O “Brexit” e o bumerangue
E se o "Brexit" se tornasse numa surpresa ao contrário? À primeira vista poderia funcionar como um multiplicador de referendos para desintegrar a União Europeia. Noutra perspectiva, poderia ser uma "vacina". Para lá do imenso impacto económico e estratégico — é um daqueles fenómenos que os analistas gostam de chamar "viragem histórica" — qual será a sua repercussão última? Nada de mais incerto.
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E se o "Brexit" se tornasse numa surpresa ao contrário? À primeira vista poderia funcionar como um multiplicador de referendos para desintegrar a União Europeia. Noutra perspectiva, poderia ser uma "vacina". Para lá do imenso impacto económico e estratégico — é um daqueles fenómenos que os analistas gostam de chamar "viragem histórica" — qual será a sua repercussão última? Nada de mais incerto.
Com os governos e a UE em perda de credibilidade, prosperam os discursos contra as elites e a ascensão dos extremos, de esquerda e de direita. Há um risco de contágio e de transformar os referendos num instrumento de chantagem permanente sobre os governos, como faz na Holanda o populista Geert Wilders.
Surgiu no entanto outro factor importante. O súbito caos político em Londres e o ambiente de incerteza diluíram, ou até mudaram, o impacto do voto. Os britânicos não estão propriamente eufóricos. O "Brexit" pode traduzir-se num bumerangue. Chris Patten, último governador de Hong Kong e actual chanceler da Universidade de Oxford, lembra aos eurocépticos um aforismo de Churchill: "O aborrecimento do suicídio político é que continuaremos a viver para o lamentar."
Mesmo em caso de "divórcio amigável", os britânicos terão de viver anos com o seu "Brexit".
Ressaca
As primeiras sondagens indicam que, ao contrário do que os eurocépticos esperavam, não se verifica um efeito de contágio. Na Alemanha, os partidos do governo, a CDU de Angela Merkel e o SPD de Sigmar Gabriel, sobem, enquanto a Alternativa para a Alemanha (AfD), xenófoba e eurocéptica, perde alguns pontos.
Na Holanda, Geert Wilders regressou ao nível mais baixo desde 2015 e se houvesse eleições não passaria de 30 deputados em 150. Na Áustria, numa sondagem anterior ao voto britânico, 51% dos inquiridos diziam ser favoráveis à permanência na UE e 49 defendiam o "Leave". Mas, num inquérito de 5 e 6 de Julho, 52% são favoráveis à UE e apenas 30 desejam a saída. Na Dinamarca, o apoio à UE subiu de 59,8% para 69, enquanto os que querem sair desceram de 40,7% para 32. Na Finlândia, 59% rejeitam a ideia de um referendo e 68 querem a permanência. Na França, os dados não mudam: 45% querem a manutenção na UE e 33 optariam pela saída. A opção pela saída junta a extrema-direita de Marine Le Pen e a extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon. Na Itália, onde as sondagens são muito flutuantes, 66% dos inquiridos dizem estar na UE.
Trata-se de uma primeira reacção e as opiniões flutuam. Apenas significa que o "dia seguinte" do referendo provocou apreensão e não um efeito de imitação, o que anula uma dinâmica eurocéptica na esteira do "Brexit".
"Roleta russa"
As reacções dos europeístas britânicos são conhecidas. "O referendo está feito e a voz do povo tem de ser respeitada", disse Anthony Giddens — o teorizador da "Terceira Via" — num discurso na Câmara dos Lordes. Não se conforma e procura ainda um escape: "Uma possibilidade seria fazer um segundo referendo uma vez conhecido o que ‘Leave’ realmente significa. A pressão para o fazer poderá tornar-se irresistível." Mas a repetição da consulta não é realista. O que Giddens quererá sublinhar é que os britânicos não tinham pleno conhecimento do que estava em jogo no dia 23 de Junho. Se soubessem...
Patten denuncia o próprio princípio da consulta: "Um referendo reduz a complexidade a uma absurda simplicidade. (...) Com o ‘Brexit’ vimos o populismo estilo Donald Trump chegar à Grã-Bretanha." É irresistível a associação entre os ventos que sopram na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
Muitos põem em causa a legitimidade democrática de um referendo em que as pessoas chamadas a votar não chegaram a compreender o que estava em causa e "reagiram" votando segundo os mais variados decontentamentos. Por isso, Chris Giles, do Financial Times, qualificou o voto no "Leave" como um fenómeno "irracional".
O economista americano Kenneth Rogoff fala em "fracasso democrático britânico". Diz mesmo: "Isto não é democracia, é roleta russa para as repúblicas." Porquê? É absurdo fazer um referendo com estas implicações — tal como os de independência — com a regra de 50+1. Deveria haver uma maioria qualificada, como o Supremo Tribunal Canadiano exigiu para o referendo do Quebeque. "Pode o referendo ser repetido dentro de um ano? Não. No Parlamento uma maioria apoiaria o "Brexit"? Provavelmente não. Sabia a população britânica o que realmente estava a votar? Absolutamente não." Conclui que "é tempo de repensar as regras do jogo". As actuais são "uma fórmula para o caos".
O referendo, que muitos tomam como a quintessência da democracia, sempre foi uma faca de dois gumes. É um procedimento que suscita a "reacção" e não a deliberação democrática — pesar os prós e os contras e levar em conta o "bem comum". No caso britânico, por exemplo, foi patente o desprezo pelos interesses dos jovens.
Se o referendo é adequado para decisões locais ou necessário para legitimar grandes opções, como uma saída UE, comporta o referido risco "reactivo": condensar motivações que não têm a ver com a pergunta a que se tem de responder com um "sim" ou o "não", expondo-se a ser dominado pela demagogia. Na Grã-Bretanha, a mais forte motivação terá sido a imigração, e com ela a livre circulação das pessoas — tema de que os britânicos faziam uma bandeira.
Trump e Sanders
O "Brexit" é uma "bomba" e um momento de viragem. Que lições vão os políticos europeus tirar?
Falando da América, Francis Fukuyama vê "a inesperada emergência de Trump e Sanders como uma grande oportunidade". Porquê? "Com todos os seus defeitos, Trump rebentou a ortodoxia [económica] republicana que prevaleceu desde Ronald Reagan", responsável pelo crescimento das desigualdades. "Do mesmo modo, Sanders mobilizou a reacção duma esquerda que estava desaparecida." Tudo isto incita a "uma renovação da política americana".
Mais importante do que as suas propostas, repugnantes ou idealistas, é o facto de ambos representarem movimentos de resposta ao desprezo das elites perante os sentimentos populares. "As mobilizações populares não são inerentemente más ou inerentemente boas. Podem fazer grandes coisas como na Era Progressiva [princípio do século XX] ou no New Deal, mas também coisas terríveis como na Europa dos anos 1930."
O efeito bumerangue sugerido nas sondagens é o curto prazo. Por isso regresso ao argumento da "irracionalidade" do voto britânico, que diz respeito ao longo prazo. Para lá das particularidades nacionais, a dita "irracionalidade" reflecte uma desconfiança geral nas elites dirigentes e intelectuais e no funcionamento da UE, sentimento espalhado por toda a Europa e que tende a provocar a erosão da democracia. A "irracionalidade" pode encobrir uma revolta. Neste caso, o problema é a revolta e a irracionalidade um mero sintoma.
Errar o diagnóstico é espalhar o incêndio e premiar os pescadores de águas turvas.