"Este é um debate sobre a globalização. Os que ganharam com ela querem ficar"

Damian Chalmers diz que a campanha para o referendo expôs fracturas criadas pela globalização. O professor de direito europeu avisa que se o "Brexit" vencer o país “fica numa posição negocial muito fraca”.

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Campanah pela permanência em Londres; o "Brexit" centra-se na mensagem de que é preciso recuperar a soberania do Parlamento JUSTIN TALLIS/AFP

Professor da London School of Economics e investigador do think-tank The UK in a Changing Europe, Damian Chalmers explica que, contra todas as previsões, a imigração se sobrepôs à economia como o tema que vai decidir o resultado do referendo. Caso os eleitores votem pela saída, prevê que as negociações se arrastem durante anos, mas diz que Londres não pode esperar tanto tempo por um entendimento que lhe permita restringir a liberdade de circulação.

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Professor da London School of Economics e investigador do think-tank The UK in a Changing Europe, Damian Chalmers explica que, contra todas as previsões, a imigração se sobrepôs à economia como o tema que vai decidir o resultado do referendo. Caso os eleitores votem pela saída, prevê que as negociações se arrastem durante anos, mas diz que Londres não pode esperar tanto tempo por um entendimento que lhe permita restringir a liberdade de circulação.

A União Europeia é uma instituição complexa. A campanha voltou a mostrar que é difícil explicá-la aos eleitores e que o debate emocional relegou para segundo plano os argumentos racionais…
Sim, mas esse é um argumento que pode ser usado contra todas as eleições. A UE produz entre um quarto a um terço de tudo o que nos rege e a cada quatro ou cinco anos decidimos sobre quem gere os restantes três quartos. O nível do debate político nesta campanha é o pior a que já assisti, por vezes chega a ser escandaloso, tanto de uma parte como da outra. Mas em termos mais gerais, gerou um debate muito mais enérgico sobre a UE – temos pessoas a discutir a UE em todos os locais e, nos quatro a cinco meses que este debate já leva, as pessoas ficaram muito mais informadas. Mas não creio que as pessoas estejam a debater esta ou aquela lei.

O que fica claro, à medida que nos aproximamos do referendo, é que este é um debate sobre a globalização. Tão simples quanto isso. Os que ganharam com ela querem ficar, os que estão a perder querem sair. Basta olhar para as sondagens: se você tiver mais de 55 anos quer claramente sair; se tiver menos de 40 quer ficar. Se tem um diploma universitário quer ficar, se só tem o ensino básico defende a saída. Para os mais velhos, que perderam o trabalho aos 50 anos e ainda não chegaram à idade da reforma, não é fácil sair e procurar emprego noutro país. Eles vêem as comunidades onde vivem a mudar e não só por causa da imigração. Os jovens que estão mais vulneráveis à globalização, os trabalhadores que não têm aumento de salário há dez ou 15 anos, são essas as pessoas que vão votar a favor da saída. Já em Londres, uma cidade cheia de gente nova, com estudos universitários, é claramente a região mais pró-europeia do país, com 80% das pessoas favoráveis à permanência. É uma clivagem que divide o país ao meio e esse debate vai continuar, quer fiquemos quer saiamos.

Uma questão que era inicialmente muito importante para os partidários da saída prendia-se com a necessidade de restaurar a soberania do Parlamento. Qual é a origem deste debate e por que é que é tão importante?
A questão arrasta-se praticamente desde a adesão à CEE. No Reino Unido não temos uma Constituição escrita como em Portugal e para os britânicos o Parlamento ocupa esse lugar. Para muitas pessoas sempre foi questionável estarmos numa instituição na qual o peso do Reino Unido é de apenas 9%, muito dominada pelos burocratas, cujas leis têm precedência sobre as leis do Parlamento. Mas este era um debate ao nível académico. O que a campanha a favor da saída fez, e foi bastante inteligente, foi escolher como slogan a frase: Take back control [Recupera o controlo]. A mensagem que querem passar é não só a de que é preciso reconquistar a supremacia do Parlamento, mas também reassumir o controlo das fronteiras para poder restringir a imigração. Juntaram-nas em torno desta ideia forte que é a palavra “Controlo”. Veremos se estão certos, se a saída permitirá controlar a imigração.

O debate sobre a imigração sobrepôs-se a todos os outros…
Sim, para quem quer sair, a imigração é claramente o tema mais importante. Para quem defende a permanência a economia é a principal preocupação. Os dois temas dominaram completamente o debate. Até há duas ou três semanas, o consenso era o de que as pessoas iriam votar [a pensar] com a carteira, de que seria a economia a moldar o debate. O que surpreendeu muita gente é que isso acabou por não acontecer. O debate sobre a imigração tem vindo a ganhar força nas sondagens. Em meu entender, isso não tem a ver com o facto de o argumento ter sido bem ou mal apresentado. Tem a ver com a globalização. A maioria dos britânicos não acredita nas previsões económicas que lhes foram apresentadas. É impressionante que apenas um quarto dos eleitores achem que a saída terá um efeito negativo na economia. Quando olhamos para o leque de previsões – nove em cada dez economistas acha que o efeito da saída será mau ou muito mau – isto é muito impressionante. O Governo não conseguiu apresentar de forma eficaz o seu argumento económico.

Outra coisa interessante é que o acordo que Cameron conseguiu [com os parceiros europeus], que se esperava ter um efeito positivo nas sondagens, acabou por ter o efeito contrário. Houve um aumento de 4% nas intenções de voto a favor da saída após o acordo. A razão para isso foi que ele nos prometeu “algo impressionante”, que nem ele próprio sabia exactamente o quê. Quem acompanha a política europeia sabe que há outros 27 Estados-membros e que era claro que ele não iria conseguir mais do que conseguiu. A imagem que passou foi que ele não conseguiu nada e isso foi um falhanço político.

O travão de emergência [que permite a Londres suspender a atribuição de prestações sociais aos imigrantes europeus] é difícil de explicar aos eleitores…
Não, creio que a ideia ficou clara para os eleitores – os cidadãos da EU não vão receber apoios nos quatro primeiros anos…

Mas a aplicação será faseada…
Sim, faseada e quando começar a ser aplicada haverá isenções. Mas em termos gerais creio que esta é uma iniciativa política popular, os eleitores percebem que vai poupar dinheiro ao Estado. Mas a maioria dos estudos mostra que não terá efeitos na imigração e os factos indicam que para a população, e não apenas a do Reino Unido, aquilo que pesa são as mudanças a que estão a assistir nas suas comunidades – o acesso à habitação piorou, as crianças não conseguem lugar nas escolas, este tipo de percepções.

O que muita gente diz é que estamos perante uma tempestade perfeita. Muitas destas coisas [a dificuldade em arrendar casa, a sobrelotação das escolas] já aconteciam e a imigração teve pouco impacto. É uma situação que resulta da crise das dívidas soberanas e dos cortes na despesa pública. Mas o sentimento no terreno é que há uma escassez de oferta e que os britânicos estão a ser prejudicados [pelos imigrantes]. E este sentimento é uma das coisas que está a fazer aumentar as intenções de voto na saída.

Muitas vezes também se diz que o Reino Unido atravessou a crise mais depressa do que outros países e em termos de emprego e isso é verdade – nunca tivemos uma taxa de desemprego muito alta – mas o emprego ganho é de baixos salários. Os salários não têm subido desde 2009 e muita gente empregada não tem dinheiro para viver e tem de recorrer à solidariedade. E esse sentimento de quem trabalha no duro e não tem perspectivas de melhoria tem sido central na política britânica dos últimos anos.

No caso de vitória do “Brexit” prevê-se que o país demore vários anos até conseguir sair da UE. Quais serão os maiores desafios do Governo?
Sim, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, falou num prazo de sete anos. Em termos legais será muito difícil que as negociações possam durar todo esse tempo, porque o artigo 50 [do Tratado de Lisboa] estipula um prazo de dois anos e, se isso não acontecer, vai haver problemas. Cameron prometeu que na segunda-feira a seguir à saída vai accionar o processo. A campanha pela saída diz que nem pensar, mas quer que o Reino Unido saia antes [das legislativas] de Maio de 2020.

O que irá acontecer? Posso dizer-lhe o que acho que deveria acontecer, mas também o que acho que é provável que venha a acontecer. O Reino Unido está numa posição negocial muito fraca em relação aos outros Estados, vai ser muito difícil concluir as negociações antes de 2020, muito por causa das eleições em França e Alemanha e a situação em França é particularmente desafiante por causa da popularidade de Marine Le Pen. E não é provável que os outros Estados aceitem a estratégia negocial britânica e digam que não apresentam propostas a Londres até que Londres inicie as negociações. Isto para dizer que será muito difícil adiar o início do processo. Mas também vai haver muita turbulência política – é previsível que tenhamos um novo primeiro-ministro se o “Brexit” vencer – e não acredito que alguma coisa aconteça antes de Setembro.

Só em Setembro é que Londres vai formalizar a decisão de sair?
Sim, creio que só em Setembro. É claro que tudo depende do que acontecer com David Cameron. Se ele se mantiver no cargo, é provável que aconteça mais cedo. Se sair, acho que acontecerá em Setembro, embora a campanha pela saída tenha dito que a sua intenção era avançar apenas no início do próximo ano.

Depois temos dois anos para negociar. O problema é que se a saída acontecer sem um acordo [com os outros 27] toda a gente vai perder, mas o Reino Unido perde mais do que os outros. E por isso, o seu poder negocial diminui a cada dia que passa. Se eu estivesse na posição dos outros países, como Portugal, não faria qualquer negociação nos primeiros 18 meses. Para o Reino Unido, será também muito difícil conseguir acordos comerciais com países terceiros.

Será um período muito difícil e é preciso não esquecer que a imigração foi o principal tema da campanha pela saída. Até agora tem dito que os europeus que residem no país podem ficar, mas vai levantar-se a questão dos benefícios a que têm agora acesso, a situação dos familiares. E os outros Estados podem adoptar uma posição muito dura quando confrontados com as restrições que foram adoptadas por Londres. As negociações não serão fáceis. Isto é o que eu acredito que pode acontecer. Será muito mau para o Reino Unido, mas também será mau para o resto da UE.

Qual é a alternativa?
A minha preferência, e quase podemos adivinhar que é isso que Tusk está a pensar, seria a negociação de um acordo transitório, que vigorasse por cinco anos, em que nas áreas que são mais sensíveis para os britânicos – a imigração ou as pescas, por exemplo – chegaríamos a um special arrangment. Tudo o resto manter-se-ia em vigor, com excepção daquelas áreas. Poderia ser uma forma de manter todos os países contentes durante pelo menos cinco anos. Algumas pessoas, como [o líder do UKIP] Nigel Farage dirão que isso não é suficiente, mas temos de lhe lembrar que, até agora, a campanha pelo “Brexit” diz que a saída não acontecerá antes de 2020 e de uma forma que não é a melhor. Se a opção for ter cinco anos em que vigora um acordo transitório, negociado ao abrigo do Artigo 50 e tendo em vista um acordo final em 2020 ou 2021, isso pode ser a melhor opção para toda a gente. Os outros Estados, mesmo os que têm uma visão muito crítica do Reino Unido, percebem que haverá forte turbulência se a saída acontecer sem um acordo.

As pescas e a imigração deveriam ser a prioridade?
Acho que, no caso de saída, o Reino Unido ficará numa situação em que lhe será impossível continuar a aceitar a livre circulação de pessoas. Esse é a principal razão que leva os eleitores a optar pela saída. Nenhum político conseguiria dizer que ele deveria continuar a vigorar.

E acha que dois anos bastam para se chegar a esse entendimento?
Nessa matéria terá de haver um acordo político, mas não é uma questão que necessite de grande negociação. O que é preciso é chegar a um entendimento que seja politicamente aceitável. A posição de todos os partidos é que os europeus que já estão no Reino Unido podem ficar. É óbvio que querem o mesmo para os britânicos que vivem nos outros Estados. Depois é preciso discutir que acesso vão ter aos direitos que gozam actualmente e também sobre o direito dos outros cidadãos europeus a viajar para o Reino Unido. Não digo que não seja uma discussão politicamente sensível, mas acredito que não sejam precisos dois anos para chegar a um acordo. Novos acordos para cada um dos sectores da economia vão demorar mais do que dois anos ou mesmo mais do que sete.     

A questão, para os outros Estados-membros, é que não podem aceitar nenhum acordo que partidos como a Frente Nacional, em França, possam usar para dizer: “votem em nós para sairmos da UE e conseguirmos um acordo como este”. Será muito difícil, mas tem de haver um acordo nessas áreas, se não é pouco provável que haja qualquer acordo.

O Reino Unido terá também de substituir toda a legislação europeia. Como se separam duas legislações que coexistem há mais de 40 anos?
Os serviços do Governo admitem que vai demorar dez anos a fazê-lo e não há uma solução fácil. Sem grande surpresa, os empresários dizem que aprovam a grande maioria das leis europeias e, de repente, até a campanha pela saída vem dizer que gosta das leis europeias do trabalho, que até há pouco tempo queria mudar. Tendo em conta que estão em causa 11 mil leis e o Parlamento britânico aprova em média 25 leis por ano, isso quer dizer que se este trabalho passar apenas pelos deputados vai demorar 50 anos [a concluí-lo] e por essa altura já a UE terá mudado as suas leis. Terão de ser criados mecanismos especiais que serão parte de um processo complicado.

A campanha pela saída diz que o processo vai ser difícil, mas a vantagem é que há a possibilidade de escolha. A minha opinião é que se o “Brexit” vencer, vamos continuar a aplicar a maior parte da lei europeia num futuro próximo.

Perguntas e Respostas: O como e o porquê de uma decisão histórica