O Curtas no limbo, entre o céu e o inferno, o amor e o desejo

Numa edição que só arrancou a sério depois da vitória de Portugal no Euro, as primeiras descobertas vêm da competição internacional.

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Não é nada boa ideia ter sessões de cinema a decorrer ao mesmo tempo que a final de um Europeu de Futebol. Sobretudo com Portugal a jogar. Contavam-se pelos dedos as presenças nas primeiras passagens do concurso internacional do Curtas Vila do Conde 2016 na noite de domingo – é verdade que Miguel Dias já explicara na sessão de abertura que a final do Euro estava muito longe da cabeça de toda a gente quando as datas do festival foram marcadas em 2015.

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Não é nada boa ideia ter sessões de cinema a decorrer ao mesmo tempo que a final de um Europeu de Futebol. Sobretudo com Portugal a jogar. Contavam-se pelos dedos as presenças nas primeiras passagens do concurso internacional do Curtas Vila do Conde 2016 na noite de domingo – é verdade que Miguel Dias já explicara na sessão de abertura que a final do Euro estava muito longe da cabeça de toda a gente quando as datas do festival foram marcadas em 2015.

Ainda assim, houve tempo para uma das maiores enchentes de sempre no Teatro Municipal na tarde de domingo, com a exibição de E do Mar Nasceu, documentário rodado durante a euforia do pós-25 de Abril nas Caxinas por Ricardo Costa para o Grupo Zero e mostrado no âmbito do constante trabalho de recuperação da memória audiovisual de Vila do Conde. Após a projecção do filme, rodado em 1977, a conversa entre o moderador Abel Coentrão (jornalista do PÚBLICO e membro do júri do concurso escolar Take One) e o realizador prolongou-se durante mais de uma hora – exemplo de uma ligação entre o festival e a comunidade local que o Curtas desde sempre procurou.

Mas são as secções competitivas que dão a “chave” de leitura do Curtas, e sobretudo o concurso nacional, que começou na noite de segunda-feira com o pé esquerdo. Se a animação de Catarina Romano, A Casa ou Máquina de Habitar, é um muito interessante exercício visual à volta das memórias que construímos, influenciadas pelo espaço onde decorrem, nem a não-ficção quase etnográfica de Lúcia Prancha, Sebastião, o Fantasma, nem a média ficcional de Leonor Noivo, Setembro, convenceram. De certa maneira, foi sintomático que a primeira sessão de curtas portuguesas tenha sido o Panorama Nacional (mostrado literalmente durante a final do Euro, mas repetindo esta terça-feira, 12, à meia-noite), “estado da nação” este ano transportado pela Balada de um Batráquio, de Leonor Teles, e por Ascensão, de Pedro Peralta, mas que soube a pouco sobretudo quando em anos anteriores o festival havia chegado às duas ou às três sessões de Panorama.

As verdadeiras confirmações, para já, vieram do concurso internacional. A começar pela assombração atmosférica, opaca, de Limbo, da grega Konstantina Kotzamani, história de contornos intemporais inteiramente vista pelos olhos das crianças de uma aldeia lacustre (fotografada por Yorgos Karvelas com uma precisão de cortar a respiração). Neste local que é ao mesmo tempo pré- e pós-apocalíptico, vindo do fundo dos tempos e que para eles se parece dirigir, uma baleia que deu à costa, uma criança albina e a combustão espontânea de uma imagem da Virgem Maria constroem uma espécie de mistério sempre fora de alcance, constantemente “entre” medo e deslumbre, céu e inferno (repete no programa 6, sábado, às 17h). Do Brasil, João Paulo Miranda Maria, que vimos no concurso de 2015 com Command Action, coloca-se também entre passado e presente, entre superstição e mistério. Com A Moça que Dançou com o Diabo, o cineasta brasileiro volta a explorar o contraste entre tradição e progresso, entre as convicções arreigadas da religião tradicionalista e a libertação violenta da identidade pessoal, adaptando livremente, com humor e distanciamento secos e escarninhos, uma lenda popular rural sobre a sedução “diabólica” de uma jovem oriunda de um meio profundamente moralista pela carnalidade do progresso, entre telemóveis e maquilhagem (repete no programa 1, esta terça-feira, 12, às 23h30).

E houve a surpresa de acolher um cineasta que já conhecemos das suas longas O Polícia e The Kindergarten Teacher. Com os 40 minutos de From the Diary of a Wedding Photographer (repete no programa 2, esta terça-feira, 12, às 22h30), o israelita Nadav Lapid explora com subterrânea melancolia e algum humor escarninho o que é que quer dizer isso do “amar até que a morte nos separe”. O seu herói nominal é um fotógrafo de casamentos de meia-idade, e através da sua presença e da câmara com que filma as juras de amor eterno dos recém-casados ou daqueles que estão à beira de o ser, Lapid sublinha a complexa teia de solidão, dependência, generosidade, desejo e insegurança por trás deste “contrato social”. E, de caminho, pergunta-se o que é que o amor tem a ver com isso. Se é que tem alguma coisa.