A misteriosa obra de Abbas Kiarostami
O cineasta iraniano foi um realizador de "enigmas", como o seu belíssimo filme final reiterou. Com o desaparecimento dele (e, antes dele, de Oliveira), há uma forma de "inesperado" que deixou de ser possível esperar.
Ainda não nos tínhamos refeito da notícia da morte de Michael Cimino quando, tão inesperadamente quanto essa, surge o anúncio do falecimento de Abbas Kiarostami. O último ano e meio tem sido um tempo mau para o cinema, uma hecatombe a levar os maiores como Manoel de Oliveira ou Jacques Rivette. Também por esta sucessão muitos se lembraram, a seguir à notícia da morte de Kiarostami, de um elogio de Godard proferido em vida do realizador iraniano: “O cinema começa com Griffith e acaba com Kiarostami." Não é fazer o jogo do apocalipse e das proclamações de morte a que o cinema é especialmente propenso (e porventura com cada vez mais razão), mas o desaparecimento de Kiarostami traz de facto um peso, “terminal”, dir-se-ia: eis que se perde um dos cineastas mais singulares e geniais das últimas décadas, ainda em plena actividade, e um dos muito poucos que, de facto (e é neste sentido que deve ler-se a frase de Godard), marcou qualquer coisa de novo e inimitável num período em que tudo parecia estar inventado e condenado à eterna variação. Dá vontade de lembrar o diálogo entre William Wyler e Billy Wilder no funeral de Ernst Lubitsch: “– Acabou-se o Lubitsch; – Pior, acabaram-se os filmes do Lubitsch”.
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Ainda não nos tínhamos refeito da notícia da morte de Michael Cimino quando, tão inesperadamente quanto essa, surge o anúncio do falecimento de Abbas Kiarostami. O último ano e meio tem sido um tempo mau para o cinema, uma hecatombe a levar os maiores como Manoel de Oliveira ou Jacques Rivette. Também por esta sucessão muitos se lembraram, a seguir à notícia da morte de Kiarostami, de um elogio de Godard proferido em vida do realizador iraniano: “O cinema começa com Griffith e acaba com Kiarostami." Não é fazer o jogo do apocalipse e das proclamações de morte a que o cinema é especialmente propenso (e porventura com cada vez mais razão), mas o desaparecimento de Kiarostami traz de facto um peso, “terminal”, dir-se-ia: eis que se perde um dos cineastas mais singulares e geniais das últimas décadas, ainda em plena actividade, e um dos muito poucos que, de facto (e é neste sentido que deve ler-se a frase de Godard), marcou qualquer coisa de novo e inimitável num período em que tudo parecia estar inventado e condenado à eterna variação. Dá vontade de lembrar o diálogo entre William Wyler e Billy Wilder no funeral de Ernst Lubitsch: “– Acabou-se o Lubitsch; – Pior, acabaram-se os filmes do Lubitsch”.
Acabarem-se os filmes de Kiarostami é terrivel quando, para mais, cada novo filme dele continuava a ser uma experiência surpreendente e imprevisível, até por nos últimos anos – sensivelmente a seguir ao endurecimento do regime iraniano com a ascensão de Ahmadinejad – o termos visto a confrontar-se com ambientes e universos que até então lhe foram estranhos: a Toscana em Cópia Certificada (2010), o Japão em Like Someone in Love (2012), que fica como belíssimo fecho de obra apesar do acolhimento crítico relativamente tépido que encontrou. Mas era, como bem lembrou o histórico crítico francês Pierre Rissient, um filme decidido pela mise en scène enquanto enigma ou enquanto método criador de enigmas – aquele final, abrupto e violento, depois de já se ter passado por uma vasta gama de tonalidades, só tem par nalgumas coisas de Manoel de Oliveira, outro realizador de “enigmas”, outro realizador capaz de gestos de rasgo inesperado e indecifrável, entre a energia (e uma certa insolência) do “primitivismo” e a máxima, e mais cerebral, sofisticação. Os dois desaparecidos no espaço de ano e meio, há uma forma de “inesperado” que deixou de ser possível esperar: não se vê mais ninguém a cultivá-la.
Aquando da sua revelação no Ocidente, a partir da projecção de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? no Festival de Locarno, em finais dos anos 80, impôs-se a ideia de uma filiação neo-realista, e Serge Daney chegou a escrever que Kiarostami “tinha descoberto o segredo de Rossellini”. O que não é, claro, mentira, e a pujança com que Kiarostami tratou a ruralidade iraniana, o amadorismo e a espontaneidade dos seus actores e intervenientes, a paisagem “real” e a sua assombração permanente, sobretudo nesse filme e no seu “espelho” de alguns anos mais tarde, E a Vida Continua (rodado na sequência do grande terramoto no Norte do Irão pouco tempo antes), reenviam por certo para a lição do melhor neo-realismo. Mas, tomada a obra no seu conjunto, reduzi-la à expressão de um cinema povero é redutor. Porque não dizer que Kiarostami também descobriu um pouco do segredo de Hitchcock? É que se tratava de um grande cineasta do medo e da angústia, da tensão criada a partir de pequenos nadas e quase minimalmente puxada a um extremo que podia dar uma longa-metragem inteira.
Nesse aspecto Kiarostami foi Kiarostami desde o início: o leitor curioso pode ir procurar (encontra facilmente no YouTube) a primeira curta-metragem de Kiarostami, realizada em 1970, O Pão e o Beco, onde tudo se resume à situação (quase “chaplinesca”, que também não é, já agora, uma referência vã) de um miúdo que precisa de atravessar uma rua mas tem medo do cão que está à porta de uma das casas. Uma situação anódina e corriqueira que se transforma num problema descomunal e num clima de medo e tensão. É outra das coisas que se podem dizer de Kiarostami, que foi um grande cineasta da infância, ele que começou precisamente por aí, por trabalhar com e para crianças no departamento de cinema (por ele criado) de um instituto educativo estatal. E a sua obra-prima, nesse capítulo, terá de ser Trabalhos de Casa, um filme de 1989 que basicamente consiste no interrogatório, pontuado pelo grande olho da câmara de filmar, de um grupo de crianças, sobre a sua relação com a escola, a disciplina, a intuição da lei e das regras e a inevitabilidade do castigo para as falhas e transgressões.
Labirintos
Kiarostami era também o homem das construções labirínticas, a serpentearem em torno do seu próprio mistério – aqueles planos das estradas ziguezagueantes por onde avança o jipe de O Sabor da Cereja (1997) podiam servir de emblema para essas construções narrativas. Ou o labirinto especular, a dinamitar fronteiras entre “verdadeiro” e “falso”, entre a “representação” e o “vivido”, que está no base do genial Close Up, o filme de 1990 onde se encontra – através da história de um impostor que se faz passar por Mohsen Makhmalbaf – Kiarostami a praticar o seu mais intrigante “meta-cinema” de sempre.
Mas há sempre um “buraco” nos filmes de Kiarostami, um bocado de informação que é elidida ao espectador; por exemplo, no Sabor da Cereja, a motivação do protagonista, o homem que conduz o seu automóvel pelas estradas de pó do interior do Irão, em longas conversas com as personagens a que vai dando boleia (o travelling de automóvel podia ter sido patenteado por Kiarostami, a tal ponto ele inventou ou re-inventou esse processo), para tudo desembocar na mais ambígua das cenas de suicídio, “desmontada” pela revelação da presença do “aparelho” cinematográfico e da equipa de rodagem (numa “denúncia” do cinema que Kiarostami praticou mais vezes, sempre a adensar a confusão entre verdade e falsidade, entre, para usar convenções genéricas, “ficção” e “documentário”). A relação com a ruralidade iraniana teria ainda um outro momento na sequência de O Sabor da Cereja, O Vento Levar-nos-á (1999), outro filme construído sobre uma expectativa que tarda em concretizar-se (a morte iminente de uma velha senhora numa aldeia perdida nos montes), e que Kiarostami preenche com uma tensão e um nervosismo nascidos de pequenos detalhes (as corridas do protagonista para o topo da colina, onde consegue ter rede no telemóvel).
Depois desse filme Kiarostami tornou-se mais declaradamente “conceptual”, aproximando-se algumas vezes de procedimentos próximos da vídeo-arte e do formato da “instalação”, como é o caso de Five Dedicated to Ozu, cinco assombrosos, longos, e fixos planos construídos com pouco mas intensificados até à completa transfiguração. Mas é numa sala de cinema, e como “um filme”, que fazem pleno sentido Dez, outro filme de automóveis, um táxi conduzido por uma mulher cujas conversas com os passageiros vão dando um desenho, sempre difuso e elíptico e ao mesmo tempo claro, da vida em Teerão; ou Shirin, essa longa colecção de rostos de mulheres (cento e tal actrizes iranianas mais Juliette Binoche) filmados enquanto assistem, numa sala de cinema, à projecção de um filme que o espectador não vê e apenas ouve (e que é a encenação de uma velha lenda persa).
Shirin, nos seus pressupostos, parece ter sido a derradeira confrontação de Kiarostami com o Irão ancestral, ou a derradeira vez que encenou a confrontação do moderno (corporizado, talvez, pelo cinema) com os mais profundos atavismos do seu país, outro aspecto que cruza boa parte do seu cinema. Depois disso, filmou no estrangeiro. Mas o mistério permanece. Esta obra é um mistério, vão ser precisos muitos anos e muitas revisões para podermos pensar que a decifrámos.