O país inquietante que se vê no teatro turco

O teatro turco interpela um país dirigido por um governo e um líder, Erdogan, acusados de se ouvirem apenas a si próprios. Da regeneração imobiliária imposta à gestão do conflito com o povo curdo e à discutível laicidade do Estado, no palco a ficção confunde-se com a mais premente realidade.

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Ali Gulera

Após o violento terramoto que atingiu Istambul em 1999, o rescaldo da catástrofe que registou mais de 17 mil vítimas mortais levou o governo turco a avançar com programas de reabilitação urbana que dotassem de construção anti-sísmica algumas zonas menos preparadas para qualquer réplica futura. Só que a desgraça pariu outra desgraça. Num assomo oportunista, os empresários da construção civil trataram de forçar essas medidas para legitimar uma operação a larga escala, arrasando bairros e erguendo novas zonas com edifícios robustos, claro, mas inflaccionando preços, desterrando gente pobre e reorganizando o território ao sabor da especulação imobiliária. Numa zona como a de Pendik, antigo destino balnear nos arredores de Istambul, lugar de veraneio de travo elitista nas décadas de 50 e 60, começou também a sentir-se a pressão para uma reconstrução que não se impunha por razões de segurança. Depois de usado e abusado o argumento para desapossar famílias de classe baixa sem posses nem voz para contrariar o poderio da construção, a “conquista de novos territórios” estendeu-se aos bairros da classe média turca.

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Após o violento terramoto que atingiu Istambul em 1999, o rescaldo da catástrofe que registou mais de 17 mil vítimas mortais levou o governo turco a avançar com programas de reabilitação urbana que dotassem de construção anti-sísmica algumas zonas menos preparadas para qualquer réplica futura. Só que a desgraça pariu outra desgraça. Num assomo oportunista, os empresários da construção civil trataram de forçar essas medidas para legitimar uma operação a larga escala, arrasando bairros e erguendo novas zonas com edifícios robustos, claro, mas inflaccionando preços, desterrando gente pobre e reorganizando o território ao sabor da especulação imobiliária. Numa zona como a de Pendik, antigo destino balnear nos arredores de Istambul, lugar de veraneio de travo elitista nas décadas de 50 e 60, começou também a sentir-se a pressão para uma reconstrução que não se impunha por razões de segurança. Depois de usado e abusado o argumento para desapossar famílias de classe baixa sem posses nem voz para contrariar o poderio da construção, a “conquista de novos territórios” estendeu-se aos bairros da classe média turca.

House Upon a Time, peça de Gülce Ugurlu estreada em Maio no Festival de Teatro de Istambul, inspira-se n’O Cerejal, de Tchékhov, sobrepondo o texto do dramaturgo russo a esta realidade turca. A justaposição entre a história da família da matriarca Lyubov Ranevskaya e a da família da autora e encenadora é assustadoramente perfeita. E funciona tanto como denúncia da situação quanto na condição de mea culpa. “Tive de enfrentar o meu paradoxo e a minha hipocrisia”, diz Gülce ao Ípsilon, criticando com o texto a falta de solidariedade da classe média para com as populações mais fracas. “Quando aconteceu em Sulukule, onde viviam os ciganos e em que havia casas em más condições, o governo usou o argumento da segurança para arrasar o bairro por inteiro e erguer edifícios caríssimos. Isto já estava a acontecer em Istambul, só que a classe média achou que isto nunca lhe bateria à porta.” Bairro histórico da cidade, o anúncio de demolição cega do Sulukule levaria a algumas manifestações, a apelos da Unesco e a acções de tribunal para tentar travar a fúria imobiliária, mas entre 2005 e 2008 o imparável processo de expropriações, demolições e novas construções não encontrou grande obstrução e transformou uma zona de elevada criminalidade num paraíso de escritórios e apartamentos de luxo.

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Palco de uma série de estreias de produções nacionais, o Festival de Teatro de Istambul fornece uma montra ampla das linguagens do teatro local, desde abordagens mais clássicas a outras mais experimentalistas ou a inspirações no folclore regional. A todas, no entanto, é comum uma forte e explícita marca política, atravessada quer por estas manobras de bastidores e de lobby de sectores empresariais quer pela indefinição social, cultural e institucional entre Europa e Ásia, pela relação explosiva com o povo curdo ou ainda pelo difícil posicionamento do país enquanto país na primeira linha do acolhimento dos refugiados sírios e região de transição para o espaço de livre circulação de bens e pessoas da Comunidade Europeia. Nunca nomeado directamente, a figura de Recep Tayyip Erdogan não anda longe destes textos, Presidente cuja população acredita estar tão apegado ao poder que por lá procurará eternizar-se – a tradição turca, diz-se nas ruas, é essa: cada partido vive de um líder e só com a queda definitiva dessa eminência se abre de facto lugar para o surgimento de outra força política.

Tchékhov e Flaubert

Gülce Ugurlu tinha 17 anos quando leu O Cerejal pela primeira vez. “Fiquei desde então sob o efeito da peça e penso que Tchékhov a escreveu num ponto de viragem da História”, comenta. “Agora vejo que a Turquia também está num ponto de viragem da sua História e olhar retrospectivamente para o Tchékhov a partir daqui tornou-se muito interessante e permitiu-me compreender melhor o que se está a passar no país e em Istambul.” Baseando-se de forma óbvia em O Cerejal, Gülce faz de House Upon a Time uma peça minimalista, assente em três personagens que tentam encurtar os mais de 100 anos que distam das suas correspondentes russas (com algumas características roubadas também a Irina, de As Três Irmãs), aqui reduzidas a duas herdeiras de uma propriedade ameaçada pelos escassos recursos financeiros e pela pressão imobiliária, representada por um velho amigo inspirado no inevitável Lopakhin de Tchékhov, figura salivante a todo o tipo de negociata que lhe traga algum provento.

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O simples dispositivo cénico, formado por um conjunto de blocos brancos que os actores redistribuem constantemente em cena, começam por evocar um conjunto de lápides num cemitério – “a cidade pode ser vista como uma grande colecção de cemitérios”, diz a autora –, mas vão sendo reagrupados de uma forma tão dinâmica, inventiva e bela quanto eficaz metáfora da máquina de destruição e terraplanagem imposta pelos ciclos de destruição e construção do capitalismo. O que mais a assusta é, no entanto, a leviandade com que a memória (urbanística mas também afectiva, da cidade mas também das pessoas) é tratada.

Há algo de semelhante a passar-se em The Rebellion Day of Dogs, texto de Ceren Ercan, encenado por Mark Levitas, que em Outubro integrará o arranque de temporada do Teatro São Luiz, em Lisboa. Inspirada por um outro clássico, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Ceren escreveu uma peça que Levitas transformou num espectáculo fervente. “Pensámos em adaptar o texto à contemporaneidade e à crise da mulher moderna na Turquia, porque o país tornou-se mais conservador nos últimos anos e discute-se muito a ideologia da república e os valores republicanos”, descreve Levitas. “Se o país muda, como é que esta mulher de um meio privilegiado observa essa transformação de uma sociedade em que os seus valores se encontram em crise?”

Numa peça que começa com a morte da mãe da protagonista e um passeador de cães que lança uma profecia de circunstância acerca de tudo aquilo que as lojas de luxo não permitem ver, a geografia de Istambul volta a ser uma personagem determinante. A localização concreta é a de Nisantasi, “um bairro de luxo onde viviam as pessoas com poder nos anos 40 e 50, em que encontramos agora pessoas cuja classe social começou a perder o seu poder económico e sua influência.” “É disso que falamos”, frisa Levitas. Quando The Rebellion Day of Dogs se inicia com a morte de uma velha burguesa, na verdade aquilo que está em cena é o definhamento de uma certa burguesia culta, dando lugar a outra movida pela frivolidade e pela relação sôfrega com os sinais óbvios de vida abastada, num novo e talvez mais acrimonioso capítulo da luta de classes.

Só que Nisantasi não é apenas um bairro que o poder parece ter abandonado. É também um dos bairros mais ocidentalizados de Istambul, de acordo com Levitas, pelo que tudo ganha uma nova luz num ambíguo processo de aproximação da Turquia à Comunidade Europeia, com a deriva autoritária de Erdogan a ser cada vez mais associada também a um processo de islamização – por muito que o Presidente garanta que a laicidade do Estado permanecerá intocada numa Constituição que, cada vez mais, parece depender exclusivamente da vontade do Partido da Justiça e do Desenvolvimento que lidera.

A relação com o exterior

Um dos mais complexos desafios que Erdogan tem enfrentado prende-se com o velho braço-de-ferro com os separatistas curdos, num choque que tem atingido vários picos de um conflito armado incessante, sendo os curdos responsáveis por alguns dos mais recentes atentados que têm colocado o país num evidente estado de tensão. Foi esse estado de guerra a motivar a escrita de The Crows por Mîrza Metin, peça estreada também no 20º Festival de Teatro de Istambul, encenada por Mîrza e Berfîn Zenderlioglu. Queriam apresentar algo que “abordasse a guerra e a tortura no contexto actual do país e a situação de subordinação constante em que se encontram os curdos”. O espectáculo, sob uma capa de conto tradicional animado por música, espelha a tentativa de sobrevivência com recurso a jogos e brincadeiras aos encarceramentos e às torturas de que os presos nacionalistas se queixam.

Inspirados pela cultura dos contadores de histórias tradicionais curdas, Mîrza e Berfîn cruzam esse imaginário com citações do Corão ou de Shakespeare, e colocam em palco uma trupe de actores que passa a peça a calcorrear cidades à procura de um público. A imagem não podia ser mais clara e o dedo acusatório ergue-se novamente: “É muito difícil encontrar público na Turquia actualmente por causa das políticas governativas”, atira o encenador. “Não há qualquer política para as artes e é por isso que o teatro se tornou uma forma de entretenimento muito passadista, as pessoas só querem estar presas em casa a ver televisão o dia inteiro.”

Podendo tratar-se de um carácter excepcional, a verdade é que o diagnóstico não bate certo com a totalidade das sessões das produções locais esgotadas nas duas primeiras semanas de vendas de bilhetes para o evento. “Estou até a tentar perceber porquê”, ri-se a directora do festival Leman Yilmaz. “Até porque todas estas peças vão poder ser vistas mais tarde, durante a temporada, mas parece haver agora um público específico do festival que quer assistir a todas as estreias”, comenta.

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Directora artística desde 2005, Leman sublinha o trabalho desenvolvido com as companhias locais, oferecendo-lhes não apenas um palco privilegiado e ao lado de alguns dos maiores criadores mundiais, mas também um crescente programa pontuado por co-produções que impulsionam o aparecimento e a conquista de espaço por parte das pequenas estruturas independentes da cidade e do país. Por outro lado, o desenho de um programa em que se incluem também co-produções internacionais, como é o caso de Rebellion Day… e Zululuzu (nova criação do Teatro Praga, estreada em Istambul), em assinatura conjunta com o São Luiz, permite ao festival criar também uma plataforma de internacionalização dos artistas turcos, não se limitando a expô-los diante do seu público. O lastro da programação internacional naquilo que faz a nível de teatro na Turquia, esse, garante Leman, há muito que tem uma expressão evidente na criação turca.

As escolhas artísticas reflectem também uma preocupação com o “reflexo da vida social e política de todo o mundo” que Yilmaz gosta de ver representada. Uma peça assente na emancipação feminina no Irão não apenas contribui para um menor desconhecimento entre dois países geograficamente próximos como potencia um debate sobre a condição feminina na Turquia. É “um teatro muito humano e muito vivo” que gosta de mostrar em Istambul, tendo as manifestações maciças de 2013 na Praça Taksim contra a intenção de o governo demolir o Parque Gezi para, em seu lugar, mandar erguer um quartel militar e um centro comercial estimulado este ano, por exemplo, a programação de Hate Radio.

O que pode o teatro

Os acontecimentos de Gezi, que incluíram cargas policias para pôr cobro a um longo e muito expressivo protesto, estimularam igualmente a peça Istanbul Testimonials, projecto a oito mãos em que esteve envolvida Yesim Özsoy. Neste último festival, Özsoy apresentou Old Child, cruzamento de uma série de quatro histórias reais de crianças com os piores desfechos: afogamento no mar Egeu a tentar viajar da Síria para o Canadá, vítimas de atentados bombistas num campo de refugiados ou numa cimeira da paz em Ancara ou morte provocada por balas perdidas em Cizre. “Claro que sempre houve guerra e violência”, reconhece a autora, “mas ultimamente temos enfrentado esta situação de uma forma muito mais vívida, com tudo o que se tem passado na Síria, na Palestina e aqui na Turquia.”

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Aquilo que Yesim faz em Old Child é fintar a morte. Em vez de tentar expor a realidade através da ficção, a autora inventa vidas adultas para estas crianças. “Por isso, o lugar começa como uma utopia, um sonho”, de tal forma idealizado que ao longo da peça se reforça essa ideia de suspensão da realidade, de uma proposta conduzida pela tristeza de se saber uma paupérrima substituição dos eventos reais. Em lugar das mortes trágicas, todos se fazem adultos, casam-se, tiram cursos superiores, empregam-se, viajam. E por muito que Yesim tenha sido surpreendida pela sua própria escrita, a verdade é que para todos imaginou uma situação de fuga – para Inglaterra, para Itália, para o lado ocidental da Turquia. “Acho que agora a utopia do mundo tornou-se, de alguma forma, a Europa, especialmente para os povos do Médio Oriente”, diz. “É nesse destino que se pensa quando se pensa numa vida perfeita, com um emprego, em segurança.”

Mesmo se a própria Europa está combalida, a braços com a sua própria crise de identidade, com os seus tumultos políticos, sociais, financeiros e a segurança posta em causa. Mas simboliza uma escolha. Em Old Child, como em qualquer outra das peças de que aqui se fala, não se exige ao teatro que conserte o mundo. Mas tenta-se, ao menos, lutar contra o esquecimento. Das pessoas, dos lugares e das conquistas sociais que, em cada momento histórico, parecem ser varridas para debaixo do tapete quando todos estão a olhar e, por vezes, ninguém vê.

O Ípsilon viajou a convite do Teatro São Luiz e do Instituto Camões