A madrugada sem cortes

Um tour de force ostensivo e desalmado – um filme sem cortes – mais do que outra coisa qualquer. Não se vislumbra um sentido de propósito.

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Ainda há semanas, numa das suas intervenções na Cinemateca, Béla Tarr falava da especialíssima tensão criada pelos planos longos - uma tensão que começa no plateau e que se transmite às imagens, enformando de maneira decisiva a relação do espectador com a acção. Pelo menos desde A Corda de Hitchcock, no final dos anos 40, que o one shot movie, o filme dum só longuíssimo plano, é um dos fétiches cinematográficos mais perseguidos. Durante anos foi quimérico, porque a tecnologia (dependente da duração, pouco mais de uma dezena de minutos, permitida por uma bobina de película de 35mm) só o podia aceitar como “falsidade” (A Corda). Com a chegada do video e depois do digital as possibilidades expandiram-se: Tarr foi um dos primeiros a ensaiar a experiência, com o seu Macbeth de 1982, assente numa hora de filme sem corte; e mais recentemente, e com outra sofisticação tecnológica, houve a Arca Russa de Sokurov. Paradoxo: quanto mais diminui a duração média de um plano do cinema mainstream mais a tecnologia permite expandir cada plano até, virtualmente, ao infinito.

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Ainda há semanas, numa das suas intervenções na Cinemateca, Béla Tarr falava da especialíssima tensão criada pelos planos longos - uma tensão que começa no plateau e que se transmite às imagens, enformando de maneira decisiva a relação do espectador com a acção. Pelo menos desde A Corda de Hitchcock, no final dos anos 40, que o one shot movie, o filme dum só longuíssimo plano, é um dos fétiches cinematográficos mais perseguidos. Durante anos foi quimérico, porque a tecnologia (dependente da duração, pouco mais de uma dezena de minutos, permitida por uma bobina de película de 35mm) só o podia aceitar como “falsidade” (A Corda). Com a chegada do video e depois do digital as possibilidades expandiram-se: Tarr foi um dos primeiros a ensaiar a experiência, com o seu Macbeth de 1982, assente numa hora de filme sem corte; e mais recentemente, e com outra sofisticação tecnológica, houve a Arca Russa de Sokurov. Paradoxo: quanto mais diminui a duração média de um plano do cinema mainstream mais a tecnologia permite expandir cada plano até, virtualmente, ao infinito.

Victoria, do alemão Sebastian Schipper, repega nesta velha “quimera”. Não é por se ter tornado realizável que se torna menos interessante, mas uma das coisas em que se pensa é que um movimento de câmara como “acontecimento” era mais impressionante no tempo em que a maquinaria era pesada e implicava vencer uma inércia enorme. Talvez por isso os grandes cineastas contemporãneos que trabalham com a leveza do equipamento digital resistam ao movimento, em prol da fixidez. Se isto tem alguma coisa a ver com Victoria é porque se a proeza enche o olho (uma história contada em tempo real e no espaço real de Berlim, sem corte, com a câmara a entrar e a sair de prédios, de elevadores, de automóveis), o gesto resulta mais num tour de force desalmado do que noutra coisa qualquer. Não se vislumbra um sentido de propósito, é o gesto que é tudo e que é todo o propósito. Por dentro, nesta história de uma espanhola arrastada por um grupo de mânfios berlinenses para um trabalhinho ilegal durante a madrugada, não há muito: as personagens são palavrosas, o diálogo prevalece sobre a acção ao ponto de esmagar a sensação de espaço e de tempo, e nem o diálogo nem as personagens são interessantes. Esta circunstância tem o previsível efeito de dirigir o interesse do espectador do campo para o fora de campo: progressivamente desinteressado do que lhe é dado a ver, passa a concentrar-se na imaginação do que lhe é escondido, no trabalho técnico, nos movimentos que fazem o “bastidor” de Victoria. Mesmo que as câmaras já não precisem de charriots para se moverem, é nesse “bastidor” que está o filme mais intrigante de Victoria. Não é o que foi feito, é o “como” foi feito”, e na diferença entre uma coisa e outra cabe a igual medida de admiração e frustração convocada pelo filme.