Há Tom Zé e Pat Metheny, há um Mimo a chegar a Amarante
Nasceu em Olinda para estreitar a ligação entre música, património e os cidadãos. Este ano sai pela primeira vez do Brasil e instala-se em Amarante. Entre esta sexta-feira e domingo, concertos, cinema, workshops. "Um encontro de muitas coisas", resume Lu Araújo, a criadora do festival.
Tudo começou quando uma carioca passou de visita em Olinda, a cidade pernambucana que a UNESCO declarou património da humanidade em 1982. A carioca, Lu Araújo, saíra para ver um pouco do Carnaval depois do Carnaval. No Largo da Sé “estava a rodar o Bacalhau do Batata, um bloco [de Carnaval] de garçons”, que faziam a festa depois de terem assistido à festa dos outros. Num canto próximo da igreja, alguns jovens bebiam e conversavam. Um deles, depois de dar um gole na garrafa, atirou-a contra as portas centenárias do edifício. Ao ver o vidro estilhaçar-se, Lu Araújo sentiu-se chocada. “Ofendida”, mesmo. “Porque é que aquele jovem que se estava a divertir naquele lugar, que só é aquele lugar pela história que tem, fez aquilo?”. Essa pergunta foi o início de tudo.
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Tudo começou quando uma carioca passou de visita em Olinda, a cidade pernambucana que a UNESCO declarou património da humanidade em 1982. A carioca, Lu Araújo, saíra para ver um pouco do Carnaval depois do Carnaval. No Largo da Sé “estava a rodar o Bacalhau do Batata, um bloco [de Carnaval] de garçons”, que faziam a festa depois de terem assistido à festa dos outros. Num canto próximo da igreja, alguns jovens bebiam e conversavam. Um deles, depois de dar um gole na garrafa, atirou-a contra as portas centenárias do edifício. Ao ver o vidro estilhaçar-se, Lu Araújo sentiu-se chocada. “Ofendida”, mesmo. “Porque é que aquele jovem que se estava a divertir naquele lugar, que só é aquele lugar pela história que tem, fez aquilo?”. Essa pergunta foi o início de tudo.
“Como é que se ocupa o património? Como é que intervimos nele? Como torná-lo significativo para quem ouve e para quem toca?”. Foi o tentar dar resposta a estas questões que conduziu ao arranque do Mimo, festival de música (e não só), com ligação estreita ao património, que teve primeira edição em Olinda, em 2004, e que, depois de ter crescido sustentadamente no Brasil, alargando-se a outras cidades, como Ouro Preto, Tiradentes, Paraty ou Rio de Janeiro, chega este ano ao norte de Portugal, a Amarante, a cidade de Amadeo de Souza Cardozo e de Teixeira de Pascoaes, a cidade da ponte de São Gonçalo sobre o Tâmega que foi palco de heróica resistência durante as invasões napoleónicas. É longa a história de como o Mimo chegou a Amarante. Longa é também a lista de acontecimentos programados para os próximos três dias, todos de entrada gratuita.
Entre esta sexta-feira, dia 15, e domingo, dia 17, ouviremos Tom Zé (esta sexta-feira, 0h30) e o violão e piano de Egberto Gismonti (esta sexta-feira, 20h30). Entre muitos outros ouviremos Custódio Castelo na Igreja de São Pedro (sábado, 16h), Vieux Farka Touré, o guitarrista maliano, filho do lendário Ali Farka Touré (e nota-se), no Parque Ribeirinho (sábado, 22h30) ou, no mesmo local, um Baile do Almeidinha, criado pelo música brasileiro Hamilton de Holanda, que, guiado pelo seu "turbinado" bandolim de dez cordas, viajará entre a música do Brasil e notas de outras latitudes – a partir das 0h30, são convidados do baile a espanhola Silvia Perez Cruz, o português Miguel Araújo ou o músico cabo-verdiano, e ex-ministro da Cultura do país, Mário Lúcio Sousa. Domingo há o encontro entre os pianistas Mário Laginha e Pedro Burmester (20h) e entre o guitarrista Pat Metheny e o contrabaixista Ron Carter que, a partir das 21h45, encerrarão com chave-de-ouro o primeiro Mimo português.
Quando arrancou em Olinda, o festival era dedicado inteiramente à música instrumental, essencialmente erudita. Porém, “à terceira ou quarta edição”, Lu Araújo começou a ver como entre o público maioritariamente mais adulto começava a surgir uma audiência jovem. Isso permitiu a esta antiga produtora artística, agente, por exemplo, de Zeca Baleiro, e que abandonou a indústria discográfica quando a crise se abateu fortemente sobre ela, dar o salto que desejava. “Queria um festival que mexesse com o passado, mas que tivesse também um pé na frente”. Assim se tornou o Mimo, espaço de portas abertas para o património das cidades que o acolhem, zona de convívio entre o jazz de Chick Corea, a “santeria” de Chuchu Valdez ou o piano clássico de Nélson Freire.
A uma semana do início do festival, Lu Araújo explica que não sabe “definir exactamente o que é o Mimo”: “Ele vai mudando, vai acrescentando, é um encontro de muitas coisas”. Falámos da música, mas o festival não se limita a mostrá-la em palco. Vieux Farka Touré fará um workshop sobre o blues do deserto, Marcelinho da Lua terá outro sobre os “Processos Criativos na Música Electrónica". Pedro Burmester dará uma masterclass de piano. Tom Zé e Mário Lúcio Sousa exporão a sua sabedoria e sensibilidade artística no Fórum das Ideias. E haverá cinema, com a projecção no Cinema Teixeira de Pascoaes de documentários sobre Amadeo de Souza Cardoso, sobre a Tropicália, António Carlos Jobim ou sobre um dos grandes nomes do festival, Tom Zé – e que dizer de uma Chuva da Poesia, um clássico do Mimo, que fará descer dos céus, no Pátio da Igreja de São Lourenço, domingo, poemas de Mário de Sá-Carneiro, Mário Cesariny e António Maria Lisboa?
Até 2012, recaíra sobre os ombros de Lu Araújo todo o peso da organização do festival. Entretanto, o empresário Luiz André Calainho, “grande empreendedor da cultura”, como o define Lu Araújo, entusiasma-se com o Mimo que descobre em Olinda e propõe-lhe que partilhem esforços. Lu começa a pensar na internacionalização do festival. Entretanto, uma viagem até à Europa para participar na Womex, em Santiago de Compostela, leva-a a uma paragem no Porto, guiada por Fernando Sousa, programador da Casa da Música. Fascinada com a cidade, começa a imaginar nela a primeira extensão internacional do Mimo. “No meio do caminho, dizem-me que tenho que conhecer Amarante, que tinham a certeza que iria gostar”, conta. E gostou mesmo. Muito. “Achei menorzinho [que o Porto], muito bonitinho, super arrumadinho. Não tem um grande património centrado, mas o que tem é significativo e de vários períodos. Além da história com a cultura", acrescenta, "através de Amadeo ou Teixeira de Pascoaes. E daquele rio que é lindo, um espelho”.
Em Amarante, Lu Araújo descobriu uma cidade mais próxima do “ambiente do Mimo no Brasil, uma cidade histórica pequena, como Olinda ou Tiradentes”. Levar o festival ao Porto e a Amarante foi no início uma possibilidade, posta de parte por demasiado ambiciosa para uma primeira internacionalização. Um apoio entusiástico do município amarantino depois, Lu Araújo pôs mãos à obra. O Mimo estava a chegar.
Qual será a medida do seu sucesso nesta primeira edição?, perguntamos. “Vamos ter que viver tudo isto juntos, mas acho que já é um sucesso. Antes de nascer já tem uma forma. Já é um filho. Só falta nascer”. Será hoje. O nascimento do novo Mimo, o português, o de Amarante.