Um Bosch quase espanhol
A exposição do quinto centenário da morte de Bosch organizada pelo Prado quer marcar toda uma geração de investigadores. Em Madrid, é possível ver até Setembro quase todas as obras-primas do mestre. Como pano de fundo, uma polémica com os holandeses.
Quando o historiador de arte Paulo Varela Gomes escreveu sobre El Greco, numa altura em que já estava doente e quase não escrevia para este jornal, veio de Toledo com um texto em que tratou o pintor o tempo todo por “O Grego”. A designação, que estranhávamos ao princípio, revelou-se duplamente eficaz, porque lembrava o evidente – para quem, como nós todos, já não pensa na origem geográfica quando ouve a palavra “El Greco” – e sugeria, também subtilmente, uma relação, um gosto especial, entre o historiador de arte e O Grego. É o que acontece com os artistas que são “muito lá de casa” – para usar uma expressão de João Bénard da Costa –, com os quais construímos uma intimidade que torna impossível chamar Da Vinci a Leonardo ou Tiziano a Ticiano.
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Quando o historiador de arte Paulo Varela Gomes escreveu sobre El Greco, numa altura em que já estava doente e quase não escrevia para este jornal, veio de Toledo com um texto em que tratou o pintor o tempo todo por “O Grego”. A designação, que estranhávamos ao princípio, revelou-se duplamente eficaz, porque lembrava o evidente – para quem, como nós todos, já não pensa na origem geográfica quando ouve a palavra “El Greco” – e sugeria, também subtilmente, uma relação, um gosto especial, entre o historiador de arte e O Grego. É o que acontece com os artistas que são “muito lá de casa” – para usar uma expressão de João Bénard da Costa –, com os quais construímos uma intimidade que torna impossível chamar Da Vinci a Leonardo ou Tiziano a Ticiano.
“O Museu do Prado é um museu de pintores e não de pintura”, disse Miguel Falomir, o director adjunto de conservação e investigação do museu, na apresentação da exposição com que Madrid comemora o quinto centenário da morte de Bosch e que estará na cidade espanhola até ao início de Setembro. Entre os pintores do Prado está certamente El Bosco, como os espanhóis preferem chamar ao holandês, porque Jheronimus Bosch é um pintor muito daquela casa: afinal, entre as 21 ou 25 pinturas que lhe estão atribuídas – o número varia conforme os autores –, oito permanecem em Espanha e seis destas podem ser vistas em permanência no Prado. “O Prado tinha de organizar a exposição do quinto centenário, porque Bosch é de certa maneira um pintor espanhol. O principal coleccionador de Bosch era Filipe II. O Prado herdou a maior colecção de Bosch.”
Os holandeses e os espanhóis
Miguel Falomir não foi o único a “nacionalizar” Bosch. Pilar Silva, a comissária desta exposição que é um dos acontecimentos do Verão, disse na apresentação que só hoje é que podemos chamar a Bosch “um pintor holandês”, porque quando nasceu Jheronimus van Aken, nome de baptismo de Bosch, por volta de 1450 em 's-Hertogenbosch, esta cidade fazia parte do Ducado de Brabante, até ser integrada no império Habsburgo de Espanha, em consequência dos casamentos de Maximiliano I e do seu filho Filipe, o Belo, pai de Carlos V. E 's-Hertogenbosch, “‘o bosque do duque’ em holandês”, traduziu Pilar Silva, foi tão fundamental para construir a identidade do famoso pintor que Bosch passou a integrá-la na sua assinatura.
Toda esta espanholização de Bosch teria passado despercebida, se Bosch, a Exposição do V Centenário não estivesse a ser usada também para responder ao Projecto de Investigação e Conservação de Bosch, equipa internacional liderada pela Holanda que há seis anos estuda com as últimas tecnologias todo o trabalho do artista e que desclassificou três obras do Prado, As Tentações de Santo António Abade, a Extracção da Pedra da Loucura e a Mesa dos Pecados Capitais.
Centrado em 's-Hertogenbosch – que, apesar de ser a cidade de Bosch, não tem nenhuma das suas pinturas –, o Projecto Bosch conseguiu juntar todas as instituições relevantes que têm obras do pintor, incluindo o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, por causa do tríptico As Tentações de Santo Antão. É liderado por Matthijs Ilsink, historiador de arte do Noordbrabants Museum de 's-Hertogenbosch, que inaugurou em Fevereiro a exposição Jheronymus Bosch: Visões de Génio, encerrada mesmo antes de a mostra do Prado abrir.
Assim, se os holandeses têm “o Projecto”, os espanhóis têm “a exposição do quinto centenário”. Na apresentação aos jornalistas, logo relatada pelo PÚBLICO no final de Maio, Miguel Falomir disse que não se tratava de defender com “capa e espada” os Bosch do Prado, mas que o museu mantinha a autoria das pinturas postas em causa, porque não ficou convencido com os argumentos apresentados para as três “desatribuições”. O Prado levou décadas a preparar a exposição, argumentou, o museu foi pioneiro nos estudos de Bosch e não se apresentou um qualquer improviso: antes fez um catálogo com 400 páginas. Na introdução da obra, Miguel Zugaza, o director do museu, começa por dizer que esta é a primeira monográfica que Espanha dedica a Bosch e que neste quinto centenário “o Prado orgulha-se de ser o palco do mais ambicioso de todos os projectos”.
Esta é, afinal, “a casa de Bosch”, escreve Pilar Silva no catálogo. E trata-se de uma exposição “irrepetível”, porque “o Prado não empresta os seus grandes trípticos”, como o Jardim das Delícias Terrenas, e “é dificílimo que As Tentações de Santo Antão voltem a sair de Lisboa”. Já não o faziam há 24 anos. E, como disse a comissária, só não se podem ver em Madrid três das obras que Bosch pintou: o Juízo Final de Viena, que nunca é emprestado, a Crucifixação de Bruxelas e o tríptico dos Santos Ermitas de Veneza. Têm obras de 30 instituições, de dez países diferentes, e um dos Leitmotive da exposição é que Bosch é mais do que demónios, mais do que pássaros com cabeças de funil e sapos com asas de borboleta e cornos, mais do que um bricabraque de tentações e pecados.
Dois ateliers em vez de um
Guerras à parte, o historiador de arte Joaquim Caetano, que escreve a entrada do tríptico de Lisboa no catálogo, achou o melhor possível da exposição de Madrid. “Das obras importantes veio tudo. A maior lacuna é o Juízo Final de Viena.” Da investigação feita até agora destacou a proposta de Pilar Silva de que deve ter havido dois ateliers Bosch em 's-Hertogenbosch durante a vida do pintor. Um pertencia à família, que já ia na quarta geração de pintores, e outro ao próprio Bosch, instalado na casa que a mulher, Aleid van de Meervenne, comprou no lado norte da Praça do Mercado. “Haver dois ateliers e não um é muito importante. O caminho de Bosch parece ser mais solitário do que se pensava.”
É pela cidade e a relação do pintor com ela que a exposição começa. Anthonius van Aken, o pai de Bosch, comprou uma casa na Praça do Mercado em 1462, onde fez o seu atelier. Vemos a cidade através de um quadro de um artista flamengo desconhecido pintado 14 anos depois de Bosch morrer. O pintor, e provavelmente os seus irmãos, devem ter recebido treino no atelier do pai, embora nada tenha ficado identificado como produção pictórica de outros membros da família. Até aqui, os investigadores têm defendido que quando o pai morreu, em 1478, os irmãos partilharam o atelier, de que Goessen, o filho mais velho, se tornou o dono em 1481, ao comprar as partes dos irmãos. “Embora não haja prova documental, parece muito provável que Bosch tenha aberto o seu próprio atelier na casa que partilhava com Aleid”, escreve Pilar Silva no catálogo. “Sabemos com todo a certeza que, depois da morte de Goessen, a sua viúva, Katharina, continuou a trabalhar aí, o que seria virtualmente impossível se Bosch continuasse a trabalhar na oficina.” Um documento de 1499/1500 prova que foi feito “um pagamento à mulher do pintor Goessen por uma pintura policromada de Santa Bárbara”.
A nova casa-oficina de Bosch era já numa parte mais próspera da Praça do Mercado e a cidade, como não tinha uma guilda de pintores, deixou-o desenvolver a sua criatividade e génio. Se há muitos buracos na biografia de Bosch, ainda há proporcionalmente menos documentação sobre a sua vida como pintor. O documento mais importante que sobreviveu diz respeito à encomenda de Filipe, o Belo, datada de Setembro de 1504, de uma obra que não foi terminada ou que não sobreviveu. A encomenda de um Juízo Final deve ter sido feita quando Filipe I estava na cidade, na companhia da sua mulher, Joana de Castela. Foi aqui, aliás, que os dois tiveram notícia da morte de Isabel de Castela e que Joana soube que subiria, portanto, ao trono de Espanha.
Como não há, então, documentação para datar as obras de Bosch e ele também não as datou, é preciso que sejam as próprias obras a falar. Desde 2004 que o tríptico Adoração dos Magos funciona “como uma pedra de Roseta”, nas palavras de Miguel Falomir: “Porque podemos datá-lo mais precisamente e é o trabalho mais bem preservado.” Nessa data, foram identificados os doadores dos painéis laterais, através do brazão de armas, que são Peter Scheyfve e Agneese de Gramme, recuando a produção do tríptico para 1494.
Guerras à parte, Pilar Silva escreve no catálogo que “os detalhados dados técnicos recolhidos durante a ocasião do quinto centenário, usando os equipamentos mais avançados, acrescentaram um conhecimento considerável sobre a forma como Bosch trabalhava”, reconhecendo depois, em nota de rodapé, que “isto é verdade” para todo o material técnico recolhido pelo Projecto Bosch.
Todas as descobertas em redor da Adoração dos Magos – “Agora por sorte temos este ponto fixo” – “adiantam a cronologia em quase uma década”. Como o Jardim das Delícias também é semelhante em termos técnicos, as duas pinturas produzidas antes de 1500 “são agora a base para definir o estilo de pintar de Bosch”. No outro extremo, está o Carro de Feno do Prado, pintado entre 1512-15.
Apesar de a organização da exposição ter optado por ser temática em vez de cronológica, a Adoração dos Magos, uma das pinturas iniciais, é um dos primeiros trípticos a aparecer em todo o seu esplendor depois do restauro. No Prado, se “não morrerem de êxito”, brincou a comissária, os visitantes terão condições únicas para ver os trípticos, uma vez que pelo menos no museu de Madrid não é possível normalmente vê-los da parte detrás.
Depois da Adoração dos Magos, há outros dois momentos principais, desta vez à volta do tríptico de Lisboa e do Carro de Feno, sendo todos as outras obras subalternas nesta montagem bastante conseguida, antes da apoteose organizada em volta do Jardim das Delícias Terrenas, considerada a obra-prima das obras-primas. O que é impressionante também é a quantidade de quadros que foram restaurados em 2016 – mais de uma dezena –, o que empresta um brilho especial à exposição.
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Um pioneiro
A pintura flamenga mudou bastante durante o século XVI e Bosch teve papel pioneiro nessas alterações. Os pintores começaram a usar menos camadas de cor e estas tornaram-se cada vez mais finas, dando origem a uma pintura com mais transparência. A propósito da Adoração dos Magos, Pilar explicou que Bosch usa uma só camada de cor e deixa que o desenho subjacente, que está por baixo, aflore à superfície e contribua para o efeito geral da pintura. Uma inovação técnica que permitiu reduzir custos e produzir mais, uma vez que as pinturas, com menos tinta, secavam mais depressa.
A técnica obriga a constantes ajustamentos entre a fase de desenho e a de pintura. Bosch, escreve Pilar, fazia acertos na superfície pictórica, como se pode ver, profusamente, no Jardim das Delícias e nas Tentações de Lisboa. Nestas pinturas, “acrescentava continuamente novas ideias, transformando radicalmente a composição entre a fase do desenho subjacente e a pintura colorida final da superfície pictórica”. Ao trabalhar a superfície pictórica, usa também empastes quando precisa, para realçar, por exemplo, um pormenor de luz. Utiliza o pincel como se estivesse a desenhar, salientou Pilar: “Dele disse-se que desenha como um pintor e pinta como um desenhador.”
Quanto ao desenho subjacente, antes de se falar de que existem várias mãos, e chegar mesmo a mudar a atribuição de uma pintura, é possível pensar, na opinião de Pilar Silva, que Bosch levava o seu tempo e terminava por fases, como se vê nos desenhos originais que sobreviveram e de que há vários na exposição – um deles é o famoso Homem-Árvore, do Museu Albertina de Viena, um tema iconográfico que também aparece no Jardim das Delícias.
Joaquim Caetano, curador de pintura do Museu de Arte Antiga, explicou ao PÚBLICO que a diferença entre o Projecto Bosch – que além dos estudos técnicos ainda produziu um catalogue raisonné – e a exposição de Madrid é de ponto de vista. “O holandês arranjou um pequeno grupo de investigadores e submeteu as pinturas a uma quadrícula. Usava sempre a mesma máquina, as mesmas condições de luz, o mesmo tipo de descrição. Uma ficha com as mesmas perguntas. Depois têm os consultores, mas nenhum parece ter sido chamado para discutir os resultados produzidos até agora.” Em contrapartida, “o catálogo do Prado aponta para um texto grande da comissária, alguns textos de discussão”, além das fichas das obras, e nem todos têm de estar de acordo. “Os materiais produzidos até agora pelo grupo holandês têm um ar um pouco mais monolítico e nem sempre fazem o historial da discussão. Preocupam-se muito em apresentar os resultados do seu inquérito.”
Caetano defendeu que agora vai ser necessário tempo, porque, “depois de as equipas estremecerem e reagirem, é que a investigação vai estabilizar”. Também há novas atribuições a Bosch feitas pelo projecto holandês, nomeadamente As Tentações de Santo António do museu de Kansas City e o Juízo Final de Bruges. Mas, quer num caso, quer noutro, “apesar de ter criado a noção de choque e grandes descobertas, estes grandes projectos institucionais têm de ter um certo cuidado e acabam por não questionar demasiado, sobretudo painéis que estão em museus de referência”.
Uma das questões que o deixam com dúvidas é por que razão o Bosch do início, o tal da Adoração dos Magos, “tem grande qualidade e complexidade” e “há outras versões do mesmo tema”, também considerados Bosch (e oficina?), como a Adoração de Filadélfia, que “são extremamente simplificadas e até têm mudanças iconográficas significativas, como a representação do negro”. O caminho não é linear. “A explicação possível é que tinha obras diferenciadas conforme os clientes: Bosch pintava mais ou menos sozinho nas grandes empreitadas, enquanto as outras eram feitas também com os colaboradores.”
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Outra constatação importante é que as grandes obras, como o Jardim das Delícias Terrenas, foram encomendadas por gente que gravitava à volta do imperador Maximiliano I, explicou Caetano. “Foi possível cruzar isto com uma série de estadias que se passam na terra dele. Conseguiu-se definir que 's-Hertogenbosch, não sendo uma capital, é um local relevante nestes tempos conturbados em que a Flandres e o Ducado de Barbante entram no império… Bosch é um pintor de uma terra, fora dos grandes centros, mas a sua clientela não é local. Há uma clientela à procura de um pintor, o que vem ao encontro de uma pergunta de Pilar Silva – porque é que algumas obras são assinadas e outras não?” Só nove é que estão assinadas com “Jheronimus Bosch” e entre essas não consta o Jardim das Delícias, a obra-prima que terá sido encomendada por Engelbert de Nassau, uma das figuras próximas de Maximiliano I e depois de Filipe I.
Este momento especial de 's-Hertogenbosch, afirmou o historiador português, “cria um pintor muito especial, que não tem de fazer o que os outros fazem”. “O Jardim das Delícias é alguém a pensar naquilo em que a pintura geralmente não pensa. Fazer uma pintura sobre o que não aconteceu. Como é que o mundo podia ter sido sem a Queda?” Se olharmos para a sequência Jardim, Tentações e Carro de Feno, “é uma sucessão de uma interrogação continuada do autor, com a liberdade para aprofundar dúvidas sobre o que se atinge com a Salvação”. Parece que está a pintar para ele próprio, explicou Caetano, “coisa que obviamente não existe”.
Quando Pilar Silva apresentou o “absolutamente maravilhoso” tríptico de Lisboa, disse que As Tentações de Santo Antão mostram “uma mente de pré-Reforma”. Caetano citou, tal como a comissária espanhola, a “devotio moderna”, uma nova forma de religiosidade. “O nosso tríptico é a chave da questão: porque é que o Bosch pinta com aquela verborreia imagética o dark side?”
As Tentações anteriores mostravam o modelo iconográfico clássico: o mundo é um local sem grande salvação e para a alcançarmos precisamos de isolamento como Santo Antão (Santo António Abade para os espanhóis). “Mas aqui Bosch teve a iluminação de utilizar a parte exterior do tríptico, até aí ocupada com santos e doadores, com duas cenas que iconograficamente são mais importantes do que aquilo que figura no interior: A Prisão de Cristo e Cristo a Caminho do Calvário.” Na Prisão de Cristo, está S. Pedro a cortar a orelha de Malco. É S. Pedro a reagir à prisão e Cristo a dizer-lhe que não reaja, porque é preciso o sofrimento da Paixão. Na segunda aba, temos Cristo a caminho do calvário, no episódio da Verónica, e à volta toda a população, incluindo crianças, a achincalhar Cristo. “Quando se abre o tríptico, em vez do Cristo tem-se o Santo Antão. Em vez do mundo, temos os demónios, o Santo tal como Cristo. Quando já estava quase tudo pintado, Bosch substituiu a tenda dos diabos, que estava no centro e se vê no desenho subjacente, por uma capela com Cristo a apontar para o calvário. E o Santo aponta para Cristo. É necessário para quem quer a salvação percorrer este caminho. Esta ideia é incrível, o caminho da salvação é espelhado no caminho de Cristo.” É preciso o sofrimento, a salvação não se obtém sem uma vida regrada.
Bosch representa o mal, mostra homens maus com caras feias que batem em Cristo. “Traz os monstros híbridos para a parte central da pintura numa altura em que estavam a desaparecer com o Renascimento. Estavam no mundo da marginália, nos cachorros a sustentar os telhados das igrejas, debaixo das cadeiras dos coros de madeira no interior ou nas margens das iluminuras. O fascínio é a centralidade que dá ao demónio. Criar a ideia que o caminho da perfeição é um caminho estreito numa paisagem dominada pelo demónio. O demoníaco é uma ideia de paisagem que está à nossa volta. A salvação e a beleza são um caminho estreito."
O que Joaquim Caetano lamenta é que nenhum destes projectos, o espanhol e o holandês, reflicta profundamente sobre o atelier de Bosch e a forma como funcionava. “A não ser que o Bosch tinha um atelier à parte do irmão”, como defende Pilar Silva, a proposta inovadora já referida. “E que, quando morre, a consequência é a extinção do atelier.” Pilar Silva discorda do projecto holandês e diz no catálogo que já não se deve falar de pintura de Bosch e do seu atelier depois de 1516, “a não ser que o mestre se tivesse levantado do túmulo para a realizar”. Nesse caso, escreve, devemos aderir à regra geral para outros pintores e falar de alunos de Bosch.
Bosch, mostram os documentos da irmandade a que pertenceu, teve assistentes, mais uma das provas que Madrid usa para falar da existência de um atelier independente da família.
Pilar Silva e Joaquim Caetano concordam que houve muito mais Bosch para copiar do que aqueles que hoje existem. “Quem copiou o Bosch do Museu de São Paulo (a versão brasileira das Tentações de Santo Antão) estava na posse de outros modelos que foram abandonados no Bosch de Lisboa. O Bosch de Lisboa é aquele em que há mais mudanças e há coisas que ensaiou, que estão escondidas aqui no desenho subjacente e que depois reaparecem na pintura final de São Paulo. A cena da adoração do bezerro de ouro, que é desenho subjacente em Lisboa e depois foi eliminado, aparece também como pintura na Adoração dos Magos de Filadélfia, desenhada nas vestes do Mago negro.” No caso das pinturas dos museus de São Paulo e Filadélfia, são ambas posteriores à versão de Lisboa, porque as madeiras dos suportes onde são pintadas as obras foaram cortadas em datas mais tardias, como mostram os teste de dendocronolgia.
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Perderam-se tantos trabalhos de Bosch, escreve Pilar no catálogo, “que por vezes é difícil estabelecer se as pinturas que sobreviveram são originais – a não ser que haja provas de alterações durante o processo de pintura, como, por exemplo, na Extracção da Pedra da Loucura – ou simplesmente réplicas de originais perdidos, produzidos pelo mestre, ou cópias feitas por alguém na oficina durante a vida do pintor, ou por um aluno, colaborador ou seguidor depois da sua morte”. Ao mesmo tempo que fala do atelier, Pilar Silva está também a defender uma das pinturas cuja autoria de Bosch foi posta em causa, a famosa Extracção da Pedra da Loucura.
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De ambos os lados, repetiu Caetano, há mais raciocínios à volta das atribuições do que uma reflexão sobre o modelo de trabalho do atelier. “São dez artistas da mesma família e quatro gerações de pintores. Saem 1300 páginas em que a relação autoral é pensada principalmente em relação a um único pintor. Os outros continuam na sombra e não vieram à luz com estes grandes projectos.”
Parece que ninguém quer perder os seus Bosch, afirmou o historiador de arte português, e todos querem ganhar mais algum. Apesar de o tríptico do Juízo Final, de Bruges, ter sido atribuído a Bosch e ter ganho com o restauro, mesmo assim ainda há uma diferença de qualidade: “O painel central, quando comparado com o nosso, não só é mais plano, como tem uma composição mais linear. São quase bandas sobrepostas de cenas diabólicas que vão de um lado ao outro do quadro. O nosso painel central, a maneira como se povoa, está cheio de diagonais e profundidade.”
Durante a apresentação à imprensa, Alejandro Vergara, conservador-chefe do Departamento de Pintura Famenga e das Escolas do Norte, que Pilar Silva chefia, deu ao PÚBLICO uma resposta tranquila sobre as três "desatribuições" das pinturas do Prado feitas pelo Projecto Bosch: “A nossa curadora diz que elas são de Bosch. Dito isto, a polémica não é assim tão importante, porque sempre houve dúvidas sobre alguns trabalhos de Bosch. No século XVI, Filipe de Guevara – o livro que está na primeira sala é dele – já falava de as pessoas fazerem falsos de Bosch.”
O Prado diz que também fez os seus estudos técnicos para o quinto centenário, mas depois da apresentação o assunto foi considerado encerrado e não são dados mais esclarecimentos, nem dito por que razão foram necessários mais exames além dos feitos pelos holandeses.
Se o museu rejeita as conclusões do Projecto Bosch em relação às desclassificações das suas pinturas, concorda, reconheceu o curador-chefe ao PÚBLICO, com as duas novas atribuições mais importantes propostas pela mesma equipa. “O argumento de Pilar é que Bosch tem várias linguagens e que algumas destas linguagens estão aí presentes. Infelizmente, em relação a Bosch, não temos simplesmente informação suficiente. Eu percebo que seja notícia para manchete [as desclassificações], mas numa perspectiva histórica não é assim tão importante.” Se olharmos para a exposição, observa Alejandro Vergara, “não é só um problema daquelas obras. Parece incrível que tudo seja o trabalho de um só pintor”. Alguns estudiosos, acrescenta, pensam que o Bosch principal são duas pessoas: “O Jardim das Delícias Terrenas é tão diferente de tudo o resto… Podemos fazer grupos de pinturas, se quisermos. Talvez Bosch fosse alguém que tem muitos estilos, nunca saberemos.” Ao PÚBLICO aponta a Adoração dos Magos para dizer que esta bonita pintura, num estado de conservação invejável, “não é muito típica de Bosch”. Mesmo a pintura do Metropolitan de Nova Iorque, outra Adoração, com aquela cortina no topo, “é muito estanha”. “Temos de aceitar isso, tentar fazer história da cultura e a sua poética particular, mais do que nos preocupar-nos com as atribuições. A minha especialidade é Rubens e o século XVII, em que temos dois milhares de pinturas de Rubens, e as pessoas estão sempre a discutir a mesma coisa.”
O director com a responsabilidade da investigação, Miguel Falomir, disse ao PÚBLICO que não espera que todos estes desacordos acabem num consenso nos próximos anos. Tal como Vergara pensa que este tipo de questões vai durar tanto quanto a história de arte. “O que penso, e estou completamente convencido disso, é que a exposição vai ser extremamente útil para clarificar alguns assuntos à volta de Bosch, a sua cronologia, etc. É a primeira vez, e provavelmente a última em muitas décadas, que vamos ter a oportunidade de ver todas estas pinturas juntas.”
Interrogado pelo PÚBLICO sobre se toda esta polémica vai afectar no futuro as colaborações internacionais, no sentido de restringir o acesso às pinturas para fazer estudos técnicos, Falomir rejeitou, imediatamente, a ideia. “Isto já aconteceu e, como disse antes, com quase todos os pintores. Sempre tivemos pessoas a estudar as nossas pinturas.”
O problema com a técnica, e com todos estes documentos científicos, afirmou o director, é que permite desqualificar uma pintura – tem-se uma prova de que esta pintura pode ter sido feita antes de 1500, porque a dendocronologia ou os pigmentos o dizem, etc. –, mas não nos revela quem é o autor da pintura. “Os estudos técnicos podem dizer que esta pintura foi feita em Bruges, em Antuérpia, à volta de 1500, mas não dizem que foi feita por Bosch, pelo seu vizinho, que era também um pintor, que tinha a mesma aprendizagem que Bosch. No fim, é preciso olhar para a pintura e ver o que conseguimos ver na superfície.”
Sobre a aparente contradição de aceitarem as novas atribuições em relação a outros museus Miguel Falomir declarou que o Prado nunca defendeu que os holandeses “estão absolutamente errados”, mas que é preciso “sermos mais humildes quando lidamos com pinturas”. “Quando se trata de vender uma exposição, sei que precisamos de publicidade e não há melhor forma de atrair a atenção da imprensa do que dizer que esta pintura é de um grande nome ou não é de um grande nome. Essa foi a estratégia que o Projecto Bosch seguiu. Parece que funcionou, posso respeitar as conclusões deles, como fizemos, mas não tenho necessariamente que concordar com elas. E nós pensamos que eles não encontraram nenhuma prova contra as nossas atribuições.” Falomir sublinhou que os holandeses adoram situações como esta: “Lembro-me quando o projecto Rembrandt publicou as suas primeiras conclusões há 20 anos também havia polémica e desde aí já mudaram de opinião várias vezes com várias obras. Percebo que se tenha de vender o nosso projecto, mas sejamos mais humildes.”
Para mais, concluiu, ainda não tiveram acesso a toda a informação: “Era suposto termos, mas ainda não tivemos.”
O que Caetano notou com agrado é que as duas investigações não deram importância às interpretações que ligam o pintor a teorias alquímicas e heréticas. “Todas as maluquices associadas ao Bosch parecem ter ficado completamente ausentes. Há uma clara mudança de direcção em relação ao Bosch de há 30 ou 40 anos, em que tudo podia ser herético ou ligado a uma seita. Hoje há uma leitura contrária – ele é um católico convencional moldado pelo riso erasmiano e a devotio moderna. O mundo é um lugar mau e temos de ter os olhos postos em Cristo. Houve um esforço muito grande para estudar repetidamente Bosch. As coisas que estão em cima da mesa são claramente do domínio da ciência sobre um pintor sobre o qual todos começámos por ter ideias estapafúrdias. A começar por pensarmos no que é que ele teria tomado...”
O Público viajou a convite do Turismo de Espanha