O creme das avós é agora uma marca de luxo

Nascida em 1925, a Benamôr tem novos donos e vai ser relançada. A ambição é criar uma marca de "luxo acessível", com presença internacional.

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“De um lado a produção em escala, de outro, a alta-costura”, é assim que Pierre Stark, presidente executivo da Nally, descreve as duas realidades distintas que coabitam nos seis mil metros quadrados da fábrica no Carregado: a Nally e a Benamôr.

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“De um lado a produção em escala, de outro, a alta-costura”, é assim que Pierre Stark, presidente executivo da Nally, descreve as duas realidades distintas que coabitam nos seis mil metros quadrados da fábrica no Carregado: a Nally e a Benamôr.

A Nally é o maior produtor nacional de cosmética líquida para terceiros, um caminho que a empresa começou a trilhar nos anos 80, para compensar a queda das marcas próprias. A Benamôr é a marca de cremes de rosto e mãos da Nally. Nasceu ainda na década de 20, "resistiu às complicações portuguesas do século XX" e agora prepara-se para ganhar uma nova vida embalada pela renovada fama da cidade de Lisboa.

O relançamento da marca, nesta semana, é o culminar de um trabalho de vários meses, desde que no ano passado Pierre Stark e Filipe Serzedelo compraram a empresa fundada nos anos 30, que teve entre as mais conhecidas clientes a rainha D. Amélia. Longe vão os tempos em que “o maravilhoso aformoseador de pele” era sucesso garantido entre as senhoras portuguesas e que a concorrência se contava pelos dedos de uma mão. Hoje os tempos são outros, mas os dois sócios acreditam que é o momento certo para relançar a Benamôr.

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“Há uma tendência internacional” de “respeito pelos produtos antigos e pelo fabrico artesanal” e “de procura de autenticidade, perenidade e qualidade, e esses são valores da nossa marca”, resume Pierre Stark. “Vamos totalmente à boleia de Lisboa”, admite Filipe Serzedelo, “se calhar, se Lisboa não estivesse a ficar na moda não teríamos avançado”, reconhece o gestor. “Quando aqui cheguei há 15 anos, a cidade era outra. Há um momentum que temos de aproveitar, mas por etapas, não podemos arriscar tudo, temos empregos a garantir”, diz Stark.

Como é que uma dupla de gestores se deixa entusiasmar com uma marca de nicho? “A história é muito simples”, garante Pierre. Este francês, que chegou a Portugal há 15 anos como director-geral da L'Oréal, conheceu a Benamôr através da empresária Catarina Portas, da cadeia de lojas “A Vida Portuguesa”. “Ela mostrou-me o Alantoíne [creme de mãos], que tinha umas vendas espectaculares nas lojas dela, fiz o teste com consumidores em França e Inglaterra e vi que realmente tinha algo de único”.

O Pierre “falou com o Sr. Nunes [um dos antigos sócios da empresa]”, prossegue Filipe Serzedelo, “mas chegou à conclusão que aquilo não era uma marca pequenina, vinha com uma empresa grande atrás”. A dimensão do projecto fê-lo procurar um parceiro. E é aí que Filipe Serzedelo, amigo e primo afastado da sua mulher, portuguesa, entra na história. “O Pierre é o executivo e eu sou uma espécie de sócio proactivo”, diz Filipe, que é presidente executivo da empresa de gestão de resíduos Egeo.

Foi um namoro longo até o negócio se concretizar, no ano passado. “Adquirir esta empresa exigiu muita reflexão, passámos três anos a definir o plano de negócios, a negociar e a delinear a nossa estratégia”, conta Pierre. Sem querer adiantar os montantes envolvidos no negócio, os dois sócios preferem falar num “valor que foi equilibrado para toda a gente”. A empresa facturou cinco milhões de euros em 2015 e este ano a perspectiva é a de crescer 10%. No caso da Benamôr, a “ambição é fortíssima”, reconhecem. “Estamos a fazer cem mil unidades, que representam 300 mil euros/ano, mas no nosso plano de negócios prevemos chegar em três anos a um milhão de euros de facturação”.

A distribuição internacional é parte fundamental desta estratégia. A prioridade está, para já, nos “mercados naturais” da Benamôr: Espanha, França Alemanha e Inglaterra. A marca já estava presente internacionalmente, essencialmente em lojas da comunidade portuguesa, mas agora a aposta é outra, a da selectividade na distribuição, ou não fosse esta “uma marca de affordable luxury [luxo acessível]”. Além do El Corte Inglés (a “primeira grande vitória”), a Benamôr já está numa department store em Munique, a Ludwig Beck, e correm negociações com outra “loja de referência” em Berlim, a KaDeWe, e “lojas ultraselectivas” em França e Inglaterra. Em Portugal já é possível encontrar a marca nas lojas A Vida Portuguesa, onde uma bisnaga grande de Benamôr custa 12,50 euros e em algumas farmácias – a meta é estar “em 20 a 40 farmácias de referência” já este ano.

As embalagens Art Déco mantêm-se, mas a marca ganhou um novo logotipo - que foi o último trabalho do designer gráfico Ricardo Mealha, que morreu no ano passado – e cresceu de três para 17 produtos: ao creme de rosto original (que “mantém a fórmula original, mas sem parabenos!”) e aos cremes de mãos Alantoíne e creme gordo (entretanto actualizado e convertido em Gordíssimo) vieram juntar-se novos cremes de mãos e sabonetes – incluindo um que “homenageia Lisboa”, o Jacarandá. O segredo é manter os ingredientes de sempre, “como a alantoína, que é um clássico” e juntar-lhe outros mais actuais, como o aloé vera, a manteiga de karité ou o óleo de argão. No horizonte da Benamôr estão agora cremes de corpo, lip balm (batons hidratantes) e protectores solares. O objectivo é chegar aos 25 produtos já no próximo ano. O critério é que todos tenham “qualquer coisa que os torna únicos”.

“Não quisemos fazer um produto vintage, isso é uma tendência. Queremos criar uma marca de cosmética”, frisa Pierre. “Não queremos fazer um sabonete que se oferece quando se vai jantar à casa de um amigo para servir de decoração, queremos que seja o sabonete que se compra porque é bom, porque se quer tomar banho com ele”, completa Filipe. É com marcas como a francesa l’Occitane, a norte-americana Kiehl’s ou a brasileira Granado que Pierre Stark e Filipe Serzedelo vêem a Benamôr concorrer. Para já, propõem-se investir até 200 mil euros por ano no desenvolvimento da marca. “O caminho vai ser graduado, não queremos ir depressa de mais, porque uma marca pequena tem de ser sustentável”. Fazer as coisas “bem-feitas e com qualidade” é a palavra de ordem e “um bom exemplo” disso é o creme Bronzaline – o primeiro protector solar português – que só vai regressar “quando estiver afinado, com qualidade e algo especial”.

Os produtos para as cadeias de distribuição “são a realidade económica da empresa”, por outras palavras, pagam salários e permitem à Nally investir no relançamento da Benamôr. Mas nem por isso deixa de estar nos planos e na "visão" de Stark e Serzedelo a valorização deste segmento e a sua internacionalização. “O sector da beleza e cosmética é um sector de subcontratação” e há muitas marcas a surgir, sem produção própria. Mercados como a Índia e a China “têm um potencial gigante”. No futuro, “podemos vir a produzir para marcas internacionais ou retalhistas de um tipo mais valorizado”. É o caso de uma Sephora, por exemplo.

Todos os anos saem desta fábrica, automatizada e moderna, sete milhões de unidades de gel de banho e sabonete líquido para os dois principais grupos de distribuição portugueses. Um volume de produção que contrasta com o universo Benamôr, onde a máquina de enchimento “funciona desde o final dos anos 50” e a D. Rita assegura este processo “há 25 anos”.

“Quando aqui chegámos, encontrámos o amor por fazer as coisas bem-feitas, isso vê-se nos produtos e é esse conhecimento que pretendemos preservar dentro da empresa”, diz Stark. O Sr. Fernando, o encarregado que há 36 anos zela pelo funcionamento das máquinas (já o fazia quando a fábrica estava no Campo Grande, em Lisboa), garante que, apesar da idade, a qualidade do equipamento é óptima e que nestes anos todos só houve “dois ou três” problemas. “Se mudássemos a máquina teríamos um ganho de quantidade, mas não de qualidade”, garante Filipe Serzedelo.

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Também nos sabonetes, as máquinas são as italianas SAS dos anos 50. Cada um deles é moldado, cunhado e embalado manualmente. Mais uma vez, a diferença é clara: “O mundo Nally é o mundo do volume, o mundo Benamôr é o mundo do pormenor”, sublinha Pierre. Outra veterana da marca é a D. São, que há 32 anos é a “cozinheira das misturas Benamôr”. “O segredo é a temperatura, tem de se estar sempre atento, senão vem fora como o leite”, disse ao PÚBLICO.

Uma história de sobrevivência

Reza a história que a fórmula original da Benamôr foi criada em 1925, num laboratório farmacêutico do Campo Grande, onde a sede da empresa se mantém até hoje. Já a Nally, a empresa que passou a deter a Benamôr, nasceu nos anos 30, convertendo-se numa das principais empresas portuguesas de cosmética.

“Até aos anos 50, 60 houve no país 30 empresas [de cosmética] com fabrico próprio”, adiantou ao PÚBLICO o coleccionador e investigador de perfumaria portuguesa Afonso Oliveira. A Nally (detida pela família Abecassis) destacava-se, juntamente com a Ach Brito no Porto, a Confiança de Braga e a Couraça, de Lisboa, explicou Afonso Oliveira. Depois, “as grandes marcas internacionais começaram a aparecer em Portugal” e o mercado tornou-se pequeno. A Nally (que tinha uma enorme variedade de produtos, como perfumes, pó de arroz, loções para o cabelo, lacas, cremes, pastas de dentes e sabonetes) não escapou às dificuldades do sector.

Em meados da década de 60, a empresa entrou em falência. Foi então que “três trabalhadores tentaram liquidar as dívidas” e mantê-la à tona. “Eram pessoas muito jovens e persistentes”, que conseguiram garantir um empréstimo junto do Banco Espírito Santo “e começaram a desenvolver a empresa”, conta João Costa, actual director-geral da Nally, filho de João Costa, um dos três sócios que nessa época chegou a acordo com a família Abecassis. Os outros foram Álvaro Nunes e Daniel Antunes.

Mas o próximo teste à resiliência da empresa estava já ao virar da esquina. A seguir ao 25 de Abril, “a fábrica foi intervencionada” e voltou a atravessar um período de crise. Apesar de ter sido “a segunda empresa a ser devolvida aos proprietários” no pós-PREC, encontraram-na “novamente falida e com o parque industrial destruído”. Mais uma vez, foi a persistência dos sócios que garantiu a sobrevivência da Nally. “Renegociaram prazos com credores, tiveram a ajuda de alguns fornecedores e lá conseguiram voltar a pôr a empresa nos eixos”, recorda João Costa. O seu pai foi um desses fornecedores, já que, depois da ocupação da fábrica, decidiu “seguir outro caminho”, embora mantendo-se na sociedade.

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Nos anos 80 chegou “o embate da comunidade económica europeia” e as marcas da Nally ressentiram-se. A tábua de salvação acabaram por ser os grandes grupos de distribuição, que nessa altura começavam a dar os primeiros passos, lembra João Costa.

Quando a empresa “começava mais uma vez a dar a volta”, no início dos anos 90, houve um incêndio que destruiu a fábrica, obrigando-a a reerguer-se literalmente das cinzas. Em 2009, com a venda dos terrenos no Campo Grande, a fábrica mudou-se para o Carregado, para as antigas instalações da Knorr.

Dos três sócios originais, só resta Álvaro Nunes, hoje com cerca de 80 anos. João Costa, que ocupou o lugar do pai (que entretanto regressou à empresa em 2010, como sócio-gerente), acabou por ser convidado por Pierre Stark e Filipe Serzedelo a manter-se como director-geral, quando compraram a empresa no ano passado.

A Benamôr foi sobrevivendo a toda esta odisseia e, se depender de Pierre e Filipe, vai conseguir comemorar o seu centenário mais jovem do que nunca.