Educação, Constituição e democracia
Sem uma escola pública forte, provida de recursos materiais e organizacionais relevantes, a democracia, em tão mau estado na Europa e no mundo, não sobreviverá.
A Constituição (CRP) é clara: “Artigo 75.º - Ensino público, particular e cooperativo - 1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. 2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei”.
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A Constituição (CRP) é clara: “Artigo 75.º - Ensino público, particular e cooperativo - 1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. 2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei”.
Em primeiro lugar reconhece-se que é obrigação do Estado a criação de “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino” e não de uma “rede pública de educação”. O sentido estrito da norma é a de que o Estado proverá à sociedade “estabelecimentos públicos” de educação e não simples “serviços públicos”, que poderiam ser prestados pelo Estado ou por privados. Se a norma em questão tem alguma intencionalidade, é a de que a educação pública em Portugal é um bem a prover directamente pelo Estado e só supletivamente pelos privados.
Em segundo lugar, ao reconhecer, e fiscalizar, o ensino particular e cooperativo, a Constituição distingue com clareza os âmbitos do ensino em Portugal, estabelecendo uma hierarquia de tutela constitucional relativamente ao ensino: pelo n.º 1 o Estado cria uma rede de escolas públicas para toda a população; pelo n.º 2 o Estado reconhece a liberdade de criação de escolas privadas. Mas a hierarquia constitucional das normas vai claramente a favor da primeira delas. A ideia segundo a qual a contratualização do Estado com privados poderia preencher a sua obrigação de criação de “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino” tornaria inútil a primeira norma, o que constituiria um verdadeiro salto quântico interpretativo/constitucional.
Bem entendido, pode discordar-se destas normas. O PSD discorda delas. Por isso é que, em 2010, apresentou um projeto de revisão constitucional em que, na sua página 6, se propunha alterar o actual artigo 75 da CRP, eliminando o seu número 2 e reescrevendo o seu número 1, justamente aqueles artigos que agora estão em causa. A proposta de reescrita do número 1 era a seguinte: “Artigo 75.º (Ensino público, particular e cooperativo) 1. O Estado assegura a cobertura das necessidades de ensino de toda a população, através da existência de uma rede de estabelecimentos públicos, particulares e cooperativos, promovendo a efectiva liberdade de escolha.” A distinção entre esta e a actual redacção constitucional é clara. Na actual redacção incube ao Estado prover “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”, enquanto na redacção proposta pelo PSD incumbiria não só ao Estado mas também ao sector privado e cooperativo prover essa rede, competindo pelos seus alunos, como se clientes fossem. Fracassada a proposta de alteração da Constituição por via do Parlamento, a direita portuguesa recorre à tentativa da sua alteração fáctica. Pelo seu lado, o Governo da República, fazendo o que lhe compete num Estado de Direito, mandou repor a Lei e a Constituição. Que isso perturbe tão violentamente o universo das escolas privadas, e outros universos adjacentes, diz tudo sobre o que lá se passa.
Mas a questão da consideração dos alunos como clientes introduz a dimensão ideológica do debate sobre os contratos de Associação, que, sendo primeiramente jurídico, não é só jurídico. A questão ideológica é a de saber se ao Estado deve competir a obrigação constitucional de prover directamente o ensino/educação à população em geral ou se esse provimento deve ser deixado à livre competição do mercado, como o defendem os liberais radicais, limitando-se o Estado à regulação ou, num novo salto quântico neoliberal, pagando aos privados o “serviço público” de que o Estado se desoneraria.
A educação é um bem público essencial que concorre para e alicerça estruturalmente o regime democrático-liberal que nos rege e, por isso, não pode ser deixado exclusivamente à livre concorrência do mercado. E isto é assim por várias razões.
A primeira é que a educação não é um bem que se deva submeter às regras do mercado porque essas regras orientam-se pela maximização do lucro e a educação deve orientar-se pela maximização da liberdade pessoal e da igualdade social. A questão essencial é que, na educação, o que se joga é a própria identidade das pessoas e a própria democracia e que isso não pode ser deixado ao jogo do livre comércio.
A segunda é que só a educação pública garante a liberdade de ensinar e educar, ao garantir a autonomia profissional dos professores. Nos termos da Lei de Bases do Sistema Educativo os professores têm “direito à autonomia técnica e científica e à liberdade de escolha dos métodos de ensino, das tecnologias e técnicas de educação e dos tipos de meios auxiliares de ensino mais adequados…”. Percebe-se que assim seja. Sendo o ensino/educação estruturalmente contingentes, com técnicas e fins instáveis (porque democráticos e evolutivos), por lidar com situações concretas sempre imprevisíveis, sem autonomia técnica e científica não poderiam os professores responder às necessidades de cada aluno, de cada situação pedagógica concreta. Só a educação pública, gerida democraticamente, pode garantir a autonomia técnica e científica dos professores, evitando que esses saberes sejam postos à disposição de um patrão, de um despedimento, de uma coacção, contra os interesses dos alunos, pelos quais, no contexto educativo, os professores são os primeiros responsáveis. Bem entendido, os professores têm que responder “pelo currículo nacional, pelos programas e pelas orientações programáticas curriculares ou pedagógicas em vigor”, mas através de um processo livre de mediação científica e pedagógica. Acontece que essa mediação livre e democrática só é possível na escola pública, não podendo ser garantida no ensino particular, onde as lógicas tribais, etnográficas e patronais sempre sobredeterminarão a mediação pedagógica e científica do professor.
3. A escola é um contexto emocional e cognitivo, uma experiência de relação com o mundo. É nessa experiência mais precoce que as crianças/jovens contactam com as práticas e as emoções democráticas, aprendendo-as. O apego à democracia antes de ser uma aquisição cognitiva é uma aquisição experiencial, um treino e um hábito. Assim sendo, a aprendizagem da democracia é importante de mais para ser deixada ao livre arbítrio de chefes de empresa buscando o lucro e só pode ser promovida em contextos democráticos, em ethos de participação cívica livre, que impliquem, inclusive, a possibilidade de desobedecer.
4. A escola pública ensina para o universal, recusa o tribalismo e tem como primeiro objectivo a livre edificação individual das crianças/jovens, no respeito pelas suas diferenças e origens pessoais, orientando-se pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Pelo contrário, a escola privada educa à medida da família originária, visa a reprodução social e tem o efeito, mais ou menos efectivo, de contribuir para a desagregação social.
Em suma, sem uma escola pública forte, provida de recursos materiais e organizacionais relevantes, no respeito pela autonomia das escolas e dos professores, a democracia, em tão mau estado na Europa e no mundo (o inverno pode estar mesmo a chegar!), não sobreviverá. Ou talvez sobreviva até amanhã ou depois. Mas mais do que isso é duvidoso.
Professor do Ensino Secundário