O caso da menina “demente” que chegou ao Conselho Nacional de Ética

O seu nome não é conhecido, mas a sua história foi-nos contada por um médico: “Dirigia-se a qualquer homem na rua.”

Foto

Tinha 16 anos e sofria “de atraso mental profundo”. Eram nove irmãos numa casa, o pai tinha morrido havia pouco, “uma família desestruturada”, com “grandes carências”, recorda Rui Carrapato, pediatra e presidente da comissão de ética para a saúde do Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira. Era também uma criança totalmente dependente de terceiros, continua, com “poucos hábitos de higiene” e que só falava “uma ou outra palavra solta”.

A mãe queria que a jovem se submetesse a uma laqueação de trompas. E os médicos acharam que sim, que se devia avançar, mas depois de muito analisarem as leis concluíram que estas não os autorizavam, por si só, a agir.

Estávamos em 2000. O dilema chegaria ao Conselho Nacional de Ética e Ciências da Vida (CNECV), um órgão consultivo independente que funciona junto da Assembleia da República. E até hoje o parecer emitido pelo CNECV, em 2001, sobre a menina de 16 anos, continua a ser citado quando se fala de esterilização de pessoas com deficiência. Mais nenhum caso chegou aos conselheiros desde então.

O CNECV não chegou a fazer um documento orientador, de “uniformização” dos critérios ao nível das unidades de saúde que lidassem com casos parecidos, como lhe foi pedido pela então ministra da Saúde Manuela Arcanjo. Isto porque, informou há dias, em resposta ao PÚBLICO, essa tarefa estava “fora das competências da entidade”.

Rui Carrapato, director do Serviço de Pediatria não apanhou o processo da menor de 16 anos no início. Mas o seu antecessor, presidente da comissão de ética do Hospital de São Sebastião, reformou-se entretanto, explica. Hoje é ele quem está no cargo. E diz conhecer bem os contornos do processo. A menina “tinha uma oligofrenia, um défice mental profundo, que era irreversível, apresentava um desenvolvimento sexual normal, com ciclos reprodutivos, e tinha um comportamento sexual desinibido”, recorda o pediatra. “Dirigia-se a qualquer homem na rua e em casa... por imaturidade funcional.”

Um dia, a mãe, “com uma preocupação legítima, foi ao serviço de obstetrícia e pôs a questão e solicitou que se fizesse uma laqueação de trombas”. Os médicos de obstetrícia enviaram o caso para a comissão de ética do hospital. “Achou-se que a laqueação devia ser o último recurso”, sublinha o médico. E claro que havia outras hipóteses, que não são a laqueação, admite, “como há sempre”. Mas “qualquer um dos outros métodos é falível a curto ou médio prazo”.

“Situação-limite”

Analisado o processo, a comissão de ética do hospital aceitou que podia ser feita a laqueação de trompas da criança. Mas havia “uma lacuna tremenda nesta área”, do ponto de vista legal, continua Rui Carrapato. Pelo que se entendeu que o caso da menor deveria ser apreciado por um tribunal. Escreveu na altura a comissão de ética para a saúde do hospital: “É a este [ao tribunal] que cabe, em última instância, a função jurisdicional de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, no caso de uma menor demente, acautelando-se ainda a validade da vontade da mãe em submeter esta a uma esterilização, assegurando-se ainda a legitimidade do respectivo acto médico.”

A comissão de ética entendia assim que a administração do seu hospital deveria enviar ao Ministério Público, no tribunal da comarca da residência da menor em causa, “os relatórios médicos e psicológicos”, com vista “a obter-se uma decisão judicial favorável a essa intervenção cirúrgica”; e deveria também suscitar “esta mesma questão junto do Ministério da Saúde com vista a obter-se, no futuro, uma uniformização de critérios ao nível dos serviços de saúde”.

A então ministra da Saúde fez chegar este pedido ao CNECV. O assunto arrastou-se. Em Abril de 2001 — mais de um ano depois de o caso ter sido suscitado no hospital —, o CNECV fez saber que concordava totalmente com as premissas da comissão de ética do Hospital de Santa Maria da Feira.

“Dada a delicadeza da questão — verdadeira situação-limite a exigir medida excepcional de última escolha —, o relatório médico deve ser subscrito por não menos de dois médicos de cada uma das seguintes especialidades: psiquiatria, neurologia, ginecologia e pediatria”, lê-se no relatório que esteve na base desse parecer do CNECV.

Sublinhava-se que era “aconselhável a elaboração de um relatório de assistente social sobre as condições de vida da menor (económicas, familiares e de apoio de serviços específicos)”.

Argumentava ainda o relatório que a indicação de uma contracepção eficaz em casos destes não merecia dúvidas do ponto de vista ético: porque se entendia que uma eventual concepção seria sempre “consequência de abuso sexual (mesmo que provocada pela desinibição sexual da doente)”; que a grávida não poderia ser mais “que mera mãe biológica”; e que o nascituro seria, de facto, “um órfão”.

Nem sempre “se pode evitar o abuso sexual”

Deixava, contudo, um alerta: “A laqueação das trompas não vai impedir o abuso sexual, pelo que estas pessoas não deverão deixar de receber todo os cuidados e apoios, da família e da sociedade, de que o seu acompanhamento necessita.”

O parecer, assinado pelo então presidente do CNECV Luís Archer, acrescentava: “A necessidade de recurso a medida tão extrema significa o reconhecimento de que a pessoa em causa não dispõe dos suportes indispensáveis que a defendam do abuso sexual.”

Rui Carrapato não sabe dizer que tipo de apoios recebeu a família desta menor. A laqueação das trompas, essa, foi feita. Por vezes, “a única coisa que se pode evitar é a gravidez”. Infelizmente, nem sempre “se pode evitar o abuso sexual”.

Seja como for, estamos a falar de situações raras, sublinha. “Já como presidente da comissão de ética desta instituição, em 2014, tivemos outro pedido de laqueação de trompas numa mulher de 20 anos”. Ou seja, dois pedidos deste tipo em 14 anos. Rui Carrapato acha que os pais são, em geral, sensatos nos pedidos que fazem. E querem o melhor para os filhos. “O consentimento informado tem de existir em todas as circunstâncias. A questão que se coloca é: a pessoa é competente para o fazer ou não. Se não é, alguém tem de o dar por ela.”

E haverá necessidade de uma uniformização de critérios, como há 14 anos se achava? “Afigura-se-me de difícil enquadramento jurídico porque todos os casos são individuais e diferentes e irão carecer de parecer individual.”