Sob o domínio do diabólico
Poeta de muitos recursos e vastos horizontes, Daniel Jonas faz neste livro incursões pelo poema longo, com uma força dramática surpreendente.
De livro para livro, Daniel Jonas muda de lugar, de dicção, de tom: não há na poesia portuguesa actual um poeta com uma tal elasticidade, movendo-se com uma astúcia que não se confunde com cinismo e é dotada de ironia subtil. Até no interior do mesmo livro (como acontece neste), tanto é capaz de grandiloquência como de baixo teor enfático. Em todos os casos, a sua poesia está sempre do lado da estranheza, cumpre-se numa dimensão que não se ordena do lado da mera realização lúdica e formal nem do lado da transparência do sentimento e da representação afectiva. E, a par de alguma exuberância retórica, ela também é capaz da sobriedade prosaica. Por outro lado, há uma distância paradoxal em relação à esfera do vivido, que a coloca da proferição que parece vinda de um outro tempo e de uma antiga racionalidade. É, aliás, por uma formulação que opera um desvio em relação ao leibniziano princípio da razão suficiente que começa o poema Vento: “Porque não há nada em vez de tudo? – perguntou/ o cientista – Tudo me cansa:/ a tentativa, o esforço, o consegui-lo./ Tudo é redondamente inútil:/ o desejo, o seu decesso [...]”. Este livro chama-se Bisonte, animal muito estranho a qualquer bestiário poético. Mas ele faz parte do exuberante bestiário barroco deste livro, tão barroco que até os animais da terra e as aves do ar estabelecem uma relação de reversibilidade. Assim, o “bisonte bisonho” pode apresentar-se “mordendo nuvens”. Mas o que faz aqui, de maneira recorrente, este animal tão pouco poético, vindo de uma idade primitiva, do tempo da fundação do mundo? Ele é um ser diabólico, como muitos outros deste livro. E diabólico – devemos observar – é o contrário de simbólico, o que se opõe ao belo edifício da poética romântica, essa herança moderna de fortíssima resistência. Ora, a poesia de Daniel Jonas desloca-se numa direcção inversa, aplica-se na fuga à harmonia do símbolo, instala a dissonância e a estranheza, não satisfaz a expectativa das belas representações. E tem a falta de delicadeza de um bisonte. Não porque se afirme do lado da afirmação transgressiva e intempestiva, mas por uma outra condição mais subtil.
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De livro para livro, Daniel Jonas muda de lugar, de dicção, de tom: não há na poesia portuguesa actual um poeta com uma tal elasticidade, movendo-se com uma astúcia que não se confunde com cinismo e é dotada de ironia subtil. Até no interior do mesmo livro (como acontece neste), tanto é capaz de grandiloquência como de baixo teor enfático. Em todos os casos, a sua poesia está sempre do lado da estranheza, cumpre-se numa dimensão que não se ordena do lado da mera realização lúdica e formal nem do lado da transparência do sentimento e da representação afectiva. E, a par de alguma exuberância retórica, ela também é capaz da sobriedade prosaica. Por outro lado, há uma distância paradoxal em relação à esfera do vivido, que a coloca da proferição que parece vinda de um outro tempo e de uma antiga racionalidade. É, aliás, por uma formulação que opera um desvio em relação ao leibniziano princípio da razão suficiente que começa o poema Vento: “Porque não há nada em vez de tudo? – perguntou/ o cientista – Tudo me cansa:/ a tentativa, o esforço, o consegui-lo./ Tudo é redondamente inútil:/ o desejo, o seu decesso [...]”. Este livro chama-se Bisonte, animal muito estranho a qualquer bestiário poético. Mas ele faz parte do exuberante bestiário barroco deste livro, tão barroco que até os animais da terra e as aves do ar estabelecem uma relação de reversibilidade. Assim, o “bisonte bisonho” pode apresentar-se “mordendo nuvens”. Mas o que faz aqui, de maneira recorrente, este animal tão pouco poético, vindo de uma idade primitiva, do tempo da fundação do mundo? Ele é um ser diabólico, como muitos outros deste livro. E diabólico – devemos observar – é o contrário de simbólico, o que se opõe ao belo edifício da poética romântica, essa herança moderna de fortíssima resistência. Ora, a poesia de Daniel Jonas desloca-se numa direcção inversa, aplica-se na fuga à harmonia do símbolo, instala a dissonância e a estranheza, não satisfaz a expectativa das belas representações. E tem a falta de delicadeza de um bisonte. Não porque se afirme do lado da afirmação transgressiva e intempestiva, mas por uma outra condição mais subtil.
Vejamos então o que se passa. O livro abre com um poema que se chama Flores: “tudo isto me parece terrível./ Todas estas flores que não sei o nome/ parecendo trepar pelo ar, suspensas no equilíbrio de Satã,/ deformadas, varicosas, impudentes,/ cacarejando na noite./ Eu, acoitado, encarando-as à meia-noite,/ figuras espectrais, abortivas,/ viciosas a cada centímetro do seu talo [...]”. Depois de Baudelaire, sabemo-lo bem, as flores passaram a ser flores do mal. Mas as flores do mal são ainda belas. As flores de Daniel Jonas, pelo contrário, são sinistras, terríveis, fazem parte de uma “flora demencial” - uma flora que acompanha o bestiário barroco e repelente. E a dissonância que contraria a razão musical do lirismo manifesta-se num um continuado ruído que traz estranheza, fealdade e prosaísmo sempre que se anunciam as belas representações. Temos as cigarras, de musical memória? Pois temos, mas veja-se o terrível concerto que elas proporcionam: “O vento acoita-se nas cigarras:/ estas transformando harpas eólicas/ numa sensação monomaníaca,/ motosserra em surdina [...]”. Das cigarras, podíamos dizer o mesmo que, de maneira satírica, Mallarmé exclamava a propósito do uso da lua na poesia: “Qu’elle est belle, la garce!”. Mas a transformação das “harpas eólicas” em “motosserra em surdina” provoca uma queda ou, pelo menos, um movimento para baixo: esta poesia está sempre a criar falsas expectativas de elevação, para a seguir a contrariar. Desta maneira, ela retira a sua força de uma dimensão deceptiva: não nos dá nada daquilo que julgamos estar a ser prometido, obriga o leitor a tropeçar constantemente nas suas expectativas. É evidente que isto tem um efeito irónico, às vezes quase de comédia e de jogo perverso, embora não seja esse um objectivo imediato. De resto, ao fazermos esta leitura que toma partido pelos efeitos do estranhamento e da subtileza, somos levados a sentir como fragilidade (rara e apenas notória pela alta exigência a que se situa o nível desta poesia) os momentos em que Daniel Jonas abusa dos jogos de palavras, uma das manifestações os seus imensos e luxuosos recursos linguísticos Aí, o jogo torna-se mais superficial, sofre uma quebra, resvala para o gratuito. Um exemplo (que por si só não produz nenhum ruído, mas ao lado de outros torna-se muito mais notado): “A geada que crepita da janela,/ o lenho, tempo/ sobre o tampo:/ a chaleira imperturbável e fria”.
Mas isso é coisa pouca quando deparamos, neste livro, com poemas que elevam ao mais alto nível a requintada e plural obra poética de Daniel Jonas. Trata-se dos poemas longos, que são sem dúvida o ponto mais alto deste livro. E aí tanto encontramos um fôlego da proferição à Álvaro de Campos, num daqueles poemas que edificam para nosso espanto, e porque já não estamos habituados, um mundo (é sabido como quase não existe o mundo, uma totalidade de largos horizontes, na poesia contemporânea), como o poema-missiva de Jorge de Sena, Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya. Chama-se Dos Fuzilamentos da Montanha do Príncipe Pio, o poema de Daniel Jonas escreveu a partir da lição poética de Sena, também sob a forma de uma carta aos filhos. E é assim uma das estrofes: “Nós ensinamos a guerra./ Nós construímos a destruição./ Estamos todos muito orgulhosos dos nossos pais,/ edificaram um império/ como o fio de prumo da espada/ e a roldanas ergueram as cabeças tenras nativas/ como torrões levantados do solo,/ recebendo cartas de aplauso/ e terras de comendas,/ lavrando solos e espevitando os campos/ com o adubo da cinza mortuária”. A força e a elevação dramática deste poema tornam-no uma objecto precioso da poesia portuguesa contemporânea.