Radiohead e Arcade Fire: a derradeira missa
As duas maiores bandas indie pós-Nirvana encontram-se no NOS Alive. Definiram-nos a juventude, mas qual o lugar delas agora que a juventude acabou?
Quando em 1995 os Radiohead editaram The Bends, o seu segundo longa-duração, Francisco Mendes da Silva correu pelas ruas de Viseu fora a “comprá-lo, mesmo sem ter ouvido uma canção que fosse antes”, simplesmente porque “era o novo disco da banda do Creep”. Francisco, por esses dias, contabilizava 15 anos, a idade com que começamos a descobrir-nos e ao mundo. No caso, descobriu que os Radiohead “eram mais do que uma canção”. Canção a que devotava um amor compreensível: “Ali entre os 13 e os 15 o Creep era sempre o expoente máximo das festas, o momento certo para nos aproximarmos das raparigas. Se a música pop foi feita para engatar miúdas, então o Creep era o auge”.
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Quando em 1995 os Radiohead editaram The Bends, o seu segundo longa-duração, Francisco Mendes da Silva correu pelas ruas de Viseu fora a “comprá-lo, mesmo sem ter ouvido uma canção que fosse antes”, simplesmente porque “era o novo disco da banda do Creep”. Francisco, por esses dias, contabilizava 15 anos, a idade com que começamos a descobrir-nos e ao mundo. No caso, descobriu que os Radiohead “eram mais do que uma canção”. Canção a que devotava um amor compreensível: “Ali entre os 13 e os 15 o Creep era sempre o expoente máximo das festas, o momento certo para nos aproximarmos das raparigas. Se a música pop foi feita para engatar miúdas, então o Creep era o auge”.
Deixemos por um instante acerca de se Creep foi ou não a canção ideal para um rapaz se aproximar de uma rapariga e centremo-nos no tempo: de 1995 para cá passaram 21 anos. Nesse período Francisco largou as borbulhas, foi para a universidade, tornou-se advogado especialista em Direito Fiscal e uma das vozes conservadores mais conhecidas do país, colunista do Diário Económico e protagonista do programa Sem Moderação, no Canal Q, ao lado de João Galamba e Daniel Oliveira.
Por sua vez, os Radiohead deixaram de ser a banda de Creep e gradualmente tornaram-se o equivalente sonoro a um ataque de ansiedade, antes de se reescreverem como vanguardistas e posteriormente emergirem como (potencialmente) a maior banda de rock do mundo.
Vinte e três anos é tempo suficiente para o mundo viver nova paixão à guitarra, alimentar novo amor pelo épico, derreter-se mais uma vez com aquele tipo de melancolia explosiva pelo qual o melómano português se pela e pôr a hipótese de estarmos novamente perante outra maior banda de rock do mundo ou, como Francisco gosta de dizer, “mais uns novos U2”, esse insulto que se lança às bandas cuja capacidade de dizer coisas íntimas começa a chegar a demasiada gente para haver intimidade.
A nova paixão – presumo que nem seria necessário dizer – são os Arcade Fire, que em 2004 surgiram com uma aura de mistério que lhes valeu um culto imediato, de contornos juvenis, é certo, mas também vagamente religiosos, ao ponto de o músico Miguel Ângelo recordar assim aquela aparição nos territórios de Paredes de Coura, corria o ano de 2005: “O Funeral [primeiro disco dos Arcade Fire] já se sabia muito bom mas aquela coisa do 'Eu vi primeiro', 'Aquele concerto é que foi bom', enfim, matéria que torna lenda urbana qualquer arroto mais prolongado, é que me agarrou. A mim irrita-me sempre um bocado reconhecer em qualquer igreja matéria de facto. Mas não há dúvida que na oração Arcade Fire está lá qualquer coisa”.
Igreja, oração – é difícil fugir a isto. O nosso mundo ainda é católico e centra-se na ideia de expiação, nesse gesto redentor que é deitar cá para fora; o rock imita-o a cada refrão explosivo. Tanto no caso dos Radiohead como no dos Arcade Fire é isso que se espera dos fãs: que sigam os profetas a cada compasso, que façam de cada melodia espelho das suas angústias.
Não é por acaso que a guionista, apresentadora de televisão e radialista Ana Markl conta que quando Funeral se lhe apresentou à frente (já ia ela a meio dos vintes) lhe deixou “a sensação de aquelas canções soavam às minhas memórias, como se fossem escritas por uma criança de alma velha”. O indie rock funciona assim: por identificação com uma melancolia e uma nostalgias que parecem partilhadas.
Posto assim, quase parece que Radiohead e Arcade Fire são a mesma banda. Têm uma guitarra no centro, uma percentagem de acordes menores elevada e aparentam falar de coisas profundas (e muito possivelmente fazem-no). Quem gosta sabe cada uma daquelas letras, que por alguma razão parecem dizer-nos alguma coisa da nossa vida. Ambas actuam este fim-de-semana no NOS Alive (os Radiohead sexta-feira, os Arcade Fire sábado) e se isto, para alguns, podia ser um cartaz a anunciar uma batalha de titãs, para outros (os que na música procuram a novidade, o agora) não há melhores palavras para um epitáfio que Arcade Fire e Radiohead. Não se desmereça esta última hipótese: de certa forma talvez estejamos a viver o fim daquele sonho que foi a ascensão da música indie ao topo das tabelas de vendas. Com Ok Computer, era como se os desalinhados – os Creep – tivessem sido aceites, estivessem em maioria. Todas aquelas horas passadas no quarto em que pensavam que mais ninguém sentia as coisas como eles sentiam – isso havia sido vingado. Não estavam sozinhos. Um dia poderiam mesmo vir a ter uma namorada.
A educação sentimental
Mas o que são hoje os Radiohead e os Arcade Fire no mundo de Beyoncé? São as bandas que musicam a nossa expiação? A catarse geracional possível no sem graça do pós-Cobain? Relíquias do tempo em que as guitarras mandavam? Há pouco tempo um zarolho liderou a juventude, legitimando a tristeza e a inadequação. Como pode ele hoje lutar num mundo que abana afinado pela cintura de Rhianna?
Estamos a olhar para ambas as bandas como se fossem uma só coisa – um erro, mas um comum: quase todos tendemos a ver nas bandas indie uma espécie de materialização da nossa intimidade. Mas talvez não seja assim, talvez isso seja redutor. O melhor que podemos fazer para entender o papel dos Radiohead e dos Arcade Fire é comparar aquilo que é a imagem mediática deles com o que os fãs dizem a seu respeito.
Tomemos o caso do humorista José de Pina. Ele está longe de ser um membro da geração de 70 que levou com a banda de Thom Yorke em cima – Pina vai a meio dos 50 e conheceu-os aquando de Ok Computer. Depois foi para trás, a The Bends, de que gostou imenso. Mas perguntem-lhe se ele sofreu imenso com My iron lung ou Karma police, se ele revê a sua vida nas palavrinhas de No alarms, no surprises. “Não era bem a mensagem do Thom Yorke que me fascinava”, responde o famoso sportinguista, acrescentando: “Sabes aquela malta fã dos Smiths que adora as letras do Morrissey? Para mim os Smiths eram mais que as letras”. Com os Radiohead era parecido: “Aquela visão do mundo que o Thom Yorke tem – nunca fui por aí. O que me interessava era mais a estética da coisa”
Pina não é um apreciador distante. Estava lá, no concerto do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 22 de Julho de 2002, quando apresentaram Hail To the Thief, de que também gosta muito – não esteve nos concertos em que abriram para os James, mas também não lhes havia prestado atenção na altura. Pina conta uma história: “Um amigo meu, um daqueles tipos do prog, e sabes como os tipos do prog são, só ouve prog, adorava os Radiohead, dizia-me que tinham coisas de prog. Eles foram buscar essa malta, a malta que durante anos ouvia Bowie, por aí”.
A posição de Pina é um bom exemplo de um dos tipos de ouvintes de Radiohead, do qual nos esquecemos muitas vezes porque pensamos que todas as pessoas estão com uma banda pela purga pessoal: Pina é o tipo que ouve ali uma evolução musical.
Mas há mais tipos diferentes de ouvintes que o devoto. Voltemos a Mendes da Silva – ele não apanhou o comboio lírico do profeta Thom Yorke: “Aquilo para mim era o diálogo e a tensão entre as guitarras”. Mendes da Silva gosta “muito até ao Ok Computer”. Mas Kid A diz-lhe menos. “Respeito e percebo a ambição artística de ir para fora do registo canção e até gosto do Amnesiac – mas a partir do Hail To the Thief ficaram presos ao seu próprio conceito. E mesmo em termos temáticos continuaram a repetir-se”.
Por estranho que vos possa parecer este é outro perfil de usuário regular de Radiohead: a pessoa que gosta de The Bends e Ok Computer mas não aprecia o que vem a partir daí. No fundo: o tipo que gosta de canções.
O fã tradicional de Radiohead podia ser representado pelo analista de futebol Rui Malheiro, para quem “ouvir The Bends (com 18 anos) e o OK Computer (com 20) foi a melhor educação sentimental/musical possível”. O preferido de Malheiro é OK Computer, um disco “fodidamente belo” em que as palavras são importantes: “Ainda são melhor nas entrelinhas do que nas linhas”.
Malheiro não cresceu ciente de que o seu amor pelos Radiohead era razoavelmente comum: em Vila do Conde essa paixão só era partilhada com um amigo: “Só me recordo da Creep fazer algum furor, da mesma forma que a Smells Like Teen Spirit representava Nirvana”. Depois veio a internet: “Por volta de 1998, o mIRC colocou-me no #radiohe@d. e o que é engraçado é perceber que alguns dos meus melhores amigos de hoje são pessoas que “conheci” ali”.
Tantos anos depois e Ok Computer é um dos três discos que Malheiro mais ouviu. Os Radiohead são “a banda mais importante do século XX, a banda que melhor fez música do século XXI no século XX, e estabeleceram uma série de pontes cruciais entre o passado e o futuro, estando – no presente – sempre à frente do tempo. No fundo, recorrendo a uma analogia futebolística, são o Ajax/Holanda da década de 1970”.
Pina, Mendes da Silva e Malheiro são todos fãs; mas não ouvem nem sentem da mesma maneira. Esquecemo-nos muitas vezes disto.
A relação de Malheiro com os Arcade Fire, de que também é fã, é diferente: “Radiohead é um fenómeno anterior à explosão da internet. Quando saiu o Funeral tinhas, pelo menos, mais uma dezena de discos muito bons para ouvir à distância de dois ou três cliques”. Ele adorou “a saga Neighborhood pequeno ciclo de canções dentro de Funeral]. Foi essa viagem, entre o trapézio e uma montanha russa desgovernada, que me prendeu ao disco”.
Punha-nos os pelos em pé, “aquela fantasia de fuga no Neighborhood #1 ou a ideia de dançar com as luzes dos carros da polícia no Neighborhood #2.”, para citar Ana Markl. “Para mim, é como se eles tivessem conseguido fixar no disco aquela réstia de fantasia que nos permite defendermo-nos das desgraças quando somos miúdos e que vamos perdendo à medida que crescemos”.
É difícil encontrar melhor definição para o que os Arcade Fire pareciam ser por alturas de Funeral. “Ainda outro dia falava com alguém”, continua Ana, “que se referia ao Funeral como uma espécie de Siamese Dream para adultos. Não tem, na verdade, nada a ver – mas talvez tenha tido um impacto emocional parecido numa altura da vida completamente diferente”.
Siamese Dream ou não, estamos sempre órfãos de qualquer coisa – órfãos de algo que nos sacuda emocionalmente e organize a nossa vida emocional. Sempre órfãos de sentido. Funeral trouxe-o, quando muitos de nós já não o esperavam e quando os mais novos ainda não o haviam sentido.
A radialista diz que a sua não é uma devoção incondicional “porque uma garota da minha idade tem a obrigação de manter algum recuo crítico e reconheço que haja um ou outro momento mais aborrecido no seu reportório”. Mas não é assim para todos.
Alexandra Silva pôs uma vez na rede social Facebook um vídeo hilariante – ela a conduzir enquanto cantava Reflektor como se fosse Win Butler, o líder dos Arcade Fire. (Pedimos à polícia que não ligue a este detalhe.) Esta é uma experiência diferente daquela que os fãs de primeira hora dos Radiohead tiveram quando a banda surgiu: a internet mudou tudo, já não se vive a paixão em segredo pensando ser-se caso único.
Ela vai a meio dos 30s, estudou História e trabalha no meio editorial. Ao contrário das restantes pessoas citadas neste texto não é uma figura pública e se está aqui é como contraponto a eles: a pessoa que não sente necessidade de refrear o que sente porque não é conhecida. É a derradeira fã de Radiohead e dos Arcade Fire, por quem sente um “amor quase religioso”. Faz parte daquele grupo de admiradores que afirma que “cada coisa nova que [os Radiohead] fazem é de facto diferente”. Em 2002 foi aos três concertos que eles deram cá. Mas ela também representa um tipo de discurso sobre estas bandas, particularmente comovente no seu caso.
Reparem como ela narra a sua experiência, num fórum na net (o Fórum Sons, que começou neste jornal), onde descobriu Funeral muito antes de este sair: “A minha mãe estava com cancro da mama e a minha tia a morrer. Porra, aquilo fazia todo o sentido. Mais uma vez aparecia uma banda a narrar a minha vida sem me conhecer. Toda a gente no fórum falava daquilo e passei o mp3 do disco a mais um cento de amigos. Senti que aquele disco podia ser mais ou menos uma bíblia para mim porque era um bom guia espiritual para as dores que estava a viver”.
Entretanto houve “o famoso concerto de Paredes de Coura” em 2005 e os Arcade Fire cantaram o seu sofrimento e as suas alegrias. “Percebi que daí a nada estariam em festivais grandes a encerrar palcos. Não me enganei”. A dor de fim de infância deu lugar à dança. Reflektor já não é um disco de agarra os últimos raios de sol antes que este dê lugar à noite, é o disco de quem vai brilhar na pista de dança.
Reflektor é um disco de quem aceita que ser rico pode não ser mau. Um disco de quem aceita que a dança e o sexo são coisas não desagradáveis. Um disco de quem se cansou da sua própria caricatura.Da mesma forma, na sua fúria anti-capitalista os Radiohead tornaram-se um admirável caso de marketing e gestão de carreira. E não vale a pena dizer que eles já não estão numa demanda musical se isto vai contra o discurso de uma boa parte dos fãs.
Em dois momentos alternados aquelas guitarras salvaram-nos a vida, foram a última explosão antes da idade adulta. Talvez já não o façam. Mas talvez já não seja isso que está em causa. Sobrevivemos, eles também. Como dizia Thom Yorke há pouco tempo numa entrevista: "Se eu não apreciar isto agora, quando é vou apreciar?"
Não estava a falar de música. Estava a falar da vida.