 de Julho, quando forem publicados novos resultados de testes de stress realizados pelo BCE, o Monte dei paschi venha a revelar avultadas necessidades de recapitalização. Nos mercados, a desconfiança em relação ao banco é enorme, como demonstra a queda de mais de 70% registada no valor das acções desde o início deste ano.
Contudo, apesar de ser o caso mais destacado, o Banco Monte dei Paschi di Siena está longe de ser o único com problemas no sector financeiro de Itália. Com a economia a crescer a um ritmo extremamente lento desde o início do século, a banca italiana, muito fragmentada e com evidentes problemas de governação, acumulou problemas nas suas contas. O mais evidente é o crédito mal-parado, um dos mais elevados do mundo.
Há muito que o problema está à vista e, em diversas ocasiões, foram feitos apelos às autoridades para que adoptassem medidas ambiciosas de limpeza dos balanços e recapitalização dos bancos. No entanto, várias oportunidades foram perdidas. Uma capitalização podia ter sido feita em 2009, quando a Irlanda fez, ou em 2012, quando a Espanha o fez. Em 2014, quando os bancos italianos foram os que pior resultados apresentaram nos primeiros testes de stress à escala europeia, a reacção também foi tímida. Agora, quando o Governo de Matteo Renzi mostra urgência em resolver o problema, pode-se chegar à conclusão que é tarde demais.
Bail-in vs bail-out
O problema está no facto de, entretanto, terem entrado em vigor novas regras para o sector bancário europeu. A ideia fundamental por trás das novas leis é a de evitar que as falências de instituições bancárias sejam pagas pelos contribuintes, através de injecções de capital feitas pelo Estado. Por isso, nos processos de resolução de um banco europeu, é agora exigido que, primeiro sejam chamados a suportar perdas, para além dos accionistas, os credores e eventualmente os maiores depositantes. É o denominado bail-in, em contraponto como o bail-out, em que é o Estado com o seu dinheiro que evita o colapso do banco.
Estas novas regras para Itália colocam um problema de carácter social e político. É que no país, ao longo dos anos, os bancos foram colocando muitos dos seus próprios títulos obrigacionistas nas mãos dos clientes do retalho. Cerca de 200 mil milhões de euros de obrigações bancárias são detidos por pequenos aforradores, não por investidores institucionais e profissionais. São o equivalente aos lesados do BES e do Banif, mas numa dimensão muito superior.
Penalizá-los teria, para além de um impacto social considerável, consequências políticas para Matteo Renzi potencialmente desastrosas, ainda para mais numa altura em que o primeiro-ministro italiano joga o seu futuro num referendo sobre reforma constitucional agendado para Outubro.
Por isso, não é surpreendente que o Governo italiano esteja desesperadamente a procurar outra solução, tentando passar ao lado dos obstáculos criados pela nova legislação europeia.
A vontade de Matteo Renzi seria a de resolver o problema da banca através de uma limpeza massiva do crédito mal parado e de uma capitalização dos bancos mais frágeis, financiadas essencialmente com dinheiro do Estado. No entanto, em Bruxelas – e especialmente em Berlim – tem encontrado uma forte oposição a essa solução que iria contra o espírito das novas regras recentemente aprovadas.
Perante isto, Renzi foi tomando outras medidas, na esperança de ganhar tempo. A principal foi a criação do banco Atlante, um veículo que tinha como principal função inicial adquirir aos outros bancos o crédito mal parado que estava nos seus balanços. Para evitar a violação das regras europeias que impedem a ajuda do Estado, o Atlante foi criado com o capital dos bancos privados mais saudáveis e de um banco público. Em simultâneo, o Estado começou a conceder garantias (por um determinado preço) aos títulos com crédito mal parado emitidos pelas instituições financeiras, o que facilita a sua venda a potenciais investidores interessados.
Este plano, contudo, tem alguns problemas. O primeiro é que, ao colocar o Atlante (que é detido por bancos privados) a comprar crédito mal-parado, aquilo que se pode estar a fazer é a espalhar os problemas por todo o sector.
O segundo é que o capital colocado no Atlante é insuficiente para resolver todos os problemas. O veículo destinava-se inicialmente a absorver o mal parado, mas acabou muito rapidamente por gastar o seu dinheiro na capitalização de pequenos bancos em dificuldades e agora deverá ser chamado a injectar mais dinheiro no Monte dei Paschi di Siena. Neste momento, já se prepara a criação de um segundo veículo – o Atlante 2 -, com mais 2000 milhões de euros, mas existem muitas dúvidas que o dinheiro chegue.
Guerra Itália Alemanha
Volta-se por isso ao confronto entre a necessidade que o Governo italiano tem de ajudar os bancos sem provocar perdas a todos os credores e as novas regras europeias que protegem essencialmente os contribuintes.
Os responsáveis políticos alemães têm assumido o papel de defensores das novas regras. Angela Merkel e Wolfgang Schäuble fizeram questão em diversas ocasiões de lembrar que o governo italiano, tal como todos os outros, aprovou há bem pouco tempo a nova regulamentação. “Não podemos andar a mudar as regras de dois em dois anos”, afirmou Merkel. Matteo Renzi tem respondido a estes avisos da Alemanha com indignação e com a garantia de que “a Itália sabe muito bem como cumprir as regras”.
Ainda assim, o que parece certo neste momento é que, ou o Governo italiano recua na sua determinação de não passar perdas para os detentores de obrigações dos bancos, ou as autoridades europeias mostram uma maior flexibilidade na aplicação das regras.
“A união europeia encontra-se confrontada com a escolha entre flexibilizar as regras da União Bancária e a própria sobrevivência do euro, que a primeira procurava garantir”, explica o economista Nuno Teles, que não tem dúvidas de que, “com um terço de todos os empréstimos em incumprimento de toda a UE e com a ausência de investidores privados disponíveis para qualquer recapitalização, a banca italiana precisa de capital público para sobreviver”.
Nicolas Veron, economista no think tank Bruegel, ainda acredita numa outra solução, que permita pelo menos nesta fase, resolver o problema do Monte dei Paschi di Siena, através de algumas excepções previstas nas novas regras europeias, nomeadamente poupando todos os credores seniores e depositantes e compensando os credores juniores que sejam efectivamente investidores de retalho.
Parece ser isso que, neste momento, se discute entre Roma e as outras capitais europeias, com uma solução a ter de ser encontrada até ao próximo dia 29 de Julho, quando os resultados dos testes de stress são apresentados.
Recentemente, de Berlim as mensagens tem sido mais conciliatórias. Angela Merkel disse que uma solução é possível e a Reuters noticiou, citando um responsável do executivo alemão, que havia abertura de Berlim para um apoio estatal parcial que impedisse perdas para os investidores de retalho. Ainda assim, o apoio apenas poderia ser parcial, frisaram.
Em toda a Europa, existe a consciência de que o problema que enfrenta a banca italiana é um reflexo das dificuldades que sente todo o sector à escala europeia. Nem a Alemanha escapa, como demontra a fragilidade revelada nas contas do gigante Deutsche Bank.
Mas são países como Portugal, com problemas bastante semelhantes aos de Itália, que mais atentos devem estar ao que acontece em Itália. Também na banca portuguesa, se está à espera de soluções para o crédito mal parado e para as necessidades de capital de vários bancos.
Será que surgirão boas notícias de Itália? “É possível que perante a dimensão do problema, Portugal e o seu sector bancário possam vir a beneficiar de um qualquer esquema europeu de recapitalização que não implique os custos acima referidos para aforradores e que, por exemplo, possibilite a recapitalização da CGD”, antecipa Nuno Teles.