A dura vida de um cinéfilo em Bolonha
Marlon Brando, Antonio Pietrangeli, Lang, Clouzot: para o 30ª aniversário do festival Il Cinema Ritrovato, a Cinemateca de Bolonha preparou um programa tão intenso que nem a doçura de vida que na capital da Emilia-Romagna convive com a sua tradição industriosa e livresca conseguiu aligeirar.
Duríssimo o quotidiano de um cinéfilo em Bolonha durante 25 de Junho e 2 de Julho, durante o programa que a Cinemateca de Bolonha preparou para os 30 anos do festival Il Cinema Ritrovato. Senão, vejamos um exemplo ao acaso. A jornada começa às 9h00, no cinema Jolly ainda fresco, o que não acontecerá no final do filme, uma vez que o ar condicionado claudicará perante a multidão entusiasmada que acorre à primeira sessão do dia, ávida de ver o raríssimo Laughter in Hell, realizado por Edward L. Cahn em 1933, integrado no ciclo dedicado aos anos Laemmle Jr. da Universal Pictures (1929 a 1936 e que incluiu títulos dirigidos por William Wyler, James Whale, Paul Fejos e Paul Leni). Feito na senda do êxito da Warner Bros. com Paul Muni I Am a Fugitive from a Chain Gang, o filme vai muito mais longe do que o seu predecessor mais célebre tanto do ponto de vista político como estilístico, constituindo uma das obras mais radicais do cinema americano da época. O hoje injustamente esquecido Cahn manifesta de uma forma clara influências do expressionismo alemão (e, porque não, do cinema russo) no retrato cru que faz da América dos anos da Depressão.
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Duríssimo o quotidiano de um cinéfilo em Bolonha durante 25 de Junho e 2 de Julho, durante o programa que a Cinemateca de Bolonha preparou para os 30 anos do festival Il Cinema Ritrovato. Senão, vejamos um exemplo ao acaso. A jornada começa às 9h00, no cinema Jolly ainda fresco, o que não acontecerá no final do filme, uma vez que o ar condicionado claudicará perante a multidão entusiasmada que acorre à primeira sessão do dia, ávida de ver o raríssimo Laughter in Hell, realizado por Edward L. Cahn em 1933, integrado no ciclo dedicado aos anos Laemmle Jr. da Universal Pictures (1929 a 1936 e que incluiu títulos dirigidos por William Wyler, James Whale, Paul Fejos e Paul Leni). Feito na senda do êxito da Warner Bros. com Paul Muni I Am a Fugitive from a Chain Gang, o filme vai muito mais longe do que o seu predecessor mais célebre tanto do ponto de vista político como estilístico, constituindo uma das obras mais radicais do cinema americano da época. O hoje injustamente esquecido Cahn manifesta de uma forma clara influências do expressionismo alemão (e, porque não, do cinema russo) no retrato cru que faz da América dos anos da Depressão.
Mal refeito do abalo estético, há que percorrer a passo largo os pouco mais de 500 metros que separam o Jolly da sala Scorsese da Cinemateca, onde será exibida a cópia restaurada de Taipei Story, segundo filme a solo de Edward Yang, um dos arautos da nova vaga taiwanesa juntamente com Hou Hsiao-hsien (que colabora no argumento e participa como actor) surgida na primeira metade dos anos 80 e que o resto do mundo só viria a descobrir alguns anos mais tarde. Viagem no tempo e viagem no espaço largamente compensada, pois Taipei Story ostenta já todas as características do cinema enraizado numa experiência pessoal e na realidade contemporânea que virão a constituir a base do êxito das obras-primas posteriores de Yang (A Brighter Summer Day, Yi Yi).
Civilizadamente, o festival faz um intervalo para o almoço. Forçoso é fazer uma refeição ligeira, e não faltam as trattorie ou as tavole calde nas imediações com deliciosas insalate ou paste fresche, pois as sessões da tarde não se fazem esperar e prometem ser tão ou mais intensas.
A cor no cinema, nomeadamente a história dos vários processos de cor, tem nos últimos anos sido objecto de alguma atenção de festivais e cinematecas. Il Cinema Ritrovato exibe desde o ano passado cópias Vintage - cópias em 35mm da época, em bom estado) de filmes rodados nas cores majestosas do processo Technicolor. Porém, em vez de ver pela enésima vez Singin' in the Rain ou Marnie, regresso ao Jolly optando por Yoru no kawa (Night River, 1956), filme do ciclo Harmoniosa Riqueza, dedicado ao cinema a cores no Japão. Apesar de algumas experiências antes da guerra, a cor só chega ao cinema comercial japonês no pós-guerra, datando o primeiro filme inteiramente a cores de 1951 (Carmen Comes Home de Keisuke Kinoshita, também exibido neste ciclo). Yoru no Kawa, como grande parte dos filmes realizados por Kozaburo Yoshimura, passa-se em Quioto. Através da história da relação entre uma estilista de quimonos e um professor casado, o filme explora de forma convincente o choque entre tradição e modernidade no pós-guerra. A utilização que Yoshimura faz da cor (Kazuo Miyagawa, um dos maiores directores de fotografia do cinema japonês, inspira-se nos padrões dos quimonos para comentar os estados de alma da protagonista) empresta ao filme um extraordinário impacto visual.
A sessão que se seguia, de novo na Cinemateca, era uma das mais aguardadas de todo o festival: a cópia restaurada de um dos primeiros filmes de Fritz Lang, Der müde Tod (A Morte Cansada, 1921): em cópia tintada, com intertítulos refeitos e sequências recuperadas por entre as cópias existentes nas várias cinematecas do mundo, num trabalho exemplar, é um dos mais extraordinários exemplos do cinema mudo alemão. Lang (e a argumentista Harbou) aproveita contos populares, de caracterização psicológica simples, para pôr em cena questões complexas como o destino e a inevitabilidade da morte. E tudo isto já com uma mestria narrativa admirável.
Novo intervalo para descansar os olhos, desentorpecer as pernas pelas características galerias que cobrem os passeios de Bolonha, e escolher o restaurante onde retemperar forças com um bollito (prato típico semelhante a um estufado de carnes variadas), regado com um belo tinto da região.
Para a sessão da noite há várias opções, entre as quais se contam um dos filmes do ciclo Primavera Tardia, iniciado no ano passado, que procura lançar um novo olhar sobre o cinema soviético do período do degelo (anos Khrushchev) ou um dos do ciclo sobre a história alternativa do cinema argentino, preparado pelo cineasta e escritor Edgardo Cozarinsky. Todavia, confiante em que o crepúsculo do degelo já não me traga surpresa e sabendo que este mesmo ciclo de cinema argentino vai ser exibido em breve na Cinemateca em Lisboa, não resisto à tentação de ir à Piazza Maggiore para uma das experiências cinematográficas mais arrebatantes que é ver um filme ao ar livre no ecrã gigante instalado numa das mais belas praças do mundo, rodeado por milhares de pessoas em silêncio (enfim, com alguns telemóveis piscando, sempre estamos em Itália). Hoje trata-se da estreia mundial da cópia imaculadamente restaurada de Quai des Orfèvres de Henri-Georges Clouzot, um dos seus melhores filmes. Clouzot escolheu um romance do escritor policial belga Stanislas-André Steeman para o seu regresso ao cinema depois de figurar injustamente na lista negra após a Libertação (era acusado de ter realizado um filme depreciativo para a França, precisamente o seu grande êxito Le corbeau); com um policial, esperava despertar menos paixões. Porém, o retrato lúgubre e amargo que faz do universo dos cabarés de Paris e do pequeno mundo que os rodeia em nada fica a dever ao cinismo subjacente à sua obra anterior.
Viagem através do cinema francês
O cinema francês esteve, aliás, na ribalta desde o primeiro dia. Dois programas reuniram nada menos do que 19 "microfilmes" de 1896 do atelier Lumière; vários filmes procuraram reavaliar o papel de Marie Epstein como colaboradora do irmão, Jean Epstein (La Chute de la Maison Usher, 1928), e como realizadora (Peau de pêche, 1929); o recente restauro de vários títulos franceses permitiu a sua descoberta ou revisão (Les sorcières de Salem de Raymond Rouleau, com Yves Montand e Simone Signoret, invisível desde a estreia em 1957; Les portes de la nuit, longe de ser a melhor - talvez por isso a última - colaboração entre Carné e Prévert; Muriel ou le temps d'un retour, terceira longa-metragem, terceiro trabalho sobre os efeitos do tempo na memória e terceira obra-prima de Alain Resnais).
Aliás, o festival abriu oficialmente com Voyage à travers le cinéma français, o longo documentário em que o realizador Bertrand Tavernier presta homenagem e analisa os filmes e cineastas "da sua cabeceira" dos anos 30, 40 e 50. Mais do que um trabalho crítico sobre os clássicos, esta viagem é um trajecto pessoal e admirativo sobre um período que Tavernier considera como os seus anos de formação cinéfila. Repleto de histórias pessoais divertidas e de beliscões em personalidades "sagradas" (Renoir, Melville... não saem incólumes...), de escolhas de imagens magníficas e de outras menos surpreendentes, as suas três horas e 15 minutos deixam-se ver agradavelmente embora, por vezes, a excessiva personalização e uma certa ligeireza possam irritar.
Outro dos pratos fortes foi a retrospectiva quase completa de Jacques Becker, um dos cineastas mais admirados por Tavernier. Bolonha permitiu rever algumas das suas obras-primas absolutas como Goupi Mains Rouges, um dos melhores filmes sobre o mundo rural jamais feitos, Touchez pas au grisbi, Gabin imperial num falso policial sobre o envelhecimento e a amizade, e Le trou, um dos grandes filmes sobre fugas de prisão da história do cinema.
Claro que nem só de cinema francês se fez Il Cinema Ritrovato. Dois autores da chamada equipa B italiana estiveram em foco este ano em Bolonha, a exigirem bem alto a passagem à equipa A: Mario Soldati e Antonio Pietrangeli.
Soldati, escritor já reconhecido quando assina as suas primeiras obras imediatamente antes da guerra, abandonou a carreira como realizador de cinema para se dedicar à televisão nos anos 60, não apenas dirigindo mas também como entrevistador e entertainer. Não só por isso, mas também porque se manteve sempre à margem dos novos ventos neo-realistas que sopraram no pós-guerra, a sua carreira de cineasta é hoje pouco valorizada, principalmente fora de Itália; contudo, a pequena retrospectiva que o festival lhe dedicou e, sobretudo, a visão da flaubertiana La provinciale, belíssimo drama com Gina Lollobrigida, exigem uma reavaliação da sua filmografia.
Antonio Pietrangeli, autor de uma obra curta devido à sua morte prematura aos 49 anos, está felizmente hoje a caminho de obter o lugar que lhe cabe como grande cineasta, cujos filmes centrados em mulheres contam algumas verdadeiras obras-primas: Io la conoscevo bene (1965), com Stefania Sandrelli, agora exibido numa cópia restaurada, é uma delas.
Organizado anualmente pela Cinemateca de Bolonha, o festival Il Cinema Ritrovato tem a característica única de não apresentar filmes novos (a maioria tem... cem anos!, muitos são do princípio do sonoro, enfim, são todos do tempo da maria cachucha). Aquilo que os une é que são o resultado de trabalhos de restauro, apresentados em cópias frequentemente imaculadas como as novas gerações nunca os tinham visto, ou então surgem integrados em miniciclos elucidativos, projectados em salas excelentes ou ao ar livre, no mais belo cenário que Bolonha tem para oferecer, a Piazza Maggiore. É isso, portanto, que atrai todos os anos uma pequena multidão de movie buffs entusiasmada.
Mas o embaraço da escolha proposta por Il Cinema Ritrovato não se limitou aos filmes. Organizado pela Cineteca di Bologna, o festival acolheu este ano o Congresso da FIAF (Federação Internacional dos Arquivos de Filmes). Aproveitando a presença de dirigentes das principais cinematecas e arquivos de filmes do mundo, realizaram-se várias conferências sob o título geral A Ideia de Conservar o Cinema, que analisaram o papel de muitos pioneiros da conservação de filmes. Foi nesse âmbito que o director da Cinemateca Portuguesa, José Manuel Costa, falou sobre a importância "inadjectivável" de João Bénard da Costa para a história da Cinemateca e para a formação de várias gerações de cinéfilos e cineastas portugueses. Aliás, este tema da formação das novas gerações faz parte das preocupações do festival, que não só tem uma secção dedicada aos mais jovens como também organizou um seminário dedicado à questão.
Por entre os "cromos" habituais (o velho arquivista britânico repleto, do pescoço aos tornozelos, de coloridas tatuagens; o crítico cuja postura desajeitada faz do Sr. Hulot uma discreta imitação; a velha guarda de programadores franceses que se digladiam para ocuparem sempre os mesmos lugares... ), é de referir que o festival reúne entre os seus participantes a nata da crítica e da cinefilia mundial. Não é raro avistarem-se ou, quando menos se espera, encontrar-se sentado ao lado de nomes sonantes, que para a maioria das pessoas talvez não diga nada mas para um cinéfilo são míticos: Jean Douchet, Michel Ciment, Dave Kehr, Olaf Möller, Paolo Mereghetti, Jonathan Rosenbaum, Kevin Brownlow, Thierry Frémaux, o próprio Tavernier, que aproveitou para seguir com alguma atenção a fabulosa retrospectiva Universal...
Il Cinema Ritrovato tem mesmo a sua dose de glamour. Fosse para proferirem lições de cinema, para apresentarem livros ou para receberem homenagens, Bolonha contou este ano com Claudia Cardinale, Bernardo Bertolucci, Marco Bellocchio, Volker Schlöndorff, Vittorio Storaro, Ermanno Olmi, os Dardenne, Jean-Claude Carrière ou Giuseppe Tornatore.
Nem lhe falta a cereja em cima do bolo de qualquer festival: os prémios. Neste caso, não aos filmes exibidos, pois dada a sua natureza não faria qualquer sentido, mas sim às edições de DVD. Os prémios para os DVD do ano já vão na XIII edição e este ano o principal foi baptizado com o nome do antigo director artístico de Il Cinema Ritrovato, Peter Von Bagh, falecido no ano passado. Assim, o Peter Von Bagh Award deste ano foi para a caixa Frederick Wiseman Intégrale Vol.1 (1967-1979), da editora francesa Blaq Out.
Brando recuperado
Se a exibição de Der müde Tod de Fritz Lang foi um dos momentos altos do festival, a de So ist das Leben (Assim é a vida) de Carl Junghans foi outro. Junghans era conhecido pelos documentários de propaganda que fez para o partido comunista alemão quando em 1929 foi a Praga filmar um dos mais célebres exemplos do Kammerspielfilm (género que traçava um retrato intimista da vida quotidiana da pequena burguesia urbana durante a República de Weimar). A reputação do filme foi crescendo à medida que se foi fazendo mais raro, tendo desaparecido da circulação nos últimos anos, ou sendo visto em cópias bastante deterioradas que algumas cinematecas ainda detinham.
Em Bolonha foi agora apresentado um restauro exemplar (levado a cabo pelas cinematecas de Budapeste e de Praga) que põe de novo em relevo uma das últimas obras-primas do mudo alemão. So ist das Leben reúne um cast internacional perfeito (só possível no tempo do mudo) composto por Vera Baranovskaia, a extraordinária actriz russa intérprete da Mãe de Pudovkin, Theodor Pištek, grande actor e realizador checo, e Valeska Gert, mítica actriz e bailarina berlinense, intérprete de Pabst, Renoir e Fellini, sobre a qual Volker Schlöndorff realizou em 1977 um documentário (Nur zum Spaß, nur zum Spiel. Kaleidoskop Valeska Gert), também aqui exibido, depois da participação da actriz, então com mais de 80 anos, no filme Golpe de Misericórdia, adaptação por Schlöndorff da novela de Marguerite Yourcenar. Um complemento maravilhoso que revela uma personalidade artística única, participante em movimentos como o construtivismo russo e a dança grotesca, que misturava o teatro, a dança e o circo em performances não naturalistas frequentemente sublimes.
Terminado o restauro das comédias de Chaplin dos períodos Keystone, Mutual e Essanay, o laboratório L'Immagine Ritrovata de Bolonha prossegue com o projecto Chaplin, tendo este ano sido exibida a nova cópia de The Kid. Entretanto, o laboratório não perdeu tempo e lançou-se no projecto Keaton. Várias das suas curtas foram já apresentadas e este ano foi também exibida a versão restaurada de Seven Chances (1925). Além do filme de Buster Keaton e de muitos outros anteriormente referidos, pude deliciar-me com as cópias restauradas do filme cubano Memorias del Subdesarrollo de Tomás Gutierrez Alea (1968), que ainda hoje surpreende pela sua modernidade, de A Noite Fez-se para Amar de Robert Altman (1971), que mantém intacta toda a sua força, e de Emperor of the North Pole de Robert Aldrich (1973), que mete num chinelo todos os blockbusters da era CGI.
Fritz Lang e a retrospectiva da Universal foram os momentos fortes do festival deste ano, mas o guilty pleasure (e apesar de tudo, como puderam confirmar os milhares de espectadores presentes na Piazza Maggiore, não tão guilty assim) vai para a exibição de uma cópia finalmente restaurada (circulava por aí em edições DVD péssimas) do único filme realizado por Marlon Brando, One-Eyed Jacks, belíssimo western que, apesar de ter ganho a Concha de Ouro em San Sebastian em 1961, se tornou num filme maldito, tendo conhecido uma produção acidentada, com várias versões do script, montagem inicial de cerca de 5 horas, depois cortado e remontado pelos produtores, assustados com a visão trágica do mundo, com a ausência de um herói positivo e com o seu ritmo lento, deixando Brando profundamente insatisfeito. O restauro, se bem que não recuperando a duração inicial, vai permitir às novas gerações redescobrir um dos mais originais e insólitos westerns jamais feitos (desde logo, o único de que me lembro em que o mar tem uma presença significativa).