Raios X da Croácia: fantasia e solidariedade

Pela melhor das razões, o momento da escolha dos 23 convocados para o Euro 2016 deve ter provocado uma enxaqueca daquelas a Ante Cacic. Matéria-prima, e de qualidade refinada, não faltava ao seleccionador da Croácia e o facto de o poderoso central Dejan Lovren e de o criativo Alen Halilovic terem ficado de fora está aí para o provar.

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Pela melhor das razões, o momento da escolha dos 23 convocados para o Euro 2016 deve ter provocado uma enxaqueca daquelas a Ante Cacic. Matéria-prima, e de qualidade refinada, não faltava ao seleccionador da Croácia e o facto de o poderoso central Dejan Lovren e de o criativo Alen Halilovic terem ficado de fora está aí para o provar.

Muito contestado pela modéstia de um currículo construído à custa de clubes sem grande expressão, o técnico de 62 anos começou por assustar graças à irregularidade das suas opções (no plano táctico, variava entre o 4-4-2 clássico e o 3-5-2), mas o apuramento sem sobressaltos para a fase final do torneio e a excelente fase de grupos que cumpriu conferem-lhe alguma margem de manobra.

Com a equipa entretanto estabilizada num 4-2-3-1, este antigo dono de uma loja de reparação de electrodomésticos em Zagreb resolveu (em parte) o problema dos equilíbrios defensivos com a aposta continuada em Milan Badelj, num duplo pivot comandado por Luka Modric, e deu plena expressão ao génio de Ivan Rakitic atirando-o para as imediações do ponta-de-lança.

Por força dos artífices de que dispõe, a Croácia é hoje uma selecção que gosta de comandar com bola, mas que, ao mesmo tempo, tem a arte de saber jogar — e bem — sem ela. Que o diga a Espanha, que controlou a posse durante quase toda a partida da 3.ª jornada da fase de grupos, mas que viu o adversário aproveitar os corredores e as transições ofensivas para causar danos. E o pressing alto, muito intenso e feito de forma coordenada, tem o condão de provocar grandes calafrios ao rival no momento da saída de bola.

Defesa: A influência de Srna e de Corluka

A linha de quatro de que o incontornável Danijel Subasic (Mónaco), um especialista na defesa de grandes penalidades, dispõe à sua frente é relativamente fiável. Nas laterais, a Croácia tem no inesgotável Darijo Srna (Shakhtar Donetsk) um jogador que faz todo o corredor direito com qualidade e que se distingue (para além de bater cantos e livres directos com precisão) no capítulo do cruzamento. Do lado oposto, o único lateral esquerdo de raiz na convocatória, Ivan Strinic (Nápoles), é mais retraído e preocupa-se essencialmente em compensar as arrancadas de Ivan Perisic.

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Darijo Srna

No eixo, o experiente Vedran Corluka (Lokomotiv Moscovo) é o mais evoluído dos centrais e importante no controlo do espaço aéreo defensivo, bem como nas bolas paradas ofensivas, enquanto Domagoj Vida (Dínamo Kiev) tem na agressividade o seu principal trunfo. A alternativa, Tin Jedvaj (Bayer Leverkusen), um jovem polivalente, tem ainda muitas lacunas no posicionamento, expostas de forma flagrante pela Espanha.

Entre as fragilidades deste sector, contam-se o espaço concedido nas laterais no momento da transição defensiva e as dificuldades em travar diagonais interiores, bem como a abordagem à profundidade. Nos pontapés de canto, a marcação é feita com referências individuais e não é raro perderem duelos aéreos, especialmente ao primeiro poste.

Meio-campo: Modrid, um regente todo-o-terreno

É um dos segredos menos bem guardados destes oitavos-de-final. Modric (Real Madrid), a construir praticamente a partir da área croata, assume o papel de regente de uma orquestra que produz notas invulgarmente afinadas no processo ofensivo. É ele que decide quando acelerar ou travar, quando soltar ou progredir em posse, libertando os centrais da tarefa de iniciarem a primeira fase de construção.

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Luka Modric

As suas acções de condução são vigiadas, nas costas, por Milan Badelj (Fiorentina), um elemento-chave na ideia de jogo de Ante Cacic que joga curto e simples nas saídas e se revela um operário incansável nos equilíbrios defensivos, também graças à habilidade para o desarme.

No momento da organização ofensiva, a competência desta dupla é amplificada pelo binómio jogo interior/exterior que os extremos asseguram, quase sempre com qualidade. Com Rakitic (Barcelona) a pisar terrenos mais adiantados — e decisivo na primeira fase de pressão —, Modric tem no médio que ao serviço dos "blaugrana" constrói mais a partir de trás um parceiro privilegiado quando tenta verticalizar um pouco o jogo.

No banco, figuram ainda duas opções válidas para o miolo: o promissor Marko Rog, um médio-centro puro que não assume tanto o jogo na fase de construção, e o virtuoso Mateo Kovacic, que tem ficado na sombra de um dos maiores talentos deste Campeonato da Europa.

Ataque: Ivan Perisic, o croata voador

Dos quatro elementos que normalmente compõem a frente de ataque, o credenciado Mario Mandzukic (Juventus)  tem sido o mais discreto e a exibição demolidora de Nikola Kalinic frente à Espanha poderá provocar alterações. Mais móvel — recua muitas vezes até ao meio-campo e abre mais espaços para as investidas de Rakitic —, o avançado da Fiorentina combina arte com poder de fogo, ainda que fique a perder para o goleador do campeão italiano no jogo aéreo.

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Ivan Perisic

É a influência dos extremos, porém, que permite à Croácia variar com frequência o assalto à muralha adversária. Ivan Perisic tem sido uma das estrelas mais cintilantes deste Europeu, combinando diagonais perigosas em posse e movimentos verticais a uma velocidade alucinante. Excelente no momento da decisão (cruzamento ou remate) é, de longe, o maior criador de desequilíbrios no último terço, podendo actuar nos dois corredores laterais.

Do lado oposto, a "discussão" tem envolvido o seu colega no Inter Milão, Marcelo Brozovic, e o indomável Marko Pjaca (Dínamo Zagreb). Brozovic é uma das faces mais visíveis da solidariedade de processos da equipa: tacticamente rigoroso e sempre atento às compensações, é menos vertical do que Perisic e tem sido a primeira escolha para o flanco direito. A morder-lhe os calcanhares está o jovem Pjaca (21 anos), mais forte no drible, tremendamente veloz nas diagonais e destemido no um para um.

Este leque de talentos é suportado pela leitura inteligente de Rakitic (o habitual responsável pelos livres indirectos), quase sempre a actuar nas costas do ponta-de-lança, arrastando marcações e procurando espaços de penetração. Decisivo no último passe, o seu futebol refinado também se expressa através da arte da finalização.