Touros, Newton e sexo
A prova de bravura das violentas corridas com os touros em que estes homens lutam por dominar e enganar o animal encontra o seu paralelo na prova de virilidade pública que o homem oferece aos seus companheiros ao lutar por dominar e enganar uma mulher
Todos os anos em Pamplona, Espanha, a celebração religiosa centenária do dia de São Fermin, o patrono de Navarra, é acompanhada por uma tradicional largada de touros nas ruas principais da cidade, que, correndo sem saber para onde, são dirigidos para a praça do município, desviando-se ou investindo contra os milhares de pessoas que, como em antigos rituais pagãos, correm com eles e fugindo deles.
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Todos os anos em Pamplona, Espanha, a celebração religiosa centenária do dia de São Fermin, o patrono de Navarra, é acompanhada por uma tradicional largada de touros nas ruas principais da cidade, que, correndo sem saber para onde, são dirigidos para a praça do município, desviando-se ou investindo contra os milhares de pessoas que, como em antigos rituais pagãos, correm com eles e fugindo deles.
Esta fusão entre tradições religiosas e pagãs foi-se nutrindo da cultura atual de massificação turística, adicionando a estes rituais uma nova tradição: no meio da festa popular, em todas as ruas do bairro histórico de Pamplona, homens jovens em estados efusivos de embriaguez (ou não) rodeiam as mulheres e afastando ou tirando-lhes a roupa, tocam-lhes em todo o corpo em histérica alegria e para delírio de todos os milhares de adictos aos telemóveis que registam o momento em vídeos e fotografias para a (bem pobre) posteridade. O consentimento das mulheres em relação a estes tocamentos não é sequer assunto que interesse abordar, já que estando no meio da festa, espera-se que se juntem voluntariamente à animação —seria muito careta levarem a mal uma brincadeira!
Desde que esta “atividade” se juntou às festividades populares, na última década, repetem-se cada ano nos meios de comunicação oficiais e nas redes sociais as imagens de mulheres a ser tocadas por dezenas de mãos sem rosto, sem culpa, sem responsabilidade. A dimensão deste fenómeno chegou a tal ponto que neste ano de 2016, e com um governo municipal de esquerda e feminista (EH Bildu), o Conselho Municipal da Mulher decidiu lançar a campanha “Por uma festa livre de agressões sexistas”, com o objetivo de sensibilizar para a existência de agressões e abusos sexistas nas celebrações, ajudando a detetar possíveis situações de violência e dando indicações sobre como denunciar as mesmas.
Esta campanha, com uma estratégia de visibilização, sensibilização, empoderamento e fomento de relações sãs entre homens e mulheres, foi coroada por um ato simbólico que se realizou antes do início das festividades, sob o lema “Não é Não!” e que concentrou centenas de pessoas na praça municipal, demonstrando a sua rejeição à violência machista e aspirando a umas festas de diversão livre de acosso.
“As mulheres não nascem com medo, são ensinadas a tê-lo”
Não foram, no entanto, necessárias muitas horas para que se tomasse conhecimento publicamente da primeira agressão sexista denunciada: cinco jovens entre os 22 e os 26 anos violaram uma mulher conjuntamente, registando os factos em vídeo com o orgulho viril do dever cumprido. Cinco homens, entre os quais um Guarda Civil e um militar, visitantes andaluzes, numa orgia de socialização masculina suportada pela força do grupo que permite e potencia a transgressão. Cinco jovens atraídos, como tantos outros, pelos slogans publicitários que anunciam esta festa como a da “cidade onde se pode beber, dançar e beijar quem se quiser”. De tantas promessas resultaram 15 homens detidos, 4 violações denunciadas e 10 queixas por tocamentos.
O poder do grupo masculino reforça comportamentos que possivelmente não seriam cometidos em solitário mas que num ambiente de iguais adquirem uma dimensão lúdica, de competição e de posta à prova de limites pessoais. O espaço seguro não só do grupo de amigos mas também de outros grupos de homens que procuram o mesmo tipo de entretenimento faz parecer legítimo todo e qualquer abuso, em nome da diversão, da qual as mulheres são forçadas a participar. O homem que sente que desafia a morte em frente a toda uma cidade, sentindo a adrenalina de provar a sua virilidade e bravura, correndo à frente de potentes animais que sofrem, que sangram, que não valem mais do que o sacrifício que representam em nome do disfrute da violência.
A prova de bravura das violentas corridas com os touros em que estes homens lutam por dominar e enganar o animal encontra o seu paralelo na prova de virilidade pública que o homem oferece aos seus companheiros ao lutar por dominar e enganar uma mulher.
Esta é a relação de forças que num nível meramente simbólico contraria a terceira lei de Newton: para a ação de dominação da sociedade patriarcal sobre a mulher não existe ainda uma reação em sentido oposto com a mesma intensidade senão que persiste o entendimento do corpo da mulher como o último troféu a alcançar e possuir.