O país “a andar com passo certo para conhecer a felicidade”
Os são-tomenses celebram a independência feita por guerrilheiros sem armas na mão.
Esta terça-feira, a cinco dias de mais uma eleição presidencial, os são-tomenses celebram o dia da independência nacional — foi a 12 de Julho de 1975.
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Esta terça-feira, a cinco dias de mais uma eleição presidencial, os são-tomenses celebram o dia da independência nacional — foi a 12 de Julho de 1975.
Foi uma independência feita por “guerrilheiros da guerra sem armas na mão”, como se canta no hino do país escrito pela política, poeta e intelectual são-tomense Alda Espírito Santo. O hino, que repete várias vezes “independência total”, regista para a História que a soberania foi conquistada, mas sem armas. No início da década de 1970, as ideias nacionalistas chegavam ao arquipélago pela mão dos jovens estudantes que acompanhavam as notícias das descolonizações no continente africano.
Em 1957, deu-se a primeira independência no continente, no vizinho Gana, liderada pelo líder e nacionalista Nkrumah. É noutro país vizinho, o Gabão, que o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe se vai sediar, desde a sua criação em 1960 até à independência. A batalha será nos corredores da diplomacia, com a primeira vitória, em 1964, quando a Organização dos Estados Africanos (organização anterior à União Africana) reconhece o Movimento.
Batepa
Sete anos antes de o comité de libertação se constituir, em 1953, as autoridades portuguesas mataram e prenderam centenas de são-tomenses. As próprias autoridades denominaram a operação de Batepa (Bate-pá). O historiador angolano Carlos Pacheco, perante o número de mortes e o nível de violência, preferiu chamar-lhe de Mata-pá.
Já tinha lido e ouvido falar do massacre, mas, se me perguntassem pelo nome do governador, sem googlar não iria conseguir responder.
No ano passado, em São Tomé, o jovem que conduzia o táxi onde eu me deslocava para o centro da ilha parou por sua iniciativa e disse-me com um ar pesado e triste, como se ele próprio que tem pouco mais de 20 anos tivesse visto o que aconteceu há mais de 50, “foi aqui que as tropas portuguesas mataram muitos de nós”. Devo ter feito uma cara do tipo “eu não queria ser dos maus” e ele, com pena, rapidamente me sossegou — “Quer dizer... foi o Gorgulho”. A tal operação Batepa foi sob o comando do governador-geral, o tenente Gorgulho. Gorgulho, o nome que poucos portugueses conhecem, mas que muitos são-tomenses sabem de cor.
Do Desterro a Paraíso
Em Janeiro de 1990, a imprensa portuguesa mostrava o então primeiro-ministro Cavaco Silva, de calções e com um ar feliz a trepar a um coqueiro nas terras de São Tomé e Príncipe.
Numa das minhas visitas a São Tomé e Príncipe, escrevi a uma amiga, não um postal porque já não se usa, mas um Whatsapp com a frase “O paraíso existe e afinal não é preciso morrer para se visitar”. E continuo a achar que é a melhor frase para descrever a beleza das pequenas ilhas.
Esta nossa felicidade (minha, do Cavaco Silva e de muitas outras pessoas) ao visitarmos São Tomé e Príncipe é relativamente recente. O paraíso de agora foi antes um temido desterro. No entanto, as ilhas não mudaram, nós é que mudámos.
A literatura cabo-verdiana, angolana, moçambicana, são-tomense e portuguesa está cheia de exemplos reais e imaginários do país como um desterro. Em 1493, despejámos nas ilhas duas mil crianças judias. O escritor são-tomense Orlando Piedade, no seu livro Os meninos judeus desterrados, pega na história e tenta dar um final feliz a pelo menos uma dessas crianças. No livro, o miúdo de seis anos sobrevive, ao contrário da história verdadeira onde parece que nenhuma daquelas crianças teve essa sorte.
Se passearmos pelas páginas dos livros de Germano de Almeida, Mia Couto, Agualusa, facilmente encontramos exemplos de quem foi ou de quem temia ir para o tal sítio no meio do mar de onde não se voltava. Nem era preciso ir, bastava o medo de se ser enviado. Foi o caso do velho comerciante português Arcénio de Carpo, que grita no livro Nação Crioula de Agualusa: “Esse animal levantou contra mim uma campanha sórdida — quer ver-me preso. Diz a toda a gente que eu hei de ir degredado para a ilha de São Tomé!”.
Uma coisa longínqua
O Arcénio não foi. Mas na vida real foram muitos e muitos. Um dos últimos que Portugal deportou para as ilhas foi, posteriormente, primeiro-ministro e Presidente da República portuguesa — Mário Soares. Nas suas memórias escritas por Joaquim Vieira, Mário Soares dedica um capítulo, com o título “Desterro”, aos oito meses da sua vida ali passados. “Para nós, São Tomé era uma coisa muito longínqua, não se sabia como era. Eu nem sabia bem ao certo onde estava São Tomé no mapa!” diz-nos Mário Soares para percebermos como a vida em São Tomé e Príncipe em 1968 estava longe de ser o paraíso.
Nas suas memórias registamos algumas das dificuldades — em todo o país só havia uma farmácia, a Império do senhor Malveiro. Os brancos podiam pedir audiência ao governador, mas os forros (nativos) faziam fila às quintas-feiras para poderem ser recebidos, apenas para “pedir coisas pequenas”. Mário Soares resolveu meter-se na fila para ser também recebido. “Veio logo uma secretária dizer-me que não podia estar ali, que aquilo era só para os pretos.” Para evitar maior incidente, o governador quis recebê-lo de imediato, mas, perante essa atitude, Mário Soares foi-se embora.
O poder colonial tinha levado angolanos e cabo-verdianos para trabalharem nas roças são-tomenses. Ainda hoje, muitos dos cabo-verdianos, apanhados pela revolução dos cravos e pelas independências, vivem em São Tomé e Príncipe. Ficaram ali, tal como os seus descendentes, como prisioneiros da História dos países. Na ilha do Príncipe, entre os 4000 habitantes, cerca de 70% são de origem cabo-verdiana. Muitos viveram décadas sem documentos.
“Fui com a minha mãe tratar do seu bilhete de identidade.” Esta mensagem seria normal, mas o tom de alegria com que foi dito denunciava que foi um momento especial para este principense. Explicou-me que “nunca teve cartão, nem de cá, nem de lá”. Foi mesmo assim. Muitos não reuniam as condições para serem cabo-verdianos e nem eram reconhecidos como são-tomenses. Simplesmente, oficialmente não existiam. Finalmente, em 2015, o governo são-tomense decidiu conceder a nacionalidade aos cabo-verdianos que, à data da independência, residiam no país.
Quer Democracia?
Em 1990, São Tomé e Príncipe referenda as mudanças constitucionais e pergunta ao povo se quer democracia. Na vaga de democratizações africanas da época, este foi o único país africano que mudou de regime através de um referendo: 81% dos são-tomenses optaram pela democracia.
São Tomé e Príncipe foi um dos países africanos, juntamente com Benim, Maurícias, Cabo Verde e Zâmbia, que nos anos de 1990 lideraram a mudança para a democracia. Apesar de o caminho para a democracia em São Tomé e Príncipe não ter sido linear (registaram-se vários momentos de instabilidade), hoje a organização mundial Freedom House, que avalia anualmente a liberdade em todos os países do mundo, coloca São Tomé e Príncipe no pódio com “livre”.
Na África subsariana, apenas mais nove países partilham esta categoria e, entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), apenas se encontra Cabo Verde. Todos os outros países avaliados dividem-se entre as duas outras categorias “parcialmente livre” e “não livre”. A somar aos pontos positivos no caminho da democracia, juntam-se as eleições em 2014. O país realizou em simultâneo eleições para a Assembleia Nacional, regiões e municípios e todo o processo decorreu sem incidentes.
O Batalhão Búfalo
Os golpes e tentativas de golpe em São Tomé e Príncipe lembram-me a frase de Cromwell “O que me interessa que em dez cidadãos nove me odeiem se o décimo que gosta de mim tem armas?” Em 2009, quarenta membros do Batalhão Búfalo foram presos. A agência de notícias de Angola publicava a notícia com o título “Batalhão Búfalo, de heróis a vilões, mas sempre terríveis”.
O Batalhão 32 (ou Búfalo) foi criado na África do Sul, treinado pelo Apartheid e incluía são-tomenses e angolanos. Em 1993, o partido de Nelson Mandela exigiu a extinção do batalhão e os seus soldados regressaram aos seus países. E é assim que São Tomé e Príncipe, que tinha combatido pela independência sem armas, passa a ter no território um batalhão de elite.
A primeira tentativa de golpe de Estado foi em 1995 e a mais grave em 2003. O golpe de 1995 durou uma semana e rapidamente tudo voltou à normalidade, mas em 2003 a comunidade internacional foi chamada a mediar. Com a operação de 2009, os Búfalos passaram a ex-búfalos, respeitados mas não temidos e integrados na sociedade.
Léve-Léve
No início dos anos 2000, a descoberta de petróleo no mar de São Tomé e Príncipe gerou uma euforia, assim como acontece quando um homem pobre descobre que ganhou a lotaria. Mas a lotaria não era, afinal, tão fácil. Primeiro, o prémio tinha que ser dividido com os vizinhos e, segundo, o valor não era bem o anunciado. Da euforia passou-se à frustração.
A pobreza persiste no país — seis em cada dez são-tomenses são considerados pobres pelos padrões do relatório do desenvolvimento humano. No entanto, a mais recente análise do Banco Mundial indica progressos significativos: na educação, o país cumpriu o objectivo do milénio alcançando o ensino primário universal; o acesso a água potável e energia estendeu-se a 97% da população, no primeiro caso, e a 60% no segundo.
Das vezes que visitei São Tomé e Príncipe, ouvi muitas vezes a expressão “o país do léve-léve” e, erradamente, pensava que queria dizer “o país onde não há pressa, o país do deixa andar”. Convencida de que conhecia o sentido da expressão, no ano passado utilizei-a numa reunião com a Assembleia Nacional de São Tomé e Príncipe. No final da reunião, uma das participantes veio ter comigo e explicou-me que o léve-léve não queria dizer o que eu pensava. Recomendou-me a leitura do poema da Alda Espírito Santo, Léve-léve, e caso não encontrasse o original que ouvisse a música de Kalu Mendes baseada no poema. No dia seguinte, ofereceu-me uma fotocópia da página do livro da escola dos seus filhos onde estava o poema. E o poema explica que léve-léve “não é barafunda, num país que se afunda. É não correr à toa. É andar com passo certo para conhecer felicidade”.
Parabéns São Tomé e Príncipe e que o vosso futuro seja construído cumprindo o vosso léve-léve, um país com passos certos.
Politóloga, Professora Associada Universidade Católica de Moçambique