O lobo mau chama-se “sanção”
Com a união do país contra o mundo, é mais fácil manter um Bloco descafeinado e um PCP sereno e mais improvável que se discutam as causas dessa eventual perda de competitividade.
A ameaça de sanções por incumprimento do défice é como a história do lobo mau. Qualquer criança bem-educada sabe que os lobos existem e que castigam quem sai do bom caminho ou dá ouvidos aos estranhos. Mas, sabe também que, no final, lá há-de vir um caçador, seja Jean-Claude Juncker, François Hollande ou Angela Merkel, salvar os distraídos ou os relapsos do défice e dar um final feliz à história. Talvez por reconhecerem que assim é, os nossos vizinhos espanhóis ouvem as ameaças de sanções que a cada passo chegam de Bruxelas, assobiam para o lado e dedicam-se a questões com verdadeira aderência à realidade. Nós, pelo contrário, transformámo-las numa batalha pela dignidade da Pátria com muito sabor a propaganda e algumas pinceladas de ridículo.
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A ameaça de sanções por incumprimento do défice é como a história do lobo mau. Qualquer criança bem-educada sabe que os lobos existem e que castigam quem sai do bom caminho ou dá ouvidos aos estranhos. Mas, sabe também que, no final, lá há-de vir um caçador, seja Jean-Claude Juncker, François Hollande ou Angela Merkel, salvar os distraídos ou os relapsos do défice e dar um final feliz à história. Talvez por reconhecerem que assim é, os nossos vizinhos espanhóis ouvem as ameaças de sanções que a cada passo chegam de Bruxelas, assobiam para o lado e dedicam-se a questões com verdadeira aderência à realidade. Nós, pelo contrário, transformámo-las numa batalha pela dignidade da Pátria com muito sabor a propaganda e algumas pinceladas de ridículo.
Tudo indica que a opereta das sanções esteja para acabar (talvez no Conselho Europeu de dia 6) e as movimentações dos actores políticos, do Presidente-Rei ao primeiro-ministro, passando pelos seus aliados no Parlamento ou pela oposição, orientam-se no sentido poderem beneficiar com o final feliz que se adivinha. Quando, como se espera, se deseja e se antevê, a Comissão Europeia afastar o cenário das sanções, o Governo lá estará na linha da frente a reivindicar o cumprimento da promessa de uma nova era na política europeia; o Presidente fará mais uma festa e reclamará o seu quinhão de sucesso pela promoção de mais uma frente de unidade da Pátria; o Bloco recordará nas entrelinhas que, afinal, as ameaças de referendo à Europa ou ao Tratado orçamental são armas de arremesso político eficazes; o PCP celebrará mais uma derrota das pulsões capitalistas, dos monopólios e das multinacionais e até Passos Coelho se poderá chegar à frente para mostrar que a bandeirinha na lapela significa, também, um forte apego às causas nacionais.
Vivemos uma encenação, um faz-de-conta muito europeu. Alguém viola as regras (Portugal, a França ou, com muito maior intensidade e dolo, a Espanha), Bruxelas faz de conta que vai ser severa, os holandeses, finlandeses ou letões do Conselho ou da Comissão fazem de conta que desta vez vão bater nos poltrões do sul e a classe política portuguesa faz de conta que está a ser vítima de bullying. Depois da história de uma década e meia do euro com tantos défices excessivos, alguém acredita que é agora, no meio da tempestade do “Brexit”, que a Comissão terá condições políticas para penalizar a Espanha e Portugal? Alguém pensa que seria possível deixar de lado a França por ser a França, como disse Juncker numa esplendorosa confissão de que está ao serviço dos fortes da Europa? Alguém acredita que a Espanha, que em 2015 registou um défice de 5.1% do PIB, vai ser molestada com um puxão de orelhas no exacto momento em que luta em desespero por encontrar uma solução política que lhe garanta, ao menos, um Governo?
Bem sabemos que há bruxas, bruxedos e outras maldições. E sabemos ainda melhor que, por culpa dos bancos falidos pela incompetência e pela gula do complexo político-empresarial, da China de Angola ou de qualquer outro expediente, continuamos a não ser capazes de cumprir os pactos a que nos obrigámos com a Europa. Mas o que deveria gerar um excelente debate interno, despido da irritante, pobre e enganadora dicotomia entre austeridade/não austeridade, serviu apenas para definir um inimigo externo que tudo esconde, tudo ilude e tudo desculpabiliza. O Governo falha na capacidade de colocar a economia no centro do debate, falha na capacidade de atrair investimento e restaurar confiança, falha com estrépito na procura de uma solução para a Caixa, falha na capacidade de acalmar os credores mas tudo isso se subalterniza perante a ameaça das sanções. O que se discute não são os nossos limites, mas o alegado conluio de uma Europa persecutória que protege os fortes e desanca os fracos.
Neste programa pobre e fútil, só faltava Wolfgang Schauble juntar-se à festa com a sua habitual imprevidência e idiotia para dar mais uma bandeira aos Calimeros que se juntaram nos fóruns e nas redes sociais a pedir punição aos que pedem punição ou juízo a Portugal. É uma injustiça. Mas se é legítimo e razoável que os portugueses se revoltem com as palavras incendiárias do ministro alemão, faz menos sentido resumir tudo o que ele disse à imprevidência ou aos maus-fígados. É inegável que nas últimas semanas Portugal regressou ao radar das suspeições sobre a sua capacidade e, pior, o seu empenho em combater as causas da sua persistente incapacidade em cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
O melhor será entender por que razão há tanta gente a olhar para o céu de Portugal e a prever uma tempestade. Sim, porquê? Seria tão fácil como errado dizer que a culpa é do Governo ou que toda a culpa é do Governo – ou da política. A execução orçamental não corre mal, pelo menos nominalmente. O Governo, afinal, governa. O presidente reina. O desemprego estabilizou. E, entre o futebol e a expectativa de férias, o país anda contente. Mas para lá da união nacional contra as sanções ou contra os dislates do senhor Schauble, é bom que não esqueçamos que o investimento parou, a confiança encolheu, a banca implode, a economia arrefece, as exportações caem e o monstro do défice externo, essa doença incurável do Portugal democrático, está à espreita na esquina mais próxima.
As sanções são um engodo fácil para nos aliarmos ao Governo e esquecermos que, como lembrou o director do Mecanismo Europeu de Estabilidade, o alemão Klaus Regling, o país não consegue ser capaz de competir, de desenvolver uma economia que gere emprego e receitas fiscais para resolver os seus problemas. Com a união do país contra o mundo, é mais fácil manter um Bloco descafeinado e um PCP sereno e mais improvável que se discutam as causas dessa eventual perda de competitividade – Regling fala uma vez mais do aumento do salário mínimo, o que é um disparate, mas também das 35 horas na função pública, o que é um erro deste Governo nas presentes circunstâncias.
Com ou sem o folclore das sanções, o medo de que seja necessário fazer mais, quer dizer, cortar mais, ganhou outros contornos, mais nítidos. Ele anda a pairar por aí há meses e a verdade é que o Governo sempre conseguiu afastá-lo com as suas políticas do possível, no caminho estreito que os parceiros da extrema-esquerda lhe impõem. Mas, como parece ser difícil fazer mais, Portugal está de novo no olho do furacão. Ou acontece um milagre, um golpe de génio ou uma mudança radical na Europa, ou dentro de meses corremos o risco de olhar para o que hoje se passa com uma inevitável sensação de tempo perdido. Arriscamo-nos a constatar aí que a historieta das sanções não passou de um logro que nos desviou a atenção do que realmente importa.