O day after ou a caixa de Pandora
Serão os políticos e burocratas europeus capazes de ultrapassar um desafio sem precedentes na história da União?
Já aqui no PÚBLICO tive o gosto de me referir ao que o Tratado da União Europeia, no seu art. 50.º, prevê sobre a saída de um Estado-Membro da UE.
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Já aqui no PÚBLICO tive o gosto de me referir ao que o Tratado da União Europeia, no seu art. 50.º, prevê sobre a saída de um Estado-Membro da UE.
Contados os votos, as consequências são sobretudo políticas e económicas. Cameron, como não podia deixar de ser, apresentou a sua demissão e avizinham-se tempos duros para os tories. Os Trabalhistas também não saem bem na foto e partidos radicais como o de Nigel Farage ganham um balão de oxigénio que não previam, em especial porque este último chegou a reconhecer a derrota do “Brexit”.
Em uma leitura nacional, este pode bem ser o início do fim do Reino Unido como o conhecemos. A Escócia e a Irlanda do Norte votaram “Bremain” e é bem real a inevitabilidade de novo referendo sobre a independência dos escoceses e de uma união entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, aliás, mais natural que a situação actual. Abriu-se a caixa de Pandora e, como sempre, ninguém sabe o que irá acontecer ao certo.
Depois de uma abertura desastrosa da bolsa londrina e de uma expectável desvalorização da libra e de deslocalizações de multinacionais nos próximos tempos, creio que o Reino Unido, fruto da sua indústria, comércio e da Commonwealth, acabará por recuperar. De certa forma, o resultado espelha o que sempre foi a verdade: aquele Estado só queria a parte boa da união de comércio livre, sem liquidar a factura devida. Donde, em parte, não é totalmente má a saída dos Britânicos, saiba a UE aproveitar a crise que já existia e que agora se declarou de modo inelutável.
Como advertira já, fruto de nacionalismos que têm que ver com a crise dos migrantes, com o recrudescimento dos egoísmos nacionais, a União tem de voltar ao seu projecto fundador, pelo que é sintomática a reunião dos seis primeiros Estados que celebraram os Tratados de Paris e Roma. Ou a UE passa a um processo de menor controlo sobre a soberania dos Estados, com eventuais devoluções, uma política económica com menos “garrotes”, a uma democratização que não existe nas suas instituições, a uma explicação em massa sobre o que é, para que serve e que vantagens comporta, ou a agonia moribunda quase putrefacta que já se cheira será uma realidade.
O Reino Unido passa agora a estar livre para acordos bilaterais ou multilaterais, talvez mais vantajosos que aqueles que tinha, mesmo depois da vergonhosa concessão da União, em Janeiro, de um regime de excepção. Sabemos que a UE se construiu na base de uma Europa a várias velocidades, tendo sido essa a única forma de acomodar os interesses de cada Povo. A Europa não é homogénea sócio-culturalmente, bastando ler qualquer manual de História para o efeito. Este continente fez-se sempre de pelejas, de animosidades entre Estados, pelo que as duas Grandes Guerras aqui tiveram o seu epicentro.
A batalha agora é outra: a UE hipertrofiou-se, pelo que terá de regressar ao seu fundamento basilar de uma zona de comércio livre. Esse downgrading parece o único capaz de salvar algo deste belo sonho de Schuman ou Monnet, na altura justificado por razões económicas e de manutenção de paz num continente em ruínas. As guerras agora são mais do vil metal, de auto-protecção face a ameaças externas. O mundo de 2016 nada tem que ver com o da década de 50 da passada centúria. O terror à escala global teve esta noite uma vitória. O Daesh deve estar em clima de festa.
Os Europeus foram incapazes de acordar no essencial e não se pode pedir a um conjunto de Povos com interesses antagónicos entre si que renuncie à sua própria natureza. É como pedir a um escorpião que não espete a sua letal arma.
E Portugal? Como economia periférica, perde um importante parceiro de exportação, o seu mais velho aliado que sempre nos levou a melhor, fruto do pragmatismo inglês, bastando lembrar o Ultimato que nos conduzir à desgraça da Corpo Expedicionário Português e, séculos antes, o Tratado de Methuen. O Governo deve já começar a negociar com Londres um acordo bilateral que garanta o essencial dos direitos da comunidade lusófona altamente qualificada que aí vive. Pelo seu número e, em geral, boa integração, não antevejo problemas de maior.
Não é o fim do mundo. Pode ser o fim da UE como a conhecemos ou o seu termo puro e simples, em especial se nada se aprender com esta majestática lição. Estávamos todos a precisar deste terramoto como de pão para a boca. Serão os políticos e burocratas europeus capazes de ultrapassar um desafio sem precedentes na história da União? Ou o anão político em que esta se tornou, incapaz de ser um global player, terá já contaminado a tessitura de que são feitos estes homens e mulheres?
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto