Vida cultural do Reino Unido atingida pelo "Brexit"
Caso existam condições para um retrocesso, é urgente que se saiba o que pode ser feito para que a gravidade da situação não se torne catastrófica.
Quase 300 nomes destacados da vida cultural e artística britânica, com especial relevo para grandes intérpretes de teatro e cinema, não hesitaram em manifestar publicamente o seu desagrado e desconforto pelo efeito do “Brexit”, recordando que “muitos têm trabalhado em projectos que nunca se teriam concretizado sem o financiamento da União Europeia e sem a colaboração com outros países”. Alguns deles, caso de Helen Bonham Carter ou Benedict Cumberbach, têm uma presença regular e prestigiante na grande produção cinematográfica norte-americana.
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Quase 300 nomes destacados da vida cultural e artística britânica, com especial relevo para grandes intérpretes de teatro e cinema, não hesitaram em manifestar publicamente o seu desagrado e desconforto pelo efeito do “Brexit”, recordando que “muitos têm trabalhado em projectos que nunca se teriam concretizado sem o financiamento da União Europeia e sem a colaboração com outros países”. Alguns deles, caso de Helen Bonham Carter ou Benedict Cumberbach, têm uma presença regular e prestigiante na grande produção cinematográfica norte-americana.
É convicção dos subscritores deste documento que “a União Europeia reforça o papel de liderança da Grã-Bretanha no panorama internacional e que entre 2014 e 2020 Bruxelas vai investir 1,4 mil milhões de euros nos vários sectores culturais britânicos”. Não se pode ficar indiferente a estes números e sobretudo à realidade que eles ajudam a materializar. Porém, pouco se terá ouvido a voz discordante destes actores de grande prestígio internacional durante o debate nacional; se porventura foi ouvida, reduzido efeito produziu. Mais de metade daquele valor destina-se às áreas do cinema e da televisão.
O Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (Feder) continua, por seu turno, a investir em projectos de diversas áreas criativas fora de Londres. Os números têm uma eloquência que a tensão política, social e financeira do momento actual inevitavelmente reforça e que permite acentuar que 56 por cento das exportações do sector cultural britânico têm com o destino países da União Europeia. Este facto encontra-se ligado à área do emprego e da criação de receita também de índole fiscal. Nomes destacados da produção musical, audiovisual e também editorial encontram--se entre os subscritores desta carta de protesto. Basta citar a Universal Music UK e a Pinguin Random House.
Sabe-se que, entre outros, o documento foi recebido pela porta-voz do Partido Trabalhista para as áreas da educação e da cultura, que terá sublinhado a importância da União Europeia para se estabelecerem acordos comerciais justos e se garantir uma estratégia na área digital que corresponda adequadamente aos interesses dos criadores, dos artistas e dos consumidores”. Consumado o erro, muitos são os que pretendem voltar atrás, mas fica por saber até que ponto esse objectivo é exequível do ponto de vista político e institucional. Por isso, o debate sobre este assunto está a ser intenso e não deixa à vista soluções aceitáveis. Por estas e outras razões, o assunto deverá ser tratado com serenidade, mas com uma percepção exacta dos danos causados pela decisão maioritária dos votantes e pela natural irreversibilidade da situação criada.
Vários responsáveis têm sublinhado o facto de o referendo ser sobre muito mais do que a economia, tendo-se em conta que a cultura e as artes sempre tiveram importância vital no projecto europeu, unindo as pessoas, apesar das fronteiras e das diferenças estruturais de língua e de mentalidade. Recorde-se, entretanto, que esta decisão britânica ocorre no momento em que se celebram com muitas e diversificadas iniciativas os 400 anos da morte de William Shakespeare e de Miguel de Cervantes, dois geniais escritores europeus que tudo leva a crer que não iriam rever-se nesta decisão política, que também afecta a circulação e o êxito felizmente ilimitados das suas obras de referência.
Quando a carta foi divulgada, a Federação das Indústrias Criativas revelou que 96 por cento dos seus membros desejavam que a Grã-Bretanha permanecesse na União Europeia, tendo dezenas de historiadores difundido uma carta que acentua o papel fundamental do Reino Unido na vida da Europa. Para além disso, estamos também perante o raciocínio dos economistas, que temem uma queda a longo prazo do PIB como consequência desta grave decisão política.
O somatório destas opiniões respeitáveis nada vem acrescentar àquilo que há muito se sabia. Mas subsiste esta pergunta de fundo: se tudo isto era sabido e reconhecido, por que motivo não teve peso na decisão final, que coloca problemas de uma extrema complexidade? Caso existam condições para um retrocesso, hipótese que praticamente todos excluem fora do Reino Unido, é urgente que se saiba o que pode ser feito para que a gravidade da situação não se torne catastrófica.
Os dirigentes das principais sociedades de autores britânicas têm dialogado com os seus parceiros nos organismos de direcção, sendo da vontade de todos eles que deverá resultar a decisão final.
Quem conhece a vida cultural europeia por certo nunca teve dúvidas acerca do papel fundamental do Reino Unido nela. Porém quem, dentro da Grã-Bretanha, fez intensa e convicta campanha a favor da saída esqueceu ou quis esquecer aquilo que era uma evidência inquestionável. É bem possível e natural que a concretização deste voto maioritário venha a afectar a economia britânica e forçar muitos autores e artistas a procurarem noutros países as respostas adequadas para os seus projectos. Recordo--me de que, por volta de 2009/2010, alguns dos mais importantes artistas e autores irlandeses tonaram a rápida decisão de emigrar, designadamente para os Estados Unidos e Austrália para tratarem da sua vida profissional e criativa. Foi preciso que famosos actores irlandeses como Gabriel Byrne, Pierce Brosnan ou Colin Farrel se envolvessem numa campanha destinada a reconciliar os autores e intérpretes do país com a nação, nunca esquecendo que cinco escritores irlandeses foram distinguidos com o Nobel da Literatura. Shakespeare certamente já não tomará posição sobre o assunto e Miguel de Cervantes ficará onde sempre esteve, mas seguramente ambos ficarão amargurados com o que está acontecer a esta Europa em que a cultura, não obstante a sua influência ampla e diversificada, pouco tem acrescentado ao que, na realidade, é decisivo para o futuro do continente. Dar o dito por não dito será muito difícil, mas deixar de se contar com o contributo cultural profundo e regular da Grã-Bretanha também estará muito longe de ser fácil.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores