Canibais na Europa, ou o “Brexit” visto de Jerusalém
Tenho mais pena de que os ingleses prefiram ficar orgulhosamente sós do que alegria por terem dado uma bofetada nos aparatchiks e autocratas da UE.
1. A meio do século XVI, dezenas de índios tupinambás, canibais, foram trazidos do Brasil para serem exibidos na corte francesa, em diferentes momentos. A vida selvagem era um carnaval para as potências europeias, desde elefantes a indígenas recentemente certificados como humanos. Pioneiro dos troféus, Portugal chegara primeiro aos canibais, claro, mas foi Montaigne quem os celebrizou no ensaio Dos Canibais (1580), inspirado pelos que visitaram França. Além de criar um género literário, criou a figura do bom selvagem a partir de uma fusão de factos históricos, imaginando conversas e protagonistas para que os canibais dissessem do Velho Mundo o que o próprio Montaigne queria dizer, como se finalmente a Europa se visse no espelho do outro. Então, primeiro, Montaigne põe os canibais a estranhar que homens altos, fortes, armados, se submetam a um rei infantil; e, depois, que haja miseráveis na rua pedindo esmola em vez de se revoltarem contra a desigualdade, agarrarem os ricos pelo colarinho, incendiarem as casas.
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1. A meio do século XVI, dezenas de índios tupinambás, canibais, foram trazidos do Brasil para serem exibidos na corte francesa, em diferentes momentos. A vida selvagem era um carnaval para as potências europeias, desde elefantes a indígenas recentemente certificados como humanos. Pioneiro dos troféus, Portugal chegara primeiro aos canibais, claro, mas foi Montaigne quem os celebrizou no ensaio Dos Canibais (1580), inspirado pelos que visitaram França. Além de criar um género literário, criou a figura do bom selvagem a partir de uma fusão de factos históricos, imaginando conversas e protagonistas para que os canibais dissessem do Velho Mundo o que o próprio Montaigne queria dizer, como se finalmente a Europa se visse no espelho do outro. Então, primeiro, Montaigne põe os canibais a estranhar que homens altos, fortes, armados, se submetam a um rei infantil; e, depois, que haja miseráveis na rua pedindo esmola em vez de se revoltarem contra a desigualdade, agarrarem os ricos pelo colarinho, incendiarem as casas.
2. Não fui desenterrar estes canibais para o “Brexit”, calhou trazê-los no computador, a caminho de Jerusalém, parte do trabalho em curso. Mas, ao fim de quase quinhentos anos, pareciam mais vivos do que nunca nos formidáveis, imaculados, novos labirintos do aeroporto de Zurique. Entre o terminal de chegada e o de partida, pleno fim da tarde num dia de semana, não havia multidões, tudo era amplo, neutro, silencioso, caríssimo, pedra sólida, couro macio, comboios hi-tech dentro de túneis hi-tech, mais empregados do que passageiros, mais gente de farda a limpar os assentos com panos húmidos, a aspirar invisíveis migalhas, do que gente para sentar, sujar. E toda a gente de farda parecia vir do Sudeste Asiático ou da América do Sul, imigrantes na Suíça, esse civilizado, intocado offshore do mundo. Prefere que fale francês, perguntei à empregada que não percebera o meu inglês. E ela respondeu, alemão ou espanhol. Alemão era trabalho; espanhol, casa.
3. Foi isto na terça-feira, começo do Verão, que no Mediterrâneo se tornou a época em que mais gente de África e do Levante tenta fugir do horror, todos aqueles milhões acumulados nas fronteiras, nos contentores, nas tendas, a morrer de tudo o que falta, quando não do mar. Enquanto isso, em Zurique, hectares de lounges, aquelas cores sofisticadas, grafite, bronze, o toque macio da melhor pele de vaca suíça, alimentada nos melhores prados, regulada pelos melhores relógios, dando o melhor chocolate de leite. Como não nasci em Damasco nem tenho barba, nenhuma pergunta, nenhum frente-a-frente de carne-e-osso, apenas o meu passaporte electrónico com as estrelinhas da UE, porque ia mudar de continente, e: luz verde. Mas quem é o bárbaro mesmo, o que não tem conta no banco ou o que tem de esquiar em Davos para sentir enfim o coração? Suíça, a Sem Partido, nem um coração partido, óptimos acabamentos. Fresquinhos no meu computador, os canibais estranhariam não haver quem a agarre pelo colarinho, lhe deite fogo aos bancos.
4. Estranharam, mas não havia mais ninguém para ouvir. Lá erramos juntos, eu e os tupinambás, por aqueles corredores, aqueles túneis, aqueles lounges vazios onde caberiam aldeias da Síria. Como era a terça-feira antes do referendo, os jornais estavam cheios de notícias sobre a divisão nas Ilhas de Sua Majestade, a guerra do Nós X Eles, os estrangeiros que roubam empregos, quando não terroristas. Uma divisão tão polarizada que em cada pólo se acharam inimigos figadais, gente que deseja o mesmo por razões muito diferentes, até contrárias. Por exemplo, a esquerda pró-“Brexit” cooptando o referendo para a sua luta contra as instituições da União Europeia, ou tudo aquilo em que as instituições da UE se transformaram. Pena que este referendo não tenha sido sobre isso.
5. Muita pena. Pena que os britânicos saiam da União Europeia por 52% acreditarem que há um Nós e um Eles, e o Nós está melhor sem o Eles. Pena que isso seja também um sinal daquilo em que a UE se transformou, tão longe do mundo em que a minha geração acreditou que ia viver, todo o mundo indo e vindo, sendo o que quisesse. Pena que essa Europa tenha ficado velha muito antes, mais velha do que a soma de cada uma das partes. E pena que na parada triunfal dos nacionalistas se misture algum regozijo de esquerda, porque a decisão de sexta-feira, por tudo o que dominou o debate, me parece triste para o anti-nacionalismo em geral. Se o “Brexit” é a prova popular de que a união está podre e começou a amputação, não vejo o que festejar. Tenho mais pena de que os ingleses prefiram ficar orgulhosamente sós do que alegria por terem dado uma bofetada nos aparatchiks e autocratas da UE.
6. A segurança israelita deve estar tão ocupada com os requisitos de Netanyahu-Lieberman que nunca entrei tão facilmente em Israel. Não me revistaram a bagagem de mão, não me abriram o computador, não me interrogaram, fora aquele par de perguntas da praxe na cabine do passaporte. Estou a voltar ao fim de sete anos, the seven year itch, mas sem um Billy Wilder à vista, e mais caro, mais caro. Mais caro do que Lisboa, o que, sete anos depois, aos actuais preços de Lisboa, já é dizer alguma coisa. De resto, como sempre, às três e meia da manhã esperei que a carrinha Ben Gurion-Jerusalém enchesse, e depois Jerusalém apareceu no cimo da montanha como se nada fosse, homens indo e vindo através dos milénios, e a pedra ali, com o sol a bater às cinco e meia, que é quando amanhece no Verão. Mais uma hora para deixar todos os outros passageiros pelos subúrbios, porque o meu destino era praticamente em cima da fronteira com os árabes, e isso é o fim da linha. Uma instrutiva hora quanto ao boom da construção barata, os péssimos acabamentos, os caixotes a transbordar de lixo, as colinas a abarrotar de gente, cada vez mais judeus na terra santa. Só a pedra branca salva a construção, enquanto oliveiras, ciprestes, pinheiros salvarem a paisagem.
7. Já o centro de Jerusalém Ocidental tem o seu pedaço de Suíça, entre joalharias e canteiros floridos. Atravessei-o a pé na sexta-feira, para ir do bairro de Abu Tor a Jerusalém Leste. Antes de 1948, Abu Tor era palestiniano, ainda tem uma ou outra casa árabe abandonada, com aquelas janelas em arco, uma selva seca no jardim, provavelmente porque os sucessivos ocupantes judeus pós-1948 se desentenderam. De resto, a maior parte das casas ganhou segundos, terceiros, quartos pisos, virou prédio. E subindo a Bethlehem Road, depois a King David, impossível não pensar nas Ilhas de Sua Majestade nesse triste dia do “Brexit”, vendo todos aqueles nomes e lugares do tempo do Mandato Britânico na Palestina. Ah, quanto do que é hoje o presente deste lugar não veio daquelas majestosas cabeças.
8. A mais célebre ideia em Dos Canibais é que chamamos bárbaro a quem simplesmente não tem os mesmos costumes do que nós. Montaigne escreveu isto vai para quinhentos anos, mas o mundo teima em voltar atrás de Montaigne. Contornei os muros da Cidade Velha até à Porta de Damasco, ou seja, a entrada para o Bairro Muçulmano, plena Jerusalém palestiniana, em pleno Ramadão. Os passeios estavam bloqueados por grades, com centenas de polícias israelitas a controlarem o escoar de peregrinos, porque durante o Ramadão, a cada sexta-feira, dezenas, talvez centenas de milhares de palestinianos vêm da Cisjordânia rezar na Mesquita de Al Aqsa. Ao longo da tarde fiquei a ver aquele êxodo em massa, todos os que normalmente não podem circular em Jerusalém, filas gigantescas, debaixo dos 35 graus de Junho, sendo evacuadas em autocarros que se sucediam em contínuo. Os israelitas comandavam as operações de megafone na mão, enquanto rapazes com mangueiras iam regando homens, mulheres e crianças, tal o calor, o risco de insolação. Até que o último palestiniano da Cisjordânia estivesse fora de Jerusalém.