O futuro da música portuguesa está a passar por aqui
São miúdos e miúdas, muitos deles com apenas 20 anos, outros com ainda menos. Têm bandas, projectos a solo, colectivos, promotoras e editoras independentes – e é com elas, e entre elas, que têm posto em efervescência, de Norte a Sul, uma nova música portuguesa.
30 de Janeiro, EKA Palace, Xabregas – e a música portuguesa que não pára de surpreender, que não pára de crescer. Primeira noite oficial da Xita Records, nova editora e promotora lisboeta. Há no ar um entusiasmo palpitante, uma certa energia primeva, contagiante. Miúdos e miúdas entre os 15 e os 19 anos mostram as suas canções e cantam, com tanta ou mais entrega, as dos outros. As dos colegas de turma e as dos convidados das famílias Cafetra e Maternidade: Éme, Lourenço Crespo, Luís Severo e Filipe Sambado, que apesar de terem apenas vinte e poucos anos (à excepção de Sambado, com 31), foram e são a escola destes miúdos.
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30 de Janeiro, EKA Palace, Xabregas – e a música portuguesa que não pára de surpreender, que não pára de crescer. Primeira noite oficial da Xita Records, nova editora e promotora lisboeta. Há no ar um entusiasmo palpitante, uma certa energia primeva, contagiante. Miúdos e miúdas entre os 15 e os 19 anos mostram as suas canções e cantam, com tanta ou mais entrega, as dos outros. As dos colegas de turma e as dos convidados das famílias Cafetra e Maternidade: Éme, Lourenço Crespo, Luís Severo e Filipe Sambado, que apesar de terem apenas vinte e poucos anos (à excepção de Sambado, com 31), foram e são a escola destes miúdos.
A história continua a ser mais ou menos a mesma passados quatro meses. 2 de Junho, Sabotage, Lisboa. Segundo capítulo da residência mensal da Xita no bar do Cais do Sodré. “Estou bué nervoso, hoje é mesmo especial por causa das Pega”, diz Manuel Lourenço, cabecilha da Xita, antes de entrar em palco como Primeira Dama, concerto que é seguido atentamente por membros da Maternidade e da Cafetra. Incluindo as Pega Monstro, que pouco depois provocam um pequeno alvoroço entre o público, com Maria Reis a triturar emoções na guitarra esgatanhada e em estrilho fuzz, em sintonia com a bateria totémica da cada vez mais arrebatadora Júlia Reis. Canta-se em coro, como também aconteceu antes, nos concertos de Primeira Dama e de Lucía Vives, outro elemento da Xita. Tal como no EKA Palace, há um espírito celebratório, um sentimento de comunidade.
Este sentido de união e de partilha tem crescido cada vez mais no circuito da música independente nacional. E isso deve-se em grande parte ao número considerável de promotoras, com uma actividade regular, que têm surgido nos últimos dois anos, criadas sobretudo por rapazes e raparigas na casa dos 20 (em alguns casos, sub-20). Um processo de agitação em curso que tem tido foco em Lisboa, graças à Maternidade, Xita Records, Puro Fun e Spring Toast Records – e às suas relações próximas com a Cafetra, mais experiente mas da mesma faixa etária, com modos de estar na vida e na música semelhantes –, mas que se estende ao resto do país, com a Pointlist, de Évora, a Favela Discos e a Gentle Records, do Porto, e a recém-nascida Macho Alfa, de Barcelos (mas não só).
Nada disto seria a mesma coisa se não houvesse uma ligação entre todos. Conhecem-se, vão aos concertos uns dos outros, tocam nas noites uns dos outros, apoiam-se uns aos outros (a maioria são músicos, os que não são têm outro tipo de relação full-time ou part-time com a música). Não há separatismos, não há hierarquias. Esta filosofia do-it-yourself de acção, diálogo e entreajuda tem dado músculo ao circuito português de música independente, e uma maior dimensão geográfica. Os promotores mais estabelecidos – nomes importantes como a Filho Único, a ZdB e a Lovers & Lollypops – também têm contribuído para a causa ao integrar nas suas programações músicos ligados a estes novos colectivos e ao organizar eventos com eles. “Because something is happening here”, agarrando as palavras de Bob Dylan.
Não ter medo
Em Lisboa, a Xita Records é a turma mais recente. Surgiram em 2015, mas foi no início deste ano que começaram a dar nas vistas, com concertos na ZdB, nas Damas, na Casa Independente ou no Sabotage, onde têm uma residência mensal.
São claros descendentes da Cafetra. Também começaram a fazer música em tenríssima idade e a pô-la cá fora pelas próprias mãos, com todas as ofensivas e doses de condescendência que isso implica (repescando o contra-ataque das Pega Monstro em Fetra, 2012, “Se isto não é música/ então faz tu uma canção/ e se eu desafino/ canta lá tu ó meu cabrão”). Também se influenciam uns aos outros, participam nos discos uns dos outros e vivem da mesma legitimação entre pares (filosofia que a Cafetra absorveu, por sua vez, da FlorCaveira, que pode ser considerada o prólogo desta história toda). E também cantam os amigos, a Lisboa que é deles, entre a “xitação” e o desencanto adolescentes (ouçamos Deixa Tar, de Lucía Vives, um pequeno hino à adolescência, à vida, a Lisboa).
Não se pode dizer que a Xita não existiria sem a Cafetra. Mas sem ela “não existiria assim, de certeza”, declara António Queiroz, 16 anos (de ØRTOS, Shads e Migas). “A Fetra ensinou-nos a não ter medo de tocar as nossas canções, de falar do que falamos e de lançar coisas”, explica. Lucía Vives, 16 anos, reforça: “Estava no nono ano e toda a gente falava da Fetra. Para a nossa geração a Fetra é mesmo especial. As Pega Monstro deram-me bué vontade de tocar”, conta a cantautora e também baterista das Ninaz, quarteto da Xita. “O Sar [Pedro Saraiva, Cafetra] foi o nosso grande mentor na fase inicial, sobretudo no que toca a dar concertos”, acrescenta Manuel Lourenço, o Primeira Dama.
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A relação quase umbilical com a Maternidade, promotora e agência de Rodrigo Soromenho Marques (Vaiapraia & As Rainhas do Baile), Filipe Sambado e Luís Severo (ex-Cão da Morte), entre outros, foi também essencial para adubar terreno para a Xita. De novo, o espírito de entreajuda, de incentivo. “A Maternidade puxou bué por nós. Eu e o António passámos quase dois anos a absorver tudo o que eles faziam e como faziam”, conta Manuel. “Com a Maternidade foi mais a parte de promoção e agenciamento, com a Fetra foram as edições e o espírito.” A ligação entre os três grupos é agora ainda mais forte: a Cafetra e a Xita partilham o mesmo estúdio na Interpress, com a Maternidade no andar de baixo.
Para Maria Reis, das Pega Monstro, hoje há de facto mais actividade e diálogo do que havia em 2011, ano do arranque oficial da Cafetra. “A comunicação está muito mais rápida entre os músicos, promotores e salas de espectáculos. Está tudo mais ligado”, considera. Reconhece o papel da Cafetra nesta narrativa, mas não se coloca – nem a ela nem aos colegas – num pedestal. “O que fizemos, de uma forma nada consciente, foi criar uma relação com os músicos, inclusive fora do nosso núcleo. Tal como eles agora, nós começámos para podermos partilhar a nossa música de uma forma honesta, nossa.”
Foi isso que levou Manuel Lourenço, 19 anos, a fazer canções a solo como Primeira Dama, o projecto mais sólido e promissor da Xita. A família do lado do pai (maestro assistente do Coro Gulbenkian e um dos fundadores dos Tetvocal) está ligada à música, e Manuel começou a estudá-la aos cinco anos. Aprendeu saxofone, consegue tocar John Coltrane de cor. Entretanto parou de estudar. Ficou chateado com a música. A crise existencial passou-lhe quando percebeu o que queria fazer: compor as suas próprias canções. O 25 de Abril do ano passado foi a sua pequena revolução. “Dei o meu primeiro concerto a solo numa sessão de poesia de Abril, a tocar músicas do José Mário Branco [o seu mais-que-tudo] e do Sérgio Godinho. Primeira Dama começou aí”, recorda Manuel, que é também militante do Bloco de Esquerda.
Histórias Por Contar, o disco de estreia lançado em Abril, tem claras ressonâncias da música popular portuguesa dos anos 70, entrelaçada com linhas pop e r&b em canções ao teclado sobre amores e desamores (Cantiga de Sala é um namoro fascinante e imprevisível entre José Mário Branco e Britney Spears). E depois há a voz admirável de Manuel – Vitorino em trejeitos r&b, entre o reluzir e o obnubilar – que ganha ainda mais dimensão ao vivo, solta do nevoeiro que percorre o disco. Mas também há os amigos. “O cruzamento da minha aprendizagem pop com o Luís Severo, o Filipe Sambado [que produziu o disco] e o Lourenço Crespo com a minha forma de cantar, vinda também dos ensinamentos do meu pai e do jazz, acaba por soar assim.”
Rampa de lançamento
A ideia de comunidade está na essência da Maternidade, nascida oficialmente em finais de 2014. “Eu, o Van Ayres [Rafael Ayres, que tem editado pela Cafetra] e o Sambado falávamos muito na necessidade de haver uma espécie de ligação, no sentido de unir as várias fendas que existiam entre as pessoas”, diz Rodrigo Soromenho Marques, 21 anos, vocalista e letrista de Vaiapraia & As Rainhas do Baile e representante desta promotora e agência, juntamente com Filipe Sambado, Luís Severo, Raquel Serra, Rita Romeiras, Sara Alvarrão, Beatriz Diniz (April Marmara) e os Mighty Sands, quinteto de surf e garage rock que, também por estímulo da Maternidade, formaram a promotora/ editora aliada Spring Toast Records, por onde saiu o novo disco de Filipe Sambado, Vida Salgada, e por onde irá sair o álbum de Vaiapraia & As Rainhas do Baile, no final do Verão.
“Na altura havia pequenas orfandades. Acho que isso se nota muito menos hoje porque mais promotoras foram aparecendo e foram começando a abrir espaço para mais artistas”, considera Filipe Sambado. A Cafetra acabou também por funcionar como uma referência para a Maternidade. “Eu já seguia pequenas editoras e promotoras online que se regiam pelos mesmos princípios e tinha alguma noção do que se tinha passado antes em Portugal, com a Bee Keeper nos anos 90, mas foi importante ter a Cafetra como exemplo de algo que está a acontecer ao teu lado”, nota Rodrigo. “A própria Cafetra dizia ‘façam mais coisas, criem mais colectivos’”, refere Sambado, lembrando também o vínculo da Maternidade com a Gentle Records, do Porto, que, entre concertos com músicos dos dois lados e lançamento de singles online, editou o último e soberbo disco de Luís Severo, Cara D’Anjo.
Além de trazerem algumas bandas internacionais fora do circuito mainstream, no último ano e meio a Maternidade tem-nos dado a conhecer uma série de jovens músicos de quarto, e merece uma vénia por isso. Tem criado oportunidades, servido como rampa de lançamento, desbravado caminho para outros. “O nosso grande objectivo é que as pessoas com quem trabalhamos consigam tocar mais e que outras comecem a tocar e a fazer música”, diz Rodrigo. “Criar pequenas torres de possibilidades”, acrescenta Sambado.
Uma filosofia de inclusão e representação que fica fortalecida com a tentativa de quebrar com construções normativas de género e sexualidade, em particular no milieu do rock (tomemos como exemplos Vaiapraia e Filipe Sambado), e com um claro activismo feminista. As noites da Maternidade têm sempre raparigas a tocar, contrariando assim a secundarização das mulheres nos alinhamentos dos concertos – porque o que está no meio das pernas dos rapazes ainda é um bilhete para passar à frente na fila –, bem como o preconceito, decorrente do machismo e paternalismo institucionalizados, de que mulheres a fazer música é algo fora do normal. Objectivos em sintonia com o projecto das Damas, espaço na Graça onde a Maternidade tem uma residência mensal e onde se aposta numa programação plural, o que incluiu também o combate à falta de representação e objectificação das mulheres na música, e na vida em geral.
“Sinto que neste último ano tem havido mais miúdas a tocar [Sallim, Calcutá, Surma, Ninaz, BLEID, só para citar algumas], mas há um medo de exposição que resulta do hipercriticismo que existe em relação a elas e ao que fazem. Parece que são obrigadas desde sempre a ser perfeccionistas”, diz Rodrigo. Essa crítica ao fardo do perfeccionismo tem correspondência na programação da Maternidade. “É fácil apontar defeitos ao que programamos, e há defeitos, mas o importante aqui é ter constância, quebrar barreiras, na lógica do ‘usa o que tens, sai do quarto e mostra a tua voz’.”
Está tudo ligado
Joaquim Quadros mostra a sua voz todos os dias na Vodafone FM. A dele e a dos outros. É alguém que vê o seu trabalho (também) como forma de dar conta do que vai sentindo fervilhar no cenário musical que o rodeia. “Passar um tema na rádio e assim ajudar a divulgar uma banda ou marcar um concerto no Lounge [bar e sala de concertos lisboeta], parece-me um gesto semelhante”, diz o radialista – e que, como todos os membros da comunidade informal abordada nestas páginas, é mais que essa ocupação primeira.
Primeiro criou o Órfão, um jornal dedicado às novidades vindas, primordialmente, da nova vaga garage e psicadélica e da plural cena musical portuguesa contemporânea, através do qual começou também a organizar concertos ou DJ sets. “Entretanto, o Órfão capotou porque aguentar um meio físico feito de raiz tornou-se insustentável”. O passo seguinte pareceu-lhe nada menos que natural. “Uma promotora. Uma promotora profana”. Como Profana lhe soou particularmente “horrível”, um trocadilho fonético depois surgia a Puro Fun, que mantém com Francisco Ferreira, teclista dos Capitão Fausto (e aqui responsável pela arte gráfica).
Entre 2015 e 2016, trouxeram-nos concertos dos garage-rockers italianos Go!Zilla e das espanholas Hinds e dos madrilenos The Parrots, ou organizaram festas, como o Clube Z, na ZDB, que foi verdadeira celebração da efervescência criativa de que damos conta nestas páginas: em cartaz estavam Sunflowers, Sallim, Lourenço Crespo, Luís Severo, Cave Story ou Duquesa.
Como nas outras estruturas, o lucro é uma quimera. Interessa que seja sustentável, que os seus membros não tenham que pagar pelo trabalho que desenvolvem. “O que motiva é a promoção das bandas, é juntar pessoas para verem concertos”, acentua Joaquim Quadros.
Também na Puro Fun existe, inadvertidamente, dedo da Cafetra. “A atenção que recaiu sobre ela não se deveu a ser a primeira, mas a ser uma comunidade que aparece a fazer as coisas por si própria, com consistência e unidade. Tem significado pelo sentido comunitário e enquanto ponto de viragem”, assinala. Tudo isso se manifesta na Cuca Monga, a que a Puro Fun surge associada e que é criação dos membros dos Capitão Fausto e de “conspiradores” próximos da banda, como, naturalmente, Joaquim Quadros. “Se estamos num grupo de pessoas em que um agencia concertos, outro faz de road manager, outro faz rádio, outro cuida do design, um outro tem um estúdio, por que não juntarmo-nos todos numa estrutura?”.
Nascida para acolher as bandas paralelas dos autores do recente “Têm os Dias Contados” (os Modernos, Bispo, El Salvador), é uma editora independente que conta no seu catálogo com duas colectâneas e um EP dos Ganso, quinteto que tem despontado ao longo deste ano, além, claro, de edições do trio de grupos criados pelos membros dos Capitão Fausto. É uma editora a que, na prática, devemos chamar colectivo.
Além dos cinco Fausto e de Joaquim Quadros, integram a Cuca Monga António Branco, que acompanha a banda desde o início, ou António Rodrigues. Este é técnico de som, baterista de El Salvador e proprietário de um estúdio no bairro de Alvalade, em Lisboa, que se tornou o centro de operações da Cuca Monga. Foi ali que os Capitão Fausto gravaram o seu álbum mais recente e, como isto anda tudo ligado, é ali que Luís Severo tem neste momento algum do seu material - e tem em António Rodrigues o seu baterista actual. A concretização do sentido comunitário a que aludia Joaquim Quadros, que resume tudo isto de uma forma muito simples: “O pessoal está todo a entreajudar-se”.
Descentralizar por aí
Avancemos centena de meia de quilómetros para sul, até Évora. Ali encontramos João Modas, arquitecto de 38 anos, co-fundador da Pointlist, promotora que tem feito da cidade alentejana uma outra base desta nova realidade que, viva a internet!, se estende de norte a sul do país.
Durante dois anos e meio, João Modas integrou a direcção da Sociedade Harmonia Eborense (SHE), entidade que, defende, “foi a única que na cidade tentou combater a desertificação desta área, a das bandas de produtoras independentes”. Terminado o mandato na SHE, sobreveio uma “sensação de vazio”: “esta cidade é mesmo assim, se não arranjamos um hobby sentimo-nos enclausurados”. Em Janeiro de 2014, João Modas e Tiago Alexandrino criavam a Pointlist. Aproveitando a rede de contactos criados através da SHE, não demoraram a retomar a marcação regular de concertos.
Mais que isso: no final do ano, em Novembro de 2014 estreava-se o Black Bass, festival de música psicadélica “organizado em dois meses”. Em cartaz, exclusivamente constituído por bandas portuguesas, encontrávamos Killimanjaro, 10 000 Russos, Jibóia, Dreamweapon ou Savanna. Um ano depois, segunda edição com Riding Pânico, Modernos, Asimov, Mighty Sands, 800 Gondomar ou Sunflowers – e, de caminho, a rede a estender-se, com o Reverence Valada, no Ribatejo, a encarregar a Pointlist de programar a noite de abertura da edição 2016 do festival, dia 8 de Setembro: Thee Oh Sees e Chain & The Gang são os destaques de um cartaz onde encontramos três nomes: Sunflowers, 800 Gondomar e Sun Mammuth. Todas bandas da região do Porto, todas bandas ligadas com ligação a Évora.
Depois do primeiro Black Bass, a Pointlist voltou a convidar o duo punk’n’roll Sunflowers para um concerto. A banda indagou se haveria a possibilidade de marcar alguns concertos entre o Porto e Évora, forma de atenuar os custos com a viagem. Acabariam por tocar também em Coimbra e em Lisboa e, pouco depois, abordaram a Pointlist com uma pergunta: “Querem agenciar os Sunflowers?”. Quiseram. A promotora passava também a fazer agenciamento. Critério de selecção? “Só trabalhamos com bandas que, musicalmente, nos digam alguma coisa”. Além dos Sunflowers, a Pointlist agencia agora os 800 Gondomar, os Sun Mammuth, os Dreamweapon, os Jack Shits, os Fugly e, desde há duas semanas, os Miami Flu – com excepção dos Jack Shits, sedeados no Barreiro, todas bandas nortenhas.
Neste momento, João Modas e Tiago Alexandrino já têm a companhia de Afonso Cabral, que trabalha em exclusivo na angariação de apoios para o Black Bass, e da designer Cristina Viana, responsável por toda a arte gráfica ligada à Pointlist e cujo trabalho, entretanto, já foi solicitado pelo Sabotage ou Musicbox, clubes no Cais Sodré, pelo Maus Hábitos, no Porto, ou pela Puro Fun.
Para João Modas, aquilo que tem despontado nos últimos anos na forma de actuar e bandas e promotores independentes é “irreversível”. Vê um lado negativo, o económico. “Nesse aspecto, não há grandes esperanças e as bandas sabem-no. Não há volta a dar”. E um positivo. “Artisticamente, estamos bem. Aliás, nunca estivemos tão bem. Não há 15 bandas que se destaquem, como antes. Há 150, e não estou a exagerar”, exagera para demonstrar um ponto, o da quantidade generosa de bandas relevantes no actual cenário.
A Norte, algo de novo
Estas movimentações com primeiro foco em Lisboa acabam por chegar, em parte, também ao Porto. Vai havendo um diálogo intercidades entre promotoras e músicos. A Pointlist agencia bandas do Porto que, por sua vez, têm algum tipo de vínculo com a mais crescida Lovers & Lollypops, seja através de concertos ou edições, e as mais novas Favela Discos e Gentle Records são próximas da Maternidade e da Cafetra. Neste último caso, o principal elo de ligação é João Sarnadas: integra as duas equipas, Favela e Gentle, acompanhou mais de perto o desenvolvimento da Cafetra e, além do seu projecto a solo, Coelho Radioactivo, toca com Luís Gravito (Luís Severo) nos Flamingos, agenciados pela Maternidade.
A Favela e a Gentle podem ser consideradas irmãs: a primeira é mais experimental, alucinada e irónica (“a irmã que dá nas drogas”), a segunda mais introvertida, ancorada na pop lo-fi. Tudo começou num prédio onde alguns dos elementos da Favela partilhavam casa, mais exactamente no andar do meio, “entre o céu e o inferno” (ou seja, entre o quarto de João Sarnadas e uma ocupa de punks). “Um dia, algures em Fevereiro de 2013, eu e o David [Olé] acordámos felizes e tivemos a ideia de fazer a pior editora possível”, recorda João Tito Silva, 24 anos (aka Tito Frito, a solo em Vasco da Ganza, em duo nos Vive Les Cônes). O nome estava mesmo à frente deles, qual profecia. “Na parede do nosso quarto estava escrito ‘favela’, já estava lá antes de nós.”
Perceberam rapidamente que não era assim tão fácil fazer a pior editora/promotora de sempre. Começaram a ter fãs e a organizar concertos. A parte gráfica, das zines aos cartazes, também não era nada de se deitar fora. A coisa “ficou mais séria” com a residência no Alma em Formol, entretanto falecido. Foi aí que começaram a ter ecos em Lisboa. “Uma vez estava na Interpress e o [saxofonista de free jazz] Pedro Sousa disse-me que queria tocar numa das nossas noites. As coisas correm”, conta João Sarnadas, que, tal como outros colegas da Favela, se desdobra em vários projectos, entre eles Vive Les Cônes e Milteto.
As relações com promotoras e músicos de Lisboa foram aprofundadas na residência semanal no Café au Lait, que arrancou em finais do ano passado. Com estas noites, a Favela criou uma rotina de concertos imprevisíveis, de música aventureira e fora das normas, do free jazz à electrónica, de cantautores a música experimental, em contracorrente com uma crescente higienização na música, e na própria cidade. “O Au Lait permitiu-nos criar uma programação que se foi expandindo”, aponta João. “Além da curadoria, sempre quis que a Favela explorasse as colaborações entre músicos” – o que aconteceu com Jonathan Saldanha [HHY & The Macumbas] e membros da Ácida, colectivo portuense ligado à música electrónica. Esta residência vai passar a ser mensal, para haver mais tempo para equilibrar as vertentes promotora e editora. “E para darmos e organizarmos mais concertos fora do Porto.”
Também nesse sentido, a Favela ganhou, há uns meses, outro parceiro: a Macho Alfa, promotora de Nuno Rodrigues e Rafael Ferreira, dos Glockenwise, e de Hugo Cunha e Ana Brito, da associação cultural/cineclube Zoom (o nome causa bastante comichão, mas Nuno defende que, como em tudo na sua vida, “há uma fluidez de género” – “ela é a Macho Alfa, eu sou o Duquesa”, diz, referindo-se ao seu projecto a solo).
A Macho Alfa nasceu das cinzas da Casa Azul, espaço em Barcelos que entre 2013 e 2015 acolheu uma programação assídua de concertos, mas já tinha sido esboçada há dez anos, numa conversa de café ao lado da escola secundária. “Dez anos depois percebemos que havia o mesmo espaço de encaixe que encontrámos naquele entusiasmo inicial da cena de Barcelos e decidimos levar a ideia avante”, conta Nuno Rodrigues, 25 anos. Um dos objectivos é preencher esse vazio deixado pelo encerramento da Casa Azul, onde Nuno era consultor musical. “Muitos músicos, sobretudo do Sul e incluindo malta da Cafetra, Spring Toast e Maternidade, ainda falam comigo porque querem marcar datas em Barcelos”.
Descentralizar é palavra de ordem, numa rede de promotoras independentes que se vai alastrando para fora dos centros – além da já referida Pointlist, temos os exemplos da Ya Ya Yeah, de Leiria, da Erro Crasso, de Coimbra, da Revolve, de Guimarães, da Dedos Biónicos, de Bragança, ou da ZigurArtists, de Lamego. Uma permeabilidade e transição de fronteiras que a Macho Alfa também quer estender à Galiza: não é por acaso que vão trazer os galegos Vozzyow ao festival Milhões de Festa, em parceria com a promotora La Melona, e que estão a ajudar a Lovers & Lollypops nas noites Pré-Milhões de Festa na Galiza e em Barcelos, uma delas já esta sexta no Círculo Católico de Operários do Porto com a espanhola Aries, da K Records, que amanhã, dia 18, desce às Damas para mais uma noite Maternidade. Está tudo ligado.
“Se há uns anos tinhas três ou quatro promotoras independentes hoje tens várias mãos cheias delas. Isso cria uma rede de contactos, facilitada pela noção de que há uma causa comum, uma solidariedade entre todos”, diz Nuno Rodrigues. “Podemos ser as ervas daninhas de um futuro mais bonito.” Para eles e para outros, que virão a seguir. Our band – and our promoter – could be your life.