A queda da Europa das elites
Uma Europa que só entusiasma elites desnacionalizadas e tecnocratas não tem futuro.
1. A votação favorável à saída dos britânicos da União Europeia confirmou, da pior maneira, o que já deveria ser óbvio para os responsáveis nacionais e europeus. É o culminar de um processo de miopia colectiva das elites políticas, económicas e intelectuais que nos dirigem, o qual dura há mais de uma década. As suas raízes directas podem ser traçadas a 2005, quando o modelo de integração europeia, que fazia consenso entre as elites governantes, era amplamente rejeitado pela população em referendos. Por isso, os sinais do seu esgotamento estão longe de ser novos. Qualquer observador atento, qualquer observador minimamente neutral e razoável, poderia verificar isso há já há mais de uma década atrás. Persistir num modelo de integração esgotado, que ignorava a vontade dos cidadãos, foi uma tragédia independentemente das boas intenções que lhe possam ser apontadas. Em democracia, ninguém pode (deve) ignorar a vontade dos cidadãos. Vale a pena olhar para esse passado recente para colocar o referendo britânico em perspectiva. Só assim iremos perceber como chegamos até aqui e onde a obstinação absurda e míope das elites governantes nos levou.
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1. A votação favorável à saída dos britânicos da União Europeia confirmou, da pior maneira, o que já deveria ser óbvio para os responsáveis nacionais e europeus. É o culminar de um processo de miopia colectiva das elites políticas, económicas e intelectuais que nos dirigem, o qual dura há mais de uma década. As suas raízes directas podem ser traçadas a 2005, quando o modelo de integração europeia, que fazia consenso entre as elites governantes, era amplamente rejeitado pela população em referendos. Por isso, os sinais do seu esgotamento estão longe de ser novos. Qualquer observador atento, qualquer observador minimamente neutral e razoável, poderia verificar isso há já há mais de uma década atrás. Persistir num modelo de integração esgotado, que ignorava a vontade dos cidadãos, foi uma tragédia independentemente das boas intenções que lhe possam ser apontadas. Em democracia, ninguém pode (deve) ignorar a vontade dos cidadãos. Vale a pena olhar para esse passado recente para colocar o referendo britânico em perspectiva. Só assim iremos perceber como chegamos até aqui e onde a obstinação absurda e míope das elites governantes nos levou.
2. Os referendos sobre o Tratado Constitucional Europeu (Constituição Europeia), ocorridos 2005, em França e na Holanda, foram uma clara rejeição de um modelo de integração elitista e tecnocrático, desligado da vontade da população. Importa recordar que, na altura, a participação eleitoral em ambos os países foi substancialmente elevada. Algo que, normalmente, nunca ocorre nas eleições para o Parlamento Europeu. Aí registam-se os índices de abstenção mais elevados de todos os actos eleitorais. Em ambos os referendos, a votação contra, na ordem dos 60%, foi um inequívoco sinal de rejeição. Mais: ambos eram efectuados em Estados que faziam parte do núcleo dos seis fundadores das Comunidades. Deveriam ter obrigado a uma paragem para pensar. À partida, eram casos onde teríamos a maioria da população identificada com os avanços da integração europeia. Mas não tínhamos. Por isso, há mais de uma década que existem sinais de alarme — e bastante inequívocos —, quanto ao descontentamento dos cidadãos face à forma como a integração europeia está a ser prosseguida. Prevaleceu, no entanto, a miopia e a arrogância. Em vários Estados-Membros, nos parlamentos, a Constituição Europeia era ratificada por maiorias esmagadoras de deputados em desfasamento com a população. Nesses mesmos Estados, os inquéritos de opinião mostravam uma população muito dividida, ou até maioritariamente contra essa ratificação.
3. Na época, tudo isto deveria ter obrigado a repensar profundamente o modelo de integração europeia. A resposta generalizada das elites nacionais e europeias foi a pior possível. Menosprezou e contornou a votação contra a Constituição Europeia. Quem votou contra certamente estaria mal informado; quem votou contra provavelmente votava contra o governo nacional e não contra o Tratado; quem votou contra era um eurocéptico militante e desprezível. A hipótese de a maioria ter mesmo votado contra, simplesmente porque não queria o Tratado Constitucional — ou o caminho que a integração estava europeia a seguir —, não lhes parecia concebível. Por isso, fazer um novo Tratado, em mais de 90% igual ao anterior, foi a forma de iludir o problema. Assim, surgia o actual Tratado de Lisboa. Foi apresentado, a nós, portugueses, como uma grande vitória diplomática. Quanto ao conteúdo, não interessava. As elites é que sabiam (ter o nome de Lisboa já deveria ser motivo de orgulho). Era muito técnico para a população compreender. À porta fechada, todos combinaram não fazer referendos. Só o quadro mental de elites habituadas a governar com a arrogância iluminista, de saberem o que é melhor para a população, pode explicar esta forma absurda de governar em democracias. A lógica continuou com a pressão para a repetição do referendo na Irlanda — o único país onde a Constituição obriga a isso —, até dar sim à ratificação do Tratado de Lisboa. Prosseguiu com Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária de 2012 (o pacto orçamental), em plena crise da Zona Euro. Tudo isto mostra um enorme desfasamento entre os que representam politicamente os cidadãos e a visão do mundo e vontade destes em matéria de integração europeia. Em democracia, esse desfasamento é grave e tem consequências. Estas surgem mais tarde ou mais cedo.
4. O dia 23 de Junho de 2016 vai marcar a história britânica e europeia deste início de século XXI. Não é certo onde nos vai levar. A União Europeia poderá ter de enfrentar um efeito dominó, com referendos similares em vários Estados-Membros. Para além das incertezas económicas, o Reino Unido vai ter de gerir delicadas questões políticas internas, mais óbvia é a ambição independentista da Escócia. Quanto à sociedade britânica, em geral, ficou profundamente dividida. O voto de saída foi, largamente, um voto da província inglesa e das classes média e media-baixa, contra os ganhadores da integração / globalização. O voto pela permanência veio, sobretudo, da grande e cosmopolita Londres — que muitos britânicos têm abandonado por se sentirem estranhos na sua terra —, e das outras componentes nacionais do Reino Unido: a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte. Há, também, uma forte clivagem entre os mais novos (maioritariamente a favor da permanência) e os mais velhos (maioritariamente a favor da saída). David Cameron fez uma jogada política de grande risco. Pretendia consolidar o seu poder sobre o partido e o eleitorado conservador, incluindo o que estava a fugir para o UKIP de Nigel Farage, atraído pelo populismo anti-União Europeia. Perdeu estrondosamente. Hoje deve estar bem arrependido. Boris Johnson liderou a campanha de saída da União Europeia a pensar, provavelmente, mais em chegar à liderança do Partido Conservador, sendo o referendo instrumental para a sua ambição de poder. As motivações dos que votaram a favor da saída são múltiplas (a imigração é apenas mais óbvia), contraditórias, e em vários aspectos também irrealistas. Se, com este resultado, os conservadores ficaram completamente fracturados, já o Partido Trabalhista — ou melhor, o círculo próximo de Jeremy Corbyn —, vê no mesmo uma oportunidade. Apesar do apoio oficial à permanência, há agora a possibilidade de chegada ao poder em eleições legislativas antecipadas. Quanto à saída da União Europeia, existem perspectivas que entusiasmam os mais à esquerda, de romperam com políticas económicas de orientação (neo)liberal e se afastarem da lógica do mercado único. Mas o Partido Trabalhista está muito dividido nessa questão. Também Jeremy Corbyn não vai ter a vida fácil no pós-referendo.
5. Chegamos a um ponto de viragem na integração europeia. O contínuo processo de adesão e de aumento de Estados-Membros vai ter, pela primeira vez, uma reversão. A ideia de uma união cada vez mais estreita — ou seja, do contínuo aprofundamento da integração europeia —, foi posta em causa de uma maneira que não pode ser ignorada. O artigo 50.º do Tratado da União Europeia, o qual contém o dispositivo de saída de um Estado-Membro, vai estar no dentro das discussões políticas batalhas e jurídicas dos próximos tempos. Ironicamente, quando foi incluído no texto do Tratado da União Europeia, a hipótese de saída era meramente teórica. Hoje tornou-se real. Mas tudo isto é o culminar do mal-estar acumulado há mais de uma década. Achar que o problema é apenas britânico é um erro grave. Se, do lado da União Europeia, se quiser fazer prevalecer um espírito de retaliação nas negociações de saída dos britânicos, será péssimo. Abrirá novas fracturas entre os Estados-Membros. Mais do que apontar o dedo aos britânicos, as elites que nos governam têm de tirar uma ilação. Este modelo de integração europeia está esgotado. A Europa não pode ser construída à margem da vontade dos cidadãos. Não podem continuar assim. As elites governantes deveriam ter percebido isso em 2005, na altura da rejeição da Constituição Europeia. Ao persistirem neste caminho, são responsáveis pela situação crítica em que hoje a União Europeia se encontra. A todos os que têm um sentimento europeísta resta a esperança que este choque possa levar a uma viragem de página. Uma Europa que só entusiasma elites desnacionalizadas e tecnocratas não tem futuro.
Investigador