Setúbal ilustrada mais uma vez
A arte saiu à rua num dia assim. Da Associação José Afonso (Casa da Cultura) à Galeria 11 (Escola de Hotelaria e Turismo), a Festa da Ilustração distribui-se por 17 exposições e por várias lojas da Baixa de Setúbal. Neste sábado, André Carrilho vai “desenhar em cima da conserva”, no Museu do Trabalho Giacometti
É Preciso Fazer Um Desenho? Assim se apresenta a Festa da Ilustração de Setúbal, que nesta segunda edição volta a “celebrar ilustradores portugueses contemporâneos e clássicos”, nas palavras do editor João Paulo Cotrim, director do projecto em colaboração com o designer José Teófilo Duarte. Até dia 3 de Julho, há desenhos por aí a medir a temperatura da sociedade.
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É Preciso Fazer Um Desenho? Assim se apresenta a Festa da Ilustração de Setúbal, que nesta segunda edição volta a “celebrar ilustradores portugueses contemporâneos e clássicos”, nas palavras do editor João Paulo Cotrim, director do projecto em colaboração com o designer José Teófilo Duarte. Até dia 3 de Julho, há desenhos por aí a medir a temperatura da sociedade.
Do lado dos contemporâneos, o destaque vai para Nuno Saraiva, com a exposição Fónix (Casa da Cultura), que sintetiza dez anos do seu percurso; dos clássicos, a escolha foi para Luís Filipe de Abreu, com Ilustração (Galeria 11), que espelha 60 anos de actividade do artista, que se reparte por publicidade, medalhística, capas de livros, notas de escudos e pintura.
Nuno Saraiva inaugurou a sua mostra na noite de 2 de Junho à meia-noite, com casa cheia, e contou, numa visita informal e em tom divertido, as circunstâncias que deram origem a algumas das suas criações.
Querer incomodar
Sobre a sua primeira ilustração editorial (1989): “Estudava no 11.º ano na escola do Pragal e tinha como colega de carteira o Cascão, que era o baixista dos Mata-Ratos. Na altura já eram uma banda de culto. Os seus concertos reuniam tudo o que havia de bom e de mau na época, nomeadamente os skinheads, muita gente de extrema-direita.”
Convidaram-no para fazer a capa do 1.º álbum do grupo e Nuno Saraiva desenhou um neonazi esmagado. “Coloquei no seu dedo um anel com uma cruz celta que é uma simbologia neonazi.” Não passou. “O guitarrista exigiu que aquele símbolo desaparecesse do dedo porque estava com medo de ter problemas.”
O skinhead continuou esmagado na capa de Rock Radioactivo (EMI Valentim de Carvalho, 1990), mas sem anel. “Já nesta altura eu queria incomodar. Mas fui um bocadinho inconsciente, eles eram perigosos, assassinos, culpados no mínimo de dois crimes de assassinato e essas pessoas estavam na mesma escola onde eu estudava. Foi um trabalho de atrevimento que teve um fim feliz”, conclui o ilustrador.
Sobre o retrato de Raul Solnado: “Santana Lopes era o presidente da câmara e pela enésima tentou fazer-se algo à volta do Parque Mayer.” O ilustrador recorda que houve uma grande festa e que ele e António Jorge Gonçalves foram convidados para decorar o parque. “No edifício do Capitólio pediram-me para fazer várias figuras de personagens que tinham que ver com a história do Parque Mayer.” Uma delas a do actor e humorista Solnado.
Saraiva interrompe aqui a narrativa, para avisar que a “história tem um lado de misticismo”. E prossegue: “Não é que, quando eu estava no atelier a desenhar o Raul Solnado, com o rádio ligado, é anunciada a morte dele.” Os visitantes da exposição têm reacções diversas: uns ficam em silêncio, outros arrepiam-se, há quem arregale os olhos. “Quando os meus amigos chegam ao pé de mim e me dizem: ‘Tens de fazer o meu retrato.’ Eu conto-lhes sempre esta história. E imediatamente desistem.” Todos riem agora.
Ilustrações na pele
Nuno Saraiva detém-se frente a uma ilustração que foi capa do Ípsilon para o tema “A literatura portuguesa é má na cama”: “Uma imagem para mim bastante importante. Ganhou o Prémio Stuart [de Desenho de Imprensa 2010].”
Num outro trabalho, fala sobre a pesquisa que teve de fazer sobre o fado: “O fado pouco me dizia, não me sentia atraído pelo fado. A poética atraía-me. Conhecia a Amália, o Alfredo Marceneiro e pouco mais.” Em resultado desta investigação “às raízes do fado”, descobriu que o Instituto de Medicina Legal tem conservadas em formol tatuagens de pessoas que morreram no início do século XX, finais do século XIX. “Existia um médico que, sempre que fazia uma autópsia a um desses homens ou mulheres que morriam sem família ou sem ninguém que viesse reclamar o corpo, recortava as tatuagens. Ele achava admiráveis aquelas ilustrações na pele”, descreve. “Eu vi-as e desenhei-as nestes corpos.”
Com ironia, revela o seu “papel fundamental para a existência das sardinhas da Câmara Municipal de Lisboa, mas… no mau sentido”. Em 2000, o director de arte Jorge Silva convidou-o para criar uma imagem para as Festas de Lisboa, mas o trabalho foi recusado. O resultado foi que “Jorge Silva comprou uma sardinha, pegou nela e, ao mesmo tempo que me estava a amaldiçoar, digitalizou-a. E a sardinha passa a ser a imagem da cidade de Lisboa até hoje”.
O ilustrador viria também a criar a sua própria sardinha, “uma homenagem à mulher, à mãe”: uma série de maminhas de mulher substituem as escamas. “Sombreado com peitos africanos, em baixo. No meio, peitos nórdicos, muito branquinhos, para reforçar a volumetria. Em cima, maminhas dos países asiáticos. Algumas têm piercings”, explica aos visitantes, para rematar com malícia: “Foi um trabalho que envolveu muita pesquisa.”
Sessenta anos a desenhar
Em Setúbal, uns dias depois e umas ruas mais adiante, é inaugurada a exposição retrospectiva do trabalho de Luís Filipe de Abreu, Ilustração, cujo comissário, Jorge Silva (o da sardinha), começa por descrever no catálogo assim: “O desenho é senhor absoluto de toda a sua vida, dos cenários e figurinos para ópera, teatro e bailado à medalhística, da pintura mural, cerâmica, vitral e tapeçaria integrados em espaços arquitectónicos à ilustração editorial, que na Galeria do 11 é mote exclusivo.”
Para Luís Filipe de Abreu, “esta é uma exposição parcelar, mas bastante representativa”. O material exposto estava em seu poder, mas recorda a prática de, durante muito tempo, os originais não serem devolvidos aos autores: “Muitas das coisas que eu fiz ficaram na posse de quem as mandou fazer. Acontecia muitas vezes, não havia o cuidado de retermos os originais. Portanto, há muitas coisas que eu não tenho.”
Quando se lhe pergunta se lamenta a ausência de algum original em particular, responde: “É melhor nem pensar nisso.” E valoriza o que ali está: “Estão aqui coisas muito importantes.” Alerta-nos para a série de ilustrações criadas para o Círculo de Leitores: “São curiosas e as pessoas não têm hipótese de avaliar, pelos livros que possam ter, porque elas estão reproduzidas em formato de página. Mas como está aqui a ver são pinturas com um metro, não é vulgar ver ilustrações assim. E agora cada vez menos.” Mas esclarece: “Não quer dizer que isso lhes dê qualidade só por si, mas é o modo de fazer deste autor neste e naquele tempo.”
Publicidade, medalhística, ilustração infantil (parceria com Maria Keil nos livros para Primeira e Segunda Classes da Instrução Primária, em 1967/68), azulejaria, notas (por exemplo a de 100 escudos com a imagem de Fernando Pessoa), capas de livros são algumas da áreas, expressões e suportes por onde Luís Filipe de Abreu andou.
Ao PÚBLICO diz não preferir uma em particular e também não se arrepende de nenhuma: “Nada que me considere envergonhado. Comecei muito novo, evidentemente que evoluí, houve muitas transformações, mas há uma certa unidade e houve continuidade. Há uma identidade com que me reconheço e de que não me arrependo.”
O que Luís Filipe de Abreu gostava mesmo era de “poder continuar por outros 60 anos a fazer estas e outras coisas” e quer agradecer ao curador, à câmara e à galeria. Sorridente, diz: “Não tinha nenhuma ligação a Setúbal e foram essas entidades que promoveram este espectáculo para a vista.” Está feliz.
Centenas de versões de Bocage
Além destas duas grandes exposições, a cidade mostra o que de melhor se faz na área da ilustração em Portugal (Ilustração Portuguesa, Casa da Baía) e convida as escolas do concelho a desenhar e a expor os seus trabalhos. Este ano, os alunos fizeram retratos do poeta Bocage, o que resultou em Conheces Bocage? (Oficina do Porto de Setúbal e Sociedade Perpétua Azeitonense).
Assim, os 250 anos do nascimento do poeta são assinalados com centenas de imagens. “Nunca o poeta setubalense foi tão desenhado”: Bocage em versão super-herói ou com o equipamento do Vitória de Setúbal, o poeta ao sol, sentado a escrever ou em pé de braços abertos, com e sem musas. Narigudo, sempre.
As escolas foram também desafiadas a gravar “o futuro” numa moeda, uma co-produção com a Imprensa Nacional/Casa da Moeda. A moeda vencedora (2€), de Martim Estanislau (Escola Básica de Azeitão), será cunhada. Aí poderá ler-se: “Isto é o passado/ cheio de guerras e mortes. Isto é o futuro/ com paz, liberdade e igualdade de todos.”
Neste sábado, às 17h30, no Museu do Trabalho Michel Giacometti, André Carrilho vai desenhar ao vivo, encerrando a história e o projecto Desenhar em Cima da Conserva, que começou há um ano na Conserveira de Lisboa, no Mercado da Ribeira: Mais Uma História de Marinheiros e Sereias.
Antes, às 15h, há uma oficina de ilustração com Madalena Matoso e Yara Kono, na Casa da Avenida.
Outras mostras: Daqui e de Agora, ilustradores de Setúbal (Palácio Fryxell), TPC, trabalhos das escolas superiores de artes (Claustros do Instituto Politécnico), Bartoon, Luís Afonso (Teatro de Bolso), Sobreviver, João Azevedo (Casa da Cultura, Associação José Afonso), Cadernos de Viagem, Hans Christian Andersen (Biblioteca Pública Municipal), Sumário, escolas do ensino secundário (Oficina do Porto de Setúbal), É Preciso Contar Uma História?, ilustração infantil (Casa da Avenida), Resumo da Matéria Dada, desenhos de jornais de João Martins, Fora de Muros, desenhos de reclusos (Museu do Trabalho).
A Festa da Ilustração continua até dia 3 de Julho. Se sabe onde fica Lisboa, verá que Setúbal é logo ali. Se for preciso, faz-se um desenho.