Tudo sobre a orelha esquerda de Van Gogh (e o revólver que o terá matado)

A exposição À beira da loucura, inaugurada esta sexta-feira no Museu Van Gogh, em Amesterdão, percorre o trágico último ano e meio da vida do pintor.

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São já muitos os investigadores que têm tentado diagnosticar a doença que mudou radicalmente a vida e a obra de Van Gogh. É justamente na sequência da descoberta de novos documentos e objectos históricos que surge a exposição À beira da loucura, do Museu Van Gogh, em Amesterdão, uma cronologia do último ano e meio da vida do pintor inaugurada esta sexta-feira e aberta até 4 de Setembro. Incluindo, entre outros documentos e objectos inéditos, o revólver com que se terá suicidado.

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São já muitos os investigadores que têm tentado diagnosticar a doença que mudou radicalmente a vida e a obra de Van Gogh. É justamente na sequência da descoberta de novos documentos e objectos históricos que surge a exposição À beira da loucura, do Museu Van Gogh, em Amesterdão, uma cronologia do último ano e meio da vida do pintor inaugurada esta sexta-feira e aberta até 4 de Setembro. Incluindo, entre outros documentos e objectos inéditos, o revólver com que se terá suicidado.

Documentando a trágica evolução que levaria uma das figuras mais fascinantes e mais influentes da arte moderna ao suicídio, estão agora expostos no Museu Van Gogh 25 quadros e desenhos desse período, entre os quais obras emprestadas por prestigiados museus internacionais como O Retrato do Dr. Rey, do Museu Pushkin, em Moscovo, assim como documentos importantes como a petição em que os seus vizinhos em Arles reclamavam o internamento do pintor num asilo. Será também mostrado o desenho feito por Félix Rey que mostra que o pintor cortou a totalidade da orelha esquerda e não apenas o lóbulo, como se havia pensado antes. “A orelha foi cortada por uma lâmina, como se vê pelo tracejado”, lê-se no desenho. O documento foi descoberto num arquivo norte-americano por Bernardette Murphy, que escreveu Van Gogh’s Ear: The True Story, e terá sido pedido pessoalmente a Rey, em 1930, por Irving Stone, autora da biografia Lust for Life. Louis van Tilborgh, investigador e professor de História da Arte na Universidade de Amesterdão, disse ao Daily Mail que “este é um documento importante com muito valor emocional”.

“[Van Gogh] tentou tudo para esconder a ferida e comprou um chapéu mal deixou o hospital”, conta Murphy no livro. Entre os factos recentemente descobertos pela historiadora, encontram-se o nome da prostituta a quem Van Gogh terá oferecido a sua orelha: afinal, Rachel chamava-se Gabrielle e era camareira no bordel. Teria sido mordida por um cão na juventude e Van Gogh terá querido “aliviar o seu sofrimento”.

Não é novo: o turbulento estado psicológico de Van Gogh influenciou gravemente a sua vida pessoal e profissional. Steven Naifeh, co-autor do livro Van Gogh: The Life, diz mesmo ao Wall Street Journal que “ninguém conseguia viver com Van Gogh”, devido às suas alucinações e falhas de memória. Apesar disso, a arte do pintor constituiu uma prova de superação e um escape à doença. Jonathan Jones, especialista do The Guardiancaracteriza o seu Auto-retrato com a Orelha Cortada “não como um registo objectivo de uma infelicidade mas, na sua intensidade hipnótica, um retrato de um artista ao mesmo tempo martirizado e libertado pela loucura”.

Pela primeira vez, será mostrado o revólver com que Van Gogh se terá suicidado, encontrado em 1960 por um lavrador. O revólver de bolso, tipo "Lefaucheux à Broche", tem um pequeno calibre de 77 milímetros. “Não podemos dizer com 100% de certeza, mas os argumentos fazem-nos pensar”, afirmou Teio Meedendorp, investigador do Museu Van Gogh, ao canal holandês NOS. Esta pode ter sido a razão pela qual o pintor ainda conseguiu voltar à pensão onde estava hospedado, e onde morreria 30 horas depois. “Tendo em conta o seu estado de corrosão, a arma deve ter estado enterrada no solo cerca de 50 a 80 anos”, nota o museu em comunicado de imprensa.

Também no âmbito da exposição, haverá um simpósio com médicos e especialistas em Van Gogh, que tentarão chegar a um diagnóstico definitivo do pintor e apresentarão os resultados a 15 de Setembro. De acordo com o Wall Street Journal, estão em cima da mesa doenças como a epilepsia e o transtorno de personalidade. Mark Kramer, professor de medicina interna no Centro Médico da Universidade de Amesterdão, abordará o papel do álcool na doença. “Van Gogh sofria de uma doença psiquiátrica, mas a epilepsia era um diagnóstico recorrente em França na altura”, explica.

Steven Naifeh refere que os diagnósticos feitos anteriormente oscilaram conforme a especialidade do investigador. Foram consideradas, por exemplo, a porfíria aguda intermitente, uma doença metabólica que causa delírio, e a doença de Menière, que poderia ter levado ao corte da orelha devido ao tinido característico. Nienke Bakker, curador e investigador do Museu Van Gogh, acredita que Van Gogh terá sofrido de uma combinação de epilepsia do lóbulo temporal com bipolaridade.

A verdade é que o paciente em causa não pode ser analisado, mas o mistério da sua história está mais perto de ser resolvido. Seja como for, os amarelos e os azuis da obra de Van Gogh eternizaram-se não pela doença, mas pelo seu remédio mais eficaz: a pintura a que se dedicava em momentos de lucidez.

Divergências

Vincent Van Gogh teve o seu primeiro contacto com a pintura aos 15 anos, altura em que começou a trabalhar na empresa de negócio de artes do tio para ajudar a família. Em 1873, foi transferido para Londres, onde se apaixonou pela arte inglesa, mas outro amor viria a dar-lhe um desgosto que o levou a regressar e a querer dedicar-se à vida religiosa. Contudo, em 1880 decidiu mudar-se para Bruxelas para ser pintor.

Sem formação artística, foi apoiado financeiramente pelo irmão Theo, negociante de arte que vivia em Paris. Apesar da hesitação de Theo em relação à adequação do trabalho do irmão ao cenário impressionista da capital francesa, Van Gogh mudou-se para sua casa e começou a traçar o percurso que viria a torná-lo o mais marcante nome do pós-impressionismo.

Durante o seu tempo em Paris, Van Gogh começou a sentir fadiga intensa e dores abdominais que inspiraram a obra Auto-retrato como Pintor (1887-1888), referido como “o rosto da morte” em carta à irmã, Willemien. No início de 1888, mudou-se para Arles, uma pequena cidade no Sul de França, numa espécie de retiro que esperava que lhe devolvesse a vitalidade. Inspirado pela paisagem, instalou-se na Casa Amarela, na Place Lamartine. Em carta enviada a Theo, Van Gogh descreve o quarteirão de “casas amarelas à luz do sol e da incomparável frescura do azul” e anexa o rascunho daquele que viria a ser o quadro A Casa Amarela (A Rua), de 1888.

Vincent tinha alugado quatro quartos com o intuito de formar uma comunidade artística que pudesse gerar uma harmoniosa colaboração criativa entre vários pintores seus amigos. Em Outubro, o sonho começou a aproximar-se da realidade com a chegada de Paul Gauguin. Enquanto esperava o companheiro, Van Gogh pintou diversos quadros que serviriam de decoração para a casa, incluindo a tela Os Girassóis, que imaginou especialmente para o quarto de Paul Gauguin. Van Gogh conta a Theo, em 1888: “Gauguin chegou bem de saúde. Dá-me impressão, até, de estar em melhor forma do que eu."

Inicialmente, os dois pintores desenvolveram uma frutífera parceria artística, mas as diferenças entre os seus métodos criativos falaram mais alto. É que se Van Gogh acreditava que a realidade era a melhor inspiração para a arte, Gauguin privilegiava a imaginação. Pouco antes do Natal de 1888, os dois tiveram uma discussão acesa que viria a terminar com a automutilação da orelha esquerda de Van Gogh. Gauguin partiu para Paris depois do incidente e contou a Émile Bernard o que se tinha passado. Na sua autobiografia, Avant et Après, revela que o pintor o terá ameaçado com uma lâmina, pormenor que poderá ter ocultado na altura para proteger o amigo.

Van Gogh ilustrou a sua divergência com Gauguin nas pinturas A Cadeira de Gauguin e A Cadeira de Van Gogh, ambas de 1888. Na primeira, vemos um candelabro, um castiçal e um livro, que aludem ao mundo da imaginação, enquanto na segunda figuram várias cebolas que remetem para a Natureza e para a realidade.

O episódio da orelha foi noticiado pelo jornal Fórum Républicain a 30 de Dezembro de 1888. O pintor terá embrulhado a orelha num pedaço de papel, levando-a a uma prostituta que trabalhava num bordel. O estabelecimento foi tomado por um alvoroço quando a mulher caiu redonda no chão. A polícia foi chamada e, no dia seguinte, o pintor foi encontrado ferido em casa.

Internamentos

Van Gogh foi então internado no hospital de Arles, onde foi tratado por Félix Rey. Apesar de suspeitar que o pintor sofria de um tipo de epilepsia que teria origem no consumo exagerado de café e álcool e na pouca ingestão de comida, o médico nunca fez um diagnóstico oficial, receitando-lhe brometo, um sedativo muito usado na medicina do século XIX e, para a febre, vinho medicinal de chinchona, feito a partir de extracto de quinina. Em 1889, Van Gogh pintou O Retrato do Dr. Rey como forma de agradecimento. Numa carta de 30 de Dezembro dirigida a Theo, o médico refere que quando questionou Van Gogh sobre o motivo da automutilação este retorquiu que “foi um assunto totalmente pessoal”.

Após duas semanas no hospital, Van Gogh voltou a casa, mas depressa surgiram novos colapsos que motivaram outro internamento. Durante os ataques, o pintor perdia consciência do que fazia e dizia. O Dr. Urpar, médico superior do hospital, passou um certificado da condição do pintor ao presidente da Câmara de Arles, recomendando o internamento num hospital psiquiátrico: “O tratamento que este pobre homem está a receber no nosso hospital não é suficiente para o fazer voltar à razão." É desta altura a pintura O Pátio do Hospital, que mostra as árvores e as arcadas em frente ao edifício.

O regresso a casa significou mais trabalho e, além dos conhecidos auto-retratos com o curativo da orelha, pincelou Ainda a vida com um prato de cebolas, de 1889, que mostra uma mesa com objectos pessoais como o seu cachimbo e tabaco, uma garrafa vazia de absinto e um livro de receitas caseiras para se auto-medicar.

Theo, que se encontrava longe do irmão, sabia da evolução da doença através do Dr. Rey, de Joseph Moulin e do padre Frédéric Salles. Numa carta de Rey a Theo, o médico descreve como Van Gogh tinha piorado. “Anteontem, deitou-se na cama com um dos outros pacientes e recusou-se a sair, apesar das minhas ordens."

A vida em Arles tornou-se mais dura quando, perto de 27 de Janeiro de 1889, 30 vizinhos organizaram uma petição a pedir o seu internamento num asilo, alegando que o pintor “não possuía a totalidade das suas capacidades mentais”. Devastado, Van Gogh aconselhou-se junto do reverendo Salles, que escreveu a Theo a 19 de Abril, informando-o de que “Vincent pediu que procedesse às diligências necessárias ao seu internamento”. Deu então entrada, voluntariamente, no hospital psiquiátrico Saint-Paul-de-Masole, em Saint-Rémy de Provence.

O ritmo mais pachorrento da vida no asilo deu tréguas ao seu sofrimento, pois Van Gogh montou um estúdio numa das divisões e pintava no exterior quando se sentia bem. A pintura Janela no Estúdio, de 1889, demonstra a grande janela que dava para o jardim com as tintas e os quadros na parede. As plantas, flores e insectos que ali habitavam tornaram-se uma grande fonte de inspiração, como exemplifica o quadro Jardim do Asilo, de 1889.

Um dia, enquanto pintava uma pedreira, teve o primeiro de vários ataques que se seguiriam. Apesar da doença, Van Gogh apenas tomava banhos quentes e frios alternadamente duas vezes por semana, um método comum, na altura, para  tratar doentes mentais. Voltou à pintura a partir da Pietà de Delacroix, possivelmente identificando-se com a figura de Jesus Cristo. “Durante todo este sofrimento, pensamentos religiosos às vezes consolam-me bastante”, escreveu a Theo.

Van Gogh receava os companheiros de asilo, mas chegou a pintar alguns retratos deles, como é o caso de Homem com um Olho, de 1889. O regresso da doença mergulhou-o numa tristeza profunda e, após um ano, saiu para ir viver perto do irmão, em Auvers-sur-Oise, sendo acompanhado pelo Dr. Gachet. Mas Vincent tornara-se a sombra do homem que fora anteriormente.

“A minha vida falhou até à última raíz”, desabafa em carta a Theo em 1890, com a certeza de que a sua criação artística tinha sido em vão. Quatro meses, a 23 de Julho de 1890, Vincent Van Gogh, 37 anos, suicidava-se com o disparo de um revólver num campo de Auvers-sur-Oise.

Texto editado por Inês Nadais