A condenação da memória
Se apagares, se eliminares, se não falares é porque não existiu, não aconteceu. Porque mesmo que saibas que é uma ilusão, com sorte um dia até acreditas no teu próprio truque.
Sempre que mudo de fotografia de perfil de facebook tenho sempre um ou outro reparo, por parte de almas mais atentas, sobre a necessidade de edição dos meus pés de galinha, rugas e temporalidades afins. Devias dar um retoque nas tuas fotos, dizem-me, para pareceres mais nova. E eu, como em muitas coisas na vida, fico a pensar. Que somos criaturas que temem a memória na proporção inversa ao fascínio que têm pela ilusão.
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Sempre que mudo de fotografia de perfil de facebook tenho sempre um ou outro reparo, por parte de almas mais atentas, sobre a necessidade de edição dos meus pés de galinha, rugas e temporalidades afins. Devias dar um retoque nas tuas fotos, dizem-me, para pareceres mais nova. E eu, como em muitas coisas na vida, fico a pensar. Que somos criaturas que temem a memória na proporção inversa ao fascínio que têm pela ilusão.
Lembro-me de ser miúda e suster a respiração quando o ilusionista serrava a assistente ao meio. É tudo a fingir, diziam-me os adultos. E eu sabia que sim, mas metade da piada era fingir que aquilo não era ilusão para a tornar possível, real. E cedo percebi que há mentiras que nos fazem tremendamente felizes. Parecermos dez anos mais novos numa fotografia, depois de a editarmos no Photoshop, é uma delas. Mas por cada linha, cada ruga que apagamos, há uma memória que vai atrás. Se apagares, não aconteceu.
O senado romano aplicava a damnatio memoriae, a condenação da memória, aos traidores e aos que tivessem desonrado Roma. Esta consistia na eliminação do passado dessa pessoa, como se ela nunca tivesse existido. A censura de Estaline ficou conhecida por apagar, de fotografias, o rosto de membros dissidentes do partido.
Vejo frequentemente coisas que só podem acontecer por serem consequência da não memória, como é o caso desta Europa que se esquece do que aconteceu na década de 30 do século XX. De uma Europa que se repete no extremos de direita, na xenofobia, na intolerância, na arrogância. Talvez porque não queira lembrar o que aconteceu a seguir. Talvez porque não convenha lembrar que a história frequentemente se repete.
Se apagares, se eliminares, se não falares é porque não existiu, não aconteceu. Porque mesmo que saibas que é uma ilusão, com sorte um dia até acreditas no teu próprio truque. Não, não te lembres, porque lembrar é um exorcismo tramado. Obriga-nos a analisar, a ver, a encarar erros. Sem memória estamos condenados a sermos apenas presente. Um ponto com uma única dimensão, sem hipóteses de futuro. Porque lembrar é existir. Sem truques.