A Europa entre a dissuasão e o apaziguamento
A cimeira da NATO arranca no momento em que a União Europeia enfrenta a sua maior crise de sempre.
1. Crise é a palavra-chave da cimeira da NATO que hoje começa em Varsóvia. Não propriamente a crise da Aliança mais poderosa do mundo, que já viveu muitas crises, mas a crise dos aliados europeus, justamente na altura em que a NATO volta a parecer indispensável para garantir a segurança europeia, a Leste como a Sul.
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1. Crise é a palavra-chave da cimeira da NATO que hoje começa em Varsóvia. Não propriamente a crise da Aliança mais poderosa do mundo, que já viveu muitas crises, mas a crise dos aliados europeus, justamente na altura em que a NATO volta a parecer indispensável para garantir a segurança europeia, a Leste como a Sul.
O Presidente Obama gostaria de fechar com chave-de-ouro os seus dois mandatos na Casa Branca, deixando uma aliança unida e capaz de fazer frente aos desafios de segurança regionais. Sabe que, no seu país, a opinião pública é cada vez mais desfavorável ao preço que a América paga pela segurança europeia. A Rússia obrigou-o a regressar à Europa, mesmo que o grande desafio à ordem internacional esteja no Pacífico.
Tem pela frente uma União Europeia às voltas com a sua maior crise de sempre, lidando separadamente com as suas várias frentes, sem capacidade para olhar o conjunto, ou seja, sem uma visão comum daquilo que quer ser num mundo que voltou a dar todo o sentido à aliança transatlântica. A decisão britânica de sair da União Europeia, deixa-a ainda mais vulnerável, não apenas pela sua capacidade militar, mas porque priva a relação transatlântica de uma ponte indestrutível entre as duas margens, mesmo quando a NATO atravessava crises profundas quanto ao seu papel e à sua missão no pós-Guerra Fria.
Há, no entanto, uma diferença. Os países europeus (22 são membros da Aliança) têm a clara percepção de que mudou acentuadamente o ambiente de segurança na Europa, a partir do momento em que Vladimir Putin, em Fevereiro de 2014, resolveu anexar a Crimeia e desestabilizar a Ucrânia, desafiando abertamente a ordem internacional, testando a unidade transatlântica e lançando uma sombra pesada sobre os membros da União e da NATO que integravam a União Soviética (Bálticos) ou que estavam sob o seu domínio na Europa Central e Oriental.
A agressão da Ucrânia foi uma espécie de alarme inesperado que ainda não deixou de tocar. Quatro anos antes, em Lisboa, a Aliança tinha decretado o fim da Guerra Fria e recebido o Presidente russo Dmitri Medvedev (no intervalo entre dois mandatos de Putin) como um amigo. Hoje, a Rússia será o tema incontornável que volta colocar no topo das prioridades da Aliança o seu papel original de defesa colectiva.
2. A Europa chega à capital polaca dividida quanto à melhor estratégia para lidar com a Rússia. Países como a Polónia, as repúblicas bálticas ou a Roménia querem ver a Aliança comprometer-se com a sua segurança, tal como o Artigo 5º do Tratado de Washington estipula. Confiam mais nos Estados Unidos do que nos seus parceiros europeus. Temem que a sua defesa possa um dia ser oferecida no altar das boas relações com a Rússia. A memória do passado continua viva. Durante anos, os aliados ocidentais afastaram com irritação as suas preocupações. Hoje, é muito mais difícil ignorá-las.
A aparente unidade europeia face à agressão russa (uma reacção que não estava nos cálculos de Putin) só foi possível, em boa medida, graças a Angela Merkel, que teve o mérito de perceber que a Europa passava a ter um grave problema de segurança no seu flanco Leste e que era preciso articular com Obama uma resposta credível. As sanções têm sido renovadas sem problemas mas com muitos resmungos de bastidores. Países como a Itália, Espanha ou Grécia prefeririam uma política de deixar andar.
A saída do Reino Unido aumenta as dificuldades de Merkel para manter a unidade europeia. A chanceler começa logo por ter de enfrentar as divisões dentro da própria coligação que lidera. O seu chefe da diplomacia, Frank-Walter Steinmeier, do SPD, acaba de contrariar abertamente a orientação da chanceler, acusando alto e bom som o secretário-geral da NATO de ser um “fautor de guerras”, precisamente quando os aliados tentam encontrar um equilíbrio entre dissuasão e diálogo com Moscovo.
As palavras de Steinmeier “deliciaram o Kremlin”, escreve a Economist. É conhecida a velha “preferência” do SPD por um bom entendimento com Moscovo, que remonta à época da Ostpolitike de Willy Brandt (em circunstâncias totalmente diferentes) e que teve o seu momento na guerra do Iraque, quando o chanceler Gerhard Schroeder operou uma verdadeira ruptura num dos dois pilares essenciais da política externa alemã desde a II Guerra: a fidelidade aos Estados Unidos.
Agora, os chefes da diplomacia alemã e francesa elaboraram uma nova iniciativa para ultrapassar o "Brexit", que regressa à velha questão de uma defesa europeia fora da NATO, que já tinha sido superada há muito em Paris e em Berlim. Os dois ministros propõem uma “cooperação estruturada” na defesa, prevista mas nunca utilizada no Tratado de Lisboa, voltando a tentar marcar as distâncias em relação à NATO. Pode ser uma mera estratégia eleitoral de Hollande e do SPD, ambos com eleições à porta. É provável que não tenha grande futuro, porque a crise de segurança europeia, a Leste e a Sul, é demasiado perigosa para dispensar a NATO (ou seja, os EUA).
A proposta para uma nova Estratégia Global da União Europeia, apresentada por Federica Mogherini aos líderes europeus na semana passada, sublinha sem margem para dúvida o princípio de que a Aliança Atlântica continua a ser a “pedra angular da segurança transatlântica, como foi por mais de 70 anos”.
3. Num estudo recente publicado pela Notre Europe, o diagnóstico da forma como a Europa tem lidado com a Rússia coloca o dedo na ferida. Em todas as frentes de segurança, “é a Rússia que marca o tempo e define a agenda”. Na Ucrânia como na Síria. A Europa limita-se a reagir. O estudo recomenda que se faça, de uma vez, o balanço dos sucessivos fracassos na relação com a Rússia, desde 1991. Não se trata de uma nova Guerra Fria nem de uma imitação da velha Ostpolitike e é impossível uma política de apaziguamento. “Para a Europa, a questão central é definir uma política russa e não várias políticas russas”, pragmática e sem ilusões, “que não seja tomada por fraqueza”. “Goste-se ou não, a Rússia é hoje o principal rival geopolítico da Europa no mesmo continente”.
4. Finalmente, a única boa notícia diz respeito ao eterno apelo americano para que a Europa gaste mais com a sua própria defesa: os aliados europeus, incluindo a Alemanha, estão a reduzir muito mais lentamente os seus orçamentos de defesa e preparam-se para inverter a tendência já em 2016. A Alemanha percebeu que terá de fazer um esforço suplementar. Vai aumentar em 130 mil milhões o seu gasto com a defesa nos próximos quinze anos, atribuindo o grosso das verbas à modernização do seu equipamento. A Europa deixou de ser um exportador de estabilidade e de paz, para passar a ser um importador da instabilidade e de guerra, que grassam nas suas fronteiras. A mudança veio para ficar. Sinal dos tempos, como escreve Anna Wieslander do Instituto Sueco de Assuntos Internacionais, “o Governo de Estocolmo (social-democrata) tomou a iniciativa de aprofundar a cooperação militar com os Estados Unidos, partindo, em parte, da ideia de que que a NATO seria demasiado lenta a reagir a uma crise na região do Mar Báltico” e de que os compromissos bilaterais com os Estados Unidos “são a questão crucial para a segurança sueca”.