Há novos dragões do lodo no Algarve e isso é um bom sinal
Ao largo de Faro e Albufeira, a 100 metros de profundidade, encontraram-se duas novas espécies de uns animais minúsculos. Por incrível que pareça, os dragões do lodo têm muito para dizer à ciência. E já agora, os cientistas que os estudam em todo o mundo são à volta de… dez.
Não cospem fogo nem metem medo. Pelo contrário, são inócuos para nós e nem os conseguimos ver sem ser ao microscópio. Também não abundam as espécies conhecidas de dragões do lodo, a designação vulgar destes bichinhos que vivem entre os grãos de areia ou no lodo: só estão identificadas cerca de 200 espécies a nível mundial. A lista cresceu agora com a descoberta de mais duas ao largo de Faro e Albufeira.
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Não cospem fogo nem metem medo. Pelo contrário, são inócuos para nós e nem os conseguimos ver sem ser ao microscópio. Também não abundam as espécies conhecidas de dragões do lodo, a designação vulgar destes bichinhos que vivem entre os grãos de areia ou no lodo: só estão identificadas cerca de 200 espécies a nível mundial. A lista cresceu agora com a descoberta de mais duas ao largo de Faro e Albufeira.
Ricardo Neves, da Universidade de Basileia, na Suíça, é o principal autor da descoberta. Ele próprio faz parte de um nicho: “Apenas cerca de dez investigadores em todo o mundo estudam activamente estes animais”, conta o biólogo português, de 39 anos.
Os dragões do lodo integram a fauna que vive nos sedimentos arenosos e lodosos nas linhas costeiras e que tem sido um tanto esquecida pela ciência. “Nas últimas décadas, tem sido dada muita atenção ao estudo da macrofauna aí existente (por exemplo, anémonas, caranguejos, estrelas-do-mar), o que contrasta com a pouca disponibilidade para o estudo de animais com dimensões entre um milímetro e 38 micrómetros — a chamada ‘meiofauna’. São exemplo desta comunidade de animais os pequenos crustáceos e vermes marinhos”, explica Ricardo Neves.
Quanto aos dragões do lodo, geralmente têm menos de um milímetro de comprimento. Foram descobertos pela primeira vez em 1841, no Norte de França. Desde então, as 200 espécies descritas pelo planeta são todas marinhas, vivendo em zonas marinhas ou estuarinas, mas nunca em água doce. Encontram-se desde as zonas entre marés até grandes profundidades. Portanto, podemos encontrar dragões do lodo na praia, quando a baixa-mar deixa a descoberto a zona entre marés. Sem, no entanto, motivos para receios (“são totalmente inofensivos para os humanos”, sossega o biólogo).
Para os cientistas, os dragões do lodo têm ainda outro nome: quinorrincos, pois pertencem ao filo (grande grupo de classificação de seres vivos) Kinorhyncha. “O seu nome provém do grego kineo (que se movimenta) e rhynchos (focinho) e deve-se aos movimentos de retracção e alongamento da região anterior do corpo deste animal”, explica Ricardo Neves.
Se pouco se sabe sobre os quinorrincos pelo mundo fora, o seu desconhecimento no território português é ainda maior. Havia apenas uma referência à sua presença em Portugal, revelada numa conferência científica — mas sem sequer dizer nomes de espécies.
Ricardo Neves e alguns colegas quiseram mudar essa situação. Entre Fevereiro de 2012 e Setembro de 2014, puseram-se à procura de dragões do lodo. Andaram pela costa algarvia, entre Portimão e Olhão, incluindo a ria de Alvor e a ria Formosa. Por Tróia e Sesimbra. E ainda na ria de Aveiro. Para os apanhar, em alto-mar usaram uma draga, que recolhia sedimentos e funcionava como um saco. Na zona entre marés, deslocaram-se a pé e apanhavam as amostras com as mãos ou uma pá.
“Fizemos, de facto, a primeira grande investigação sobre estes animais em Portugal, em vários pontos do país, e encontrámos várias espécies. Destas, duas são totalmente novas para a ciência: a Echinoderes lusitanicus e a Echinoderes reicherti”, conta o biólogo, sublinhando que nestas andanças a equipa contou com o apoio no terreno do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, o Instituto Português de Malacologia ou a Universidade de Aveiro. “No total, encontrámos mais de dez espécies. No entanto, o número final requer confirmação, porque ainda estamos a investigar os espécimes recolhidos.”
A descrição científica das duas espécies novas, encontradas no Algarve apenas, a cerca de 100 metros de profundidade, já está publicada na revista Marine Biology Research, num artigo assinado, além de Ricardo Neves, por Martin V. Sørensen (Museu de História Natural da Dinamarca, em Copenhaga) e Maria Herranz (Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver, Canadá).
Os exemplares de Echinoderes lusitanicus e Echinoderes reicherti têm à volta de 0,29 milímetros de comprimento. “São muito pequenos para se verem à vista desarmada. Algumas espécies têm uma coloração mais alaranjada e, se estiverem umas dezenas deles acumulados numa placa, conseguimos aperceber-nos de uns ‘salpicos’.”
Sentinelas da poluição
Para afirmar que a Echinoderes lusitanicus e a Echinoderes reicherti são espécies novas, a equipa baseou-se na sua morfologia externa, comparando-a com a de outras espécies já descritas. “O nome atribuído à primeira espécie foi por ter sido descoberta na costa portuguesa, enquanto o da última homenageia Heinrich Reichert, professor emérito da Universidade de Basileia e zoólogo conceituado.”
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Mas lançámos uma provocação ao biólogo: afinal, o que têm os quinorrincos de especial? Antes de mais, sua presença é um sinal da qualidade dos sedimentos das zonas costeiras, zonas que têm um valor socioeconómico elevado devido ao turismo e à pesca. “A presença de quinorrincos na costa portuguesa é positiva, pois contribui para a biodiversidade desse ecossistema e deixa antever um baixo nível de poluição”, diz Ricardo Neves.
“Os quinorrincos são importantíssimos para a avaliação do impacto humano, por exemplo nas zonas costeiras, ou de distúrbios causados por actividades específicas, como a aquacultura”, acrescenta. “Estudos recentes deixam claro que são extremamente sensíveis à acumulação, por exemplo, de sulfuretos. Elevadas concentrações destes compostos levam à sua total eliminação. São verdadeiras sentinelas para a avaliação de níveis de poluição.”
Ricardo Neves diz ainda que os quinorrincos são “intrigantes” e que têm “um valor intrínseco muito elevado”. Explica porquê. “O filo Kinorhyncha pertence a um super-filo que se chama Ecdysozoa, onde também estão os artrópodes (grupo que inclui os bem conhecidos crustáceos, aranhas e escorpiões, insectos, entre outros) e outros filos menos conhecidos”, frisa. “No geral, são animais que fazem a muda da cutícula, o esqueleto externo. As relações entre a história evolutiva destes grupos não é totalmente conhecida. Há muitas dúvidas quanto às relações filogenéticas (de parentesco) entre os vários grupos desse super-filo. Portanto, os quinorrincos são muito interessantes para podermos compreender a evolução de todos os grupos que compõem o Ecdysozoa”, explica. “Uma dúvida maior na zoologia é o da interpretação do corpo de um quinorrinco como segmentado ou não. E se é segmentado, a questão seguinte é a de perceber se essa segmentação do corpo tem as mesmas origens evolutivas da segmentação observada nos artrópodes.”
Eles poderão ainda contar muito sobre a história evolutiva dos invertebrados. “Apesar de diminuto, um quinorrinco tem um sistema nervoso central, uma musculatura complexa, órgãos excretores ou vários órgãos sensoriais. É importantíssimo, por exemplo, saber como está organizado o sistema nervoso central e periférico, descrever a sua microanatomia, conhecer os neurotransmissores implicados, e comparar toda esta informação com o que já se sabe sobre outros animais, para daí tirar ilações sobre a evolução do sistema nervoso nos invertebrados. Ou seja, é aos detalhes que vamos buscar o conhecimento que depois nos permitirá ver, finalmente, a big picture.”