Kiarostami: o Irão lembra-se
Esta terça-feira, os cinemas calam-se para rezar pelo realizador. O governo e os seus herdeiros cinematográficos reconhecem o seu papel formador e divulgador - mas também a sua posição muito escrutinada perante a política do seu país.
Há uma luz que nunca se apaga, diz a canção, mas esta noite (18h30 em Lisboa) os projectores dos cinemas iranianos desligam-se por momentos para a oração por Abbas Kiarostami, o cineasta que o Irão perdeu segunda-feira e que está a lembrar com fervor. Não foram só as edições especiais dos jornais que saíram para as ruas, nem as salas que agora param em todo o país, nem a hashtag #Kiarostami que enche o Twitter – são os seus herdeiros, dentro e fora do Irão, que o elogiam, o governo que o eleva a símbolo, as críticas rebatidas e “o sabor das cerejas que se tornou amargo”.
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Há uma luz que nunca se apaga, diz a canção, mas esta noite (18h30 em Lisboa) os projectores dos cinemas iranianos desligam-se por momentos para a oração por Abbas Kiarostami, o cineasta que o Irão perdeu segunda-feira e que está a lembrar com fervor. Não foram só as edições especiais dos jornais que saíram para as ruas, nem as salas que agora param em todo o país, nem a hashtag #Kiarostami que enche o Twitter – são os seus herdeiros, dentro e fora do Irão, que o elogiam, o governo que o eleva a símbolo, as críticas rebatidas e “o sabor das cerejas que se tornou amargo”.
Este é o título da edição especial do jornal reformador Etemad, um de quatro diários iranianos que lançaram segundas edições após a notícia da morte que, segundo o correspondente do jornal francês Le Monde, “mergulhou os seus compatriotas numa tristeza profunda”. Asghar Farhadi, o realizador que em 2012 deu um Óscar ao Irão com Uma Separação, estava “em estado de choque”. Falou ao Guardian nessa condição, frisando que Kiarostami “não era só unicamente um cineasta", "era um místico moderno, tanto na sua obra quanto na sua vida privada”.
Tanto entre aqueles que trabalhavam no Irão quanto na diáspora – mais ou menos directa, mais ou menos forçada –, a referência Kiarostami é lembrada com emoção e com remissão constante para esse país que filmava de forma reticular e que, simultaneamente, transcendia. “O que é peculiar na sua arte é que ele é um artista iraniano enraizado no que toca à paisagem, às sensibilidades urbanas e à fotografia, mas também conseguiu elevar esses aspectos iranianos a momentos de universalidade”, resume o professor de Estudos Iranianos Hamid Dabashi, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, à Reuters.
Alguns dos seus sucessores, que trabalharam em ruptura com o poder e o anterior regime iraniano, não falaram (ainda?) sobre o desaparecimento do homem cujo “apelo à paz e à amizade perdurará na sétima arte”, como escreveu no Twitter o Presidente iraniano, Hassan Rohani. Falamos de Mohammad Rasoulof ou Jafar Panahi, cuja liberdade – absoluta, física ou artística – foi cerceada várias vezes nos últimos anos por se manifestarem em prol do movimento de oposição a Mahmoud Ahmadinejad ou "só" por estarem a filmar.
Contrabandearam filmes que fizeram sob prisão domiciliária (Panahi) ou exilaram-se para poder filmar (Rasoulof). Panahi, como muitos outros cineastas iranianos, começou a filmar inspirado por Kiarostami. A sua primeira curta de ficção, Doust, foi aliás um tributo ao autor de O Sabor da Cereja, e trabalhariam em conjunto em múltiplos formatos, ele como assistente de realização do mestre em Através das Oliveiras, ou o mestre a contar-lhe a história que se tornaria Sangue e Ouro (2003). Em 2010, Panahi e Rasoulof eram sentenciados a seis anos de prisão e Kiarostami foi um dos realizadores que pediram publicamente a sua libertação, juntamente com actrizes como a exilada Golshifteh Farahani. Ela que, segunda-feira, postulou no Twitter que o realizador de 76 anos “sozinho, mudou a imagem do Irão”.
Um dos pontos de cisão entre a carreira de Kiarostami e a sua vinculação ao Irão é a forma como se relacionava, através do cinema, com a mensagem e com a política. A franco-iraniana Marjane Satrapi lembra como o cineasta escolheu ficar no pós-revolução de 1979, e de como trabalhou sempre no país – “Criticaram-no por nunca ter sido mais político. Mas os seus filmes eram-no, porque falavam do feminismo, do suicídio”, elenca, corroborada por Ayat Najafi, realizador de No Land’s Song, que discorda das críticas de alguns intelectuais iranianos, e não só, ao que consideravam ser a falta de pujança política directa no cinema de Kiarostami; ou das críticas dos mais próximos do poder, que o acusavam de se distanciar da sua realidade para satisfazer os júris estrangeiros. “Não é possível ter tantas recompensas só porque os festivais têm objectivos puramente políticos”, atirou por seu turno Najafi, citado pelo Le Monde. “Abbas Kiarostami era um cineasta honesto e criativo”, defende sobre o homem que vivia em Teerão mas fez os seus últimos filmes em França e no Japão – opção que o crítico do PÚBLICO Augusto M. Seabra via em Janeiro como um "semi-exílio ou penumbra".
Kiarostami era “um vanguardista na abordagem humanista e moral”, disse Ali Janati, o ministro da Cultura, um dos muitos governantes que homenageou o realizador nas últimas 24 horas. Membro do regime actual (veio a Lisboa em 2014 com um dos melhores amigos de Panahi, Reza Mirkarimi), tem-se aproximado dos seus artistas num caminho tentativo de mudança, ainda que “envergonhada” – não é seguro o estatuto de alguns dos realizadores que os anteriores responsáveis de Teerão mandaram prender (e depois libertariam sob vários formatos de vigilância) há seis anos e que impediram de filmar, por exemplo. Como assinala o Le Monde no seu blogue dedicado ao Irão, as homenagens que o governo lhe está a prestar agora são particularmente significativas pelo facto de Kiarostami nunca ter pertencido aos círculos do poder.
O ministro da Cultura do Irão quer ver This Is Not a Film
“A sua perseverança e originalidade permitiram que nós, jovens cineastas iranianos, sejamos considerados e reconhecidos no mundo e que o cinema iraniano tenha um passaporte para existir no estrangeiro”, sustenta ainda Ayat Najafi. O também realizador Mohsen Makhmalbaf, autor de Kandahar e de certo modo protagonista de um dos filmes de Kiarostami, Close-Up, elogia ainda o papel que o realizador de E a Vida Continua teve para o mundo – do cinema para além de Hollywood. “Refrescou-o, humanizou-o."
Ramin Bahrani é uma de “milhares de sementes que Kiarostami plantou inadvertidamente pelo mundo": "Em tempos de escuridão, o cinema de Kiarostami iluminá-los e alimentá-los-á – e a todos nós – com a sua grande beleza, simplicidade, solidão, alegria, humor e magnificência da vida”, escreveu o realizador americano de origem iraniana, autor de Chop Shop, no IndieWire.
Também a partir dos EUA, cita o Le Monde, fala a sua discípula Anahita Ghazvinizadeh, outra premiada em Cannes como Kiarostami ou Panahi, sobre a coragem do realizador de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, que por seu turno a encorajou a lançar-se, "a não ter medo”. “Sem ele, nunca me teria tornado realizadora”, diz, evocando as palavras com que ele aconselhava os seus jovens admiradores – “Se têm ideias, não esperem mais e vão realizar. Se não o fizerem, nunca encontrarão o vosso próprio estilo."
Marjane Satrapi, nascida no Irão e autora da novela gráfica que se tornou num dos mais populares filmes que contam histórias iranianas, mostrou-se emocionada à agência AFP, recordando “um inventor” cujos filmes viu já na Europa e que lhe mostravam “os iranianos não como um povo de terroristas, mas como seres humanos": "Abriu caminho a toda uma geração de artistas iranianos”, afirma sem hesitar, na constatação de que “sem ele, nunca teria podido fazer Persépolis”. “Somos todos devedores de Abbas Kiarostami, o realizador que conjugava um certo realismo, falando muito do seu país e das crianças do seu país, sabendo ao mesmo tempo que o cinema é um espectáculo que pode manipular o real."