Os riscos do híper-ativismo
A nova conceção da Presidência abre portas a derrapagens inquietantes…
Os cidadãos têm motivos de regozijo. A um presidente da República obtuso, cinzento e distante sucedeu outro capaz de fulgurância, entusiasmo e sociabilidade. O anterior era incapaz de se assumir como homem de Estado e ultrapassar clivagens políticas, de dar valor a quem reconhecidamente o tinha e não cair no enaltecimento de gente civicamente pouco recomendável. O atual é manifestamente mais aberto, culto e intuitivamente capaz de perceber o que é conforme a um Estado de direito democrático.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Os cidadãos têm motivos de regozijo. A um presidente da República obtuso, cinzento e distante sucedeu outro capaz de fulgurância, entusiasmo e sociabilidade. O anterior era incapaz de se assumir como homem de Estado e ultrapassar clivagens políticas, de dar valor a quem reconhecidamente o tinha e não cair no enaltecimento de gente civicamente pouco recomendável. O atual é manifestamente mais aberto, culto e intuitivamente capaz de perceber o que é conforme a um Estado de direito democrático.
Mas os cidadãos têm também motivos para se inquietarem. Porque há no comportamento do novo presidente duas opções constantes e preocupantes. Há antes do mais um ativismo em nada comparável à atitude dos seus quatro predecessores e que dá sinais de transbordar a área habitual, constitucional, da ação presidencial. Um ativismo que o leva a imiscuir-se notoriamente na área de ação governamental. O que só tem sido possível porque o governo é levado a fechar os olhos, sabendo que precisa de um aliado em Belém para contrapor à fragilidade original de acordos parlamentares que não ousaram traduzir-se em coligação ministerial. Com uma base de apoio mais sólida, não teria o governo reagido ao singular convite a Mario Draghi para participar numa reunião do Conselho de Estado e à não menos singular visita a Berlim para conversar com a chanceler alemã sobre a relação de Portugal com a União Europeia?
A outra opção inquietante é a da omnipresença quotidiana nos média, com telejornais a consagrarem uma, duas, três, quatro ou mais sequências ao dia do presidente e às suas declarações a propósito de tudo e de nada. Uma omnipresença que o próprio presidente manifestamente favorece e que o serviço de comunicação de Belém indubitavelmente promove. Quando o chefe de Estado num sistema constitucional não presidencialista deve saber preservar uma certa reserva, de modo a que a sua palavra e a sua ação possam ter o devido peso quando necessárias forem.
A atual banalização dos atos e da palavra do chefe de Estado não tem comparação alguma com a dos seus congéneres (presidentes ou monarcas) nos outros países da Europa ocidental. Olhe-se em redor, digamos de há cinquenta anos para cá : nem no sistema constitucional francês, que atribui poderes mais largos ao presidente do que no português [1], os média evocam todos os dias os seus atos ou declarações. E as televisões não pensariam um só instante consagrar diariamente uma série de sequências aos factos e gestos do presidente. Nem o grande Charles de Gaulle, no tempo em que dominava soberanamente o audiovisual francês, tinha direito a tal atitude de cega reverência…
Que se trate da República francesa ou da Monarquia belga, por exemplo, o chefe de Estado só intervém nos média nas grandes ocasiões: a festa nacional e o primeiro dia do ano. Excecionalmente, por ocasião de uma grave crise governamental ou de um referendo considerado decisivo para os destinos da nação. Embora, no caso francês, tenha havido algumas entrevistas excecionais dos sucessivos presidentes da República, sobretudo em televisão, desde os tempos de Valéry Giscard d’Estaing. Como houve algumas raríssimas emissões nas televisões belgas, mais ou menos hagiográfico-laudativas, sobre o atual monarca e os seus dois predecessores [2].
Ora, o híper-ativismo nomeadamente verbal do presidente português já começou por levantar um e outro problema que necessitaram ulteriores esclarecimentos dos serviços de Belém. Só que as derrapagens são consequência inevitável deste híper-ativismo potencialmente suscetível de provocar problemas maiores de natureza constitucional e de inconvenientes confrontos entre a presidência e o governo.
A omnipresença diária nos média é também de natureza a levar estes mesmos média a quererem saber mais sobre a “face oculta” do presidente e da presidência. A quererem ir para além da versão oficial da vida quotidiana do personagem, das suas relações familiares, sociais e afetivas, dos meandros do seu passado nomeadamente político. O que tem grandes probabilidades de lhe retirar a aura simbólica indispensável à magistratura suprema junto da opinião pública. Esvaziando desde logo muito seriamente, junto dos cidadãos, a sua capacidade de intervenção e decisão política, com autoridade e serenidade, desmonetizado que foi o seu titular ao longo dos meses por um híper-ativismo omnipresente…
[1] O presidente da República francesa preside nomeadamente o conselho de ministros semanal e representa a França nas reuniões de chefes de Estado e de governo da União Europeia, num caso como no outro sejam quais forem as maiorias parlamentares do momento.
[2] Sobre os efeitos da mediatização da monarquia belga: J.-M. Nobre-Correia, "L'«affaire Delphine»: l'inévitable rupture", in Le Soir, Bruxelas, 25 de outubro de 1999, p. 2.
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles