Foi frenético o adeus dos Buraka, agora fica o legado
O último concerto dos Buraka Som Sistema aconteceu em clima de celebração, noite de sexta, na Torre de Belém em Lisboa. Foi o fim do fenómeno mais surpreendente da música portuguesa da última década e o início do Globaile, o novo festival de Lisboa, que aconteceu no encerramento das festas da cidade
Foi mais um concerto dos Buraka Som Sistema. Como tantos outros ao longo de dez anos, celebrativo, físico e frenético, com milhares de pessoas dançando ou coreografando de mãos no ar, enquanto no palco os membros do grupo expunham uma música e atitude hedonista, miscigenada, saudavelmente maliciosa.
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Foi mais um concerto dos Buraka Som Sistema. Como tantos outros ao longo de dez anos, celebrativo, físico e frenético, com milhares de pessoas dançando ou coreografando de mãos no ar, enquanto no palco os membros do grupo expunham uma música e atitude hedonista, miscigenada, saudavelmente maliciosa.
É isso. Quando se acorre a um concerto dos Buraka sabe-se ao que se vai. Não há enganos. E a noite de sexta, nesse sentido, foi como tantas outras: suada e festiva. E no entanto, não poderia ser mais um concerto, porque era o último antes de uma paragem por tempo indeterminado que poderá significar o fim definitivo – e é nisso que o grupo aposta nesta altura – ou não. O futuro o dirá.
Havia, pois, uma componente emocional a rodear a ocasião. E também um factor simbólico: na última década os Buraka representaram o irromper de uma nova geração que foi capaz de criar novos imaginários e experiências no contexto do Portugal pós-colonial ao mesmo tempo que levaram o nome do país, e em particular de Lisboa, ao mundo. Na noite de sexta-feira, Lisboa, a Grande Lisboa, da Amadora ao Chiado, do Barreiro a Campo de Ourique, da Buraca à Lapa, agradeceu-lhes a inspiração.
Em palco, a eficácia de sempre. João Barbosa (Branko) lança o ritmo desvairado nas programações e teclados, Rui Pité (DJ Riot) agarra-o na bateria e Kalaf Epalanga, Andro Carvalho (Conductor) e Blaya tratam de o devolver ao público em forma de incitações e provocações, numa atitude performativa onde som, palavras e corpos se unem perante milhares de pessoas esfusiantes, numa toada inquieta, sincretismo dançante de géneros nem sempre estabilizados na memória colectiva como o kuduro, tarraxo, semba, baile funk, dubstep, house e outras nomenclaturas que resultaram numa onda catártica que varreu os jardins da Torre de Belém.
Às tantas Kalaf perguntou onde estava na multidão Angola, Cabo Verde, Moçambique, Brasil ou São Tomé, da mesma forma que antes haviam interrogado quem estava ali da Linha de Sintra, da Amadora ou da baixa de Lisboa. E a todas as solicitações existiram respostas. E é isso. Sem romantizar demasiado, os Buraka, sem quererem ser emblema identitário de nada, tiveram esse efeito de congregar pessoas das mais diversas origens, cores e experiências à sua volta, como raramente se vislumbra em Portugal, dessa forma impulsionando também processos de metamorfose social.
De resto repetiram quadros há muito ensaiados. Levaram o público ao chão para este se erguer de seguida, em delírio, como se quisesse alcançar o céu. Convidaram dezenas de raparigas a invadir o palco. Colocaram homens com raparigas às cavalitas. Fizeram o público tirar as t-shirts para serem esvoaçadas no ar. E fizeram entrar em palco uma série de bailarinos de kuduro.
E a todas as solicitações o público correspondeu, enquanto se ouviam temas como Hangover (BaBaBa), Get stoopid, We stay all night, Sound of kuduro, Wawaba, Vuvuzela, Luanda-Lisboa, Aqui pra vocês, General ou Kalemba (wegue wegue), com a voz e presença de Pongo Love, em cerca de duas horas de concerto.
Antes de tocarem no encore o tema Eskeleto, Kalaf anunciou que o festival Globaile iria ter uma periodicidade anual e antes de se lançarem a Yah!, o seu primeiro single, evocaram o pequeno clube Mercado onde tudo começou. Na altura faziam sessões para 100 pessoas. Ali estariam cerca de 15 mil. E mais do que isso, em dez anos, conseguiram expor um ângulo artístico singular, ao mesmo tempo que personificaram muitas das transformações do Portugal contemporâneo, derrubando barreiras anímicas – conseguindo que a sua música se posicionasse no espaço global – sociais e raciais, através do calor, do suor e da libertinagem da sua música.
Antes deles já haviam actuado os peruanos Dengue Dengue Dengue, os sul-africanos Batuk, o brasileiro MC Bin Laden ou os portugueses Kking Kong e Dotorado Pro. Todos estes nomes estão em actividade porque há dez anos foi iniciado um processo de validação de músicas proscritas pelo preconceito em diferentes urbes do mundo. O sucesso dos Buraka, ao lado de outros agentes globais, como M.I.A. ou Diplo, permitiram resgatar essas sonoridades dos limbos sociais onde se encontravam. Nos próximos anos, o festival Globaile, vai tentar reflectir essa realidade.
Mas como é evidente ontem ninguém deu muita atenção a esse facto. O grande acontecimento era o adeus dos Buraka. No final, eles fizeram questão de agradecer a Lisboa pelos intensos dez anos de vida. Obrigado, nós.