CP vende comboios velhos para sucata mas exige sigilo ao comprador
Cláusula do caderno de encargos não salvaguarda direito à informação e põe em causa o princípio da transparência do Código do Procedimento Administrativo, dizem juristas.
A CP tem à venda um lote de 91 veículos ferroviários, composto por carruagens e vagões destinados a sucata, cujo caderno de encargos inclui uma cláusula de “sigilo e publicidade” que especialistas em Direito Administrativo consultados pelo PÚBLICO consideram que viola o Código de Procedimento Administrativo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A CP tem à venda um lote de 91 veículos ferroviários, composto por carruagens e vagões destinados a sucata, cujo caderno de encargos inclui uma cláusula de “sigilo e publicidade” que especialistas em Direito Administrativo consultados pelo PÚBLICO consideram que viola o Código de Procedimento Administrativo.
O artigo 6º do caderno de encargos diz que “o adjudicatário e os seus colaboradores estão obrigados a guardar sigilo relativamente a toda a documentação e informações a que tenham acesso nos termos do presente procedimento e do contrato, não podendo facultar a terceiros quaisquer informações, nem sobre a natureza dos próprios trabalhos, nem sobre o resultado de serviços, nem utilizá-los em seu benefício sem autorização expressa, por escrito, da CP”. Um segundo ponto diz que estas obrigações manter-se-ão mesmo após o termo do contrato.
Porém, o Código dos Contratos Públicos - a que a CP enquanto empresa pública está obrigada - refere que à contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência.
Licínio Martins, especialista em Direito Administrativo e professor na Universidade de Coimbra, diz que “a imposição de confidencialidade parece revelar-se excessiva”, sobretudo porque até se prolonga para lá do termo do contrato.
O jurista diz que seria compreensível que a obrigação de confidencialidade fosse imposta ao adjudicatário se limitada a documentos e informações que a CP reputasse como confidenciais e que envolvessem segurança ou segredos comerciais, o que não parece ser o caso de uma venda de sucata. “Estando em causa um assunto público, por a CP ser uma entidade pública empresarial, tem de ser salvaguardado o direito à informação e o acesso a essa informação por quem tenha interesse legítimo”, diz. Aliás, as próprias regras europeias só legitimam a imposição do dever de confidencialidade aos adjudicatários quando esse dever tenha apenas por objecto informação de natureza confidencial.
No mesmo sentido se pronuncia o jurista Paulo Amorim, igualmente contactado pelo PÚBLICO, que diz que “esta exigência [de confidencialidade] não faz muito sentido” e põe em causa o princípio da transparência do Código do Procedimento Administrativo. “Daqui se infere que há uma obrigação de sigilo sem fundamentação de objectivos”, diz.
Recordando que a CP é uma pessoa colectiva pública, este professor da Faculdade de Direito do Porto diz que esta não pode actuar como uma qualquer empresa privada.
Contactada pelo PÚBLICO, a CP diz que a referida cláusula “é conforme com o regime legal aplicável” e que as relações contratuais deste concurso não têm “qualquer relação com deveres de transparência a que a empresa está obrigada a prestar às devidas entidades”. Isto porque se trata de uma relação contratual “entre adjudicante e adjudicatário, especificamente ao dever de sigilo relativamente a documentação e informações que o adjudicatário tenha acesso na execução dos serviços”.
Depois dos processos Carril Dourado e Face Oculta, relacionados com corrupção no sector das sucatas, a Refer (agora Infraestruturas de Portugal) e a CP passaram a ter processos internos mais escrutinados nos negócios que envolvem estes materiais. Mas noutro abate de 15 automotoras UTD, a CP não divulgou o valor de venda, apesar de uma deliberação da CADA (Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos) entender que essa informação deveria ser pública.
No entanto, no concurso em causa a empresa já divulgou as cinco propostas que obteve para a compra dos 91 veículos ferroviários. A mais alta é da Transucatas – Soluções Ambientais, no valor de 950 mil euros. Seguem-se a Ambigroup – Reciclagem (645 mil euros), Reciclagem de Sucatas Abrantina (639 mil euros), Batistas – Reciclagem de Sucatas (609 mil euros) e Centro de Reciclagem de Palmela (501 mil euros).
Os procedimentos concursais não estão ainda finalizados pelo que, de acordo com fonte oficial da CP, “não é ainda possível definir uma data para assinatura do contrato”.