Bagdad: “À noite a rua estava cheia de vida, agora só há cheiro a morte”

Morreram pelo menos 165 pessoas e centenas ficaram feridas num atentado que coincidiu com a altura em que as famílias quebram o jejum do Ramadão. Muitas vítimas são crianças.

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É Verão e as noites são mesmo a melhor parte do dia. Podendo, em Bagdad, é à rua da Karrada que se vai parar. Ali se come, ali se anda às compras, por ali se passeia simplesmente para se estar com os outros. O Ramadão dura um mês e assim que a noite cai celebra-se o começo do dia. A festa que assinala o fim do mês sagrado do jejum está à porta e é preciso juntar prendas para trocar entre amigos e em família.

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É Verão e as noites são mesmo a melhor parte do dia. Podendo, em Bagdad, é à rua da Karrada que se vai parar. Ali se come, ali se anda às compras, por ali se passeia simplesmente para se estar com os outros. O Ramadão dura um mês e assim que a noite cai celebra-se o começo do dia. A festa que assinala o fim do mês sagrado do jejum está à porta e é preciso juntar prendas para trocar entre amigos e em família.

Já passava da meia-noite (menos três horas em Portugal continental) e a rua do centro da capital do Iraque estava à pinha. Alguns tinham-se deixado ficar nos cafés a ver os quartos-de-final do Euro 2016, outros estavam na fila da Yabar Abu al-Sharba, a mais antiga e popular geladaria da cidade. Por todo lado havia crianças. Pretextos para festejar não faltam. Este ano, antes do fim do Ramadão chegou o fim do ano lectivo. A carrinha armadilhada explodiu mesmo à porta da geladaria. Morreram pelo menos 165 pessoas, de acordo com um dos balanços oficiais publicados na manhã desta segunda-feira. Outros referiam mais de 200 vítimas. Há centenas de feridos. 

Quando o sol queimava, domingo ao fim da manhã, 12 horas depois do atentado, ainda os bombeiros tentavam apagar as chamas das dezenas de incêndios iniciados pela explosão. Prédios, lojas e cafés. Famílias inteiras que se evaporaram.

Hussein Ali tem 24 anos e já foi à guerra. Depois deste sábado à noite, está decidido a voltar. Hussein foi ajudar nas operações de resgate e contou ao jornalista da AFP que viu os corpos carbonizados de seis empregados de uma loja, todos da mesma família, a serem retirados do interior de um edifício. “Vou regressar ao campo de batalha”, diz o ex-soldado. “Pelo menos lá conheço o inimigo e posso combatê-lo. Aqui, não sei contra quem lutar”.

“No decorrer das operações de segurança permanentes dos soldados do califado da cidade de Bagdad, o irmão mujahedin [combatente] Abu Maha al-Iraqi conseguiu fazer explodir o seu carro-bomba junto a uma concentração de hereges [muçulmanos de confissão xiita, a maioria da população iraquiana]”, lê-se no comunicado divulgado online pelos jihadistas do autoproclamado Estado Islâmico.

Percebe-se que os criminosos prefiram reivindicar a morte de xiitas, a mesma confissão dos políticos no poder em Bagdad, apoiados pelos Estados Unidos, acusados por muitos iraquianos de perseguir e discriminar a população árabe sunita. Mas a Karrada é de todos, quem é que não sai para comer ou fazer compras? Apesar do balanço ser ainda provisório, e do terror continuar a fazer parte do quotidiano dos sete milhões de iraquianos de todos os grupos étnicos e religiosos que vivem na capital, o atentado de sábado à noite é o maior desde o início do ano.

Para a principal autoridade do islão sunita do Iraque, o ataque foi “um crime sangrento, independentemente de quem o realizou e das suas motivações”.

“A noite passada a rua estava cheia de vida”, disse ao jornal The Washington Post um habitante da Karrada. “Agora, só há cheiro a morte”.

Tudo, o tempo todo

Imran Khan, repórter da televisão pan-árabe Al-Jazira, lembrava este domingo uma conversa que teve há alguns meses com os comerciantes da Karrada que se preparavam para formar um grupo de vigilância, zangados com o Governo do primeiro-ministro Haidar al-Abadi, por este não ser capaz de garantir a segurança. A frustração não os impedia de perceber que não é possível vigiar tudo e todos, o tempo todo, numa zona assim, cheia de lojas e de vida.

O primeiro-ministro não deixou de visitar o lugar do ataque. A Karrada fica logo depois da rotunda onde até 9 de Abril de 2003 estava a estátua de Saddam Hussein que um iraquiano ajudado por Marines derrubou, enquanto centenas de jornalistas fotografavam e filmavam. Está a menos de 5 minutos de carro da fortificada Zona Verde, onde os políticos vivem e trabalham. Cá fora é a realidade que eles poucas vezes vêem.

Compreende-se que os iraquianos de Bagdad tenham recebido Abadi zangados. Um vídeo publicado online e divulgado por diferentes canais de televisão internacionais mostra vários homens a lançarem pedras contra os carros em que seguiam o primeiro-ministro e os seus assessores. Antes, Abadi já tinha sido brindado com gritos de “ladrão” e “cão”.  

“Os terroristas, depois de terem sido esmagados nos campos de batalha, atacam com explosivos, numa tentativa desesperada” de fazerem prova de vida, ainda disse Abadi na curta passagem pela Karrada. Serão “punidos”, prometeu.

A guerra no meio da cidade                    

Passou uma semana desde que o Governo de Abadi declarou que os combatentes radicais foram expulsos de Falluja, cidade a oeste da capital, na estrada que sai de Bagdad em direcção à fronteira síria. “Eles estão desesperados para aumentar o moral dos seus voluntários e impedir que estes continuem a deixar o grupo. Todos os dias há combatentes a desertar. Penso que ataques como este vão acontecer cada vez mais”, antecipou à Al-Jazira Mowaffak Baqer al-Rubaie, antigo conselheiro governamental e ex-presidente do Parlamento. Em resposta à perda de território, diz, resta aos jihadistas “recorrer cada vez a actos de terrorismo clássicos, tradicionais”.

Bagdad já foi um campo de batalha, no anos do pico da violência sectária, quando todos os dias morriam 100 ou 150 pessoas na cidade e não havia espaço para os corpos nas morgues nem sobrava gente para tratar dos funerais.

À medida que as forças e as milícias leais ao Governo somam vitórias contra os soldados da jihad, apoiadas pelos ataques aéreos dos Estados Unidos, mais o conflito regressa à sua forma inicial, a insurreição urbana. “Estamos em contacto próximo com as autoridades iraquianos e continuamos comprometidos no apoio às forças de segurança do Iraque”, fez saber o Departamento de Estado norte-americano, num comunicado lido pelo porta-voz John Kirby. Não há bombardeamentos nem apoio aéreo que cheguem para derrotar uma guerra de guerrilha.